Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Irene Flunser Pimentel: “Estamos a caminhar perigosamente para uma situação de guerra”

A historiadora Irene Flunser Pimentel lançou, com Margarida de Magalhães Ramalho, o livro “O Comboio do Luxemburgo – Os refugiados judeus que Portugal não salvou em 1940”. É sobre ele que fala, sobre o passado, o presente e o futuro.

Miguel Baltazar
  • 13
  • ...
Em Novembro de 1940, um comboio que vinha do Luxemburgo foi impedido de entrar na fronteira portuguesa de Vilar Formoso. Trazia quase 300 judeus, que ficaram encerrados em carruagens durante dez dias. O governo português não concedeu autorização de entrada no país, o comboio voltou para trás e muitos dos passageiros não sobreviveram aos campos de extermínio. O incidente, que "põe em causa a imagem 'difusa' de um Portugal 'paraíso' para os que fugiam ao nazismo", é contado pelas historiadoras Irene Flunser Pimentel e Margarida de Magalhães Ramalho no livro "O Comboio do Luxemburgo - Os refugiados judeus que Portugal não salvou em 1940". "O episódio do comboio de Novembro é, apesar de tudo, excepcional, mas mostra aquilo que pode acontecer quando os países não dão guarida aos refugiados", diz Irene Flunser Pimentel, Prémio Pessoa em 2007 e autora de livros como "Judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial". Atenta às histórias e à História, olha para o mundo contemporâneo com apreensão. E olha chocada para a eleição de Donald Trump, que aconteceu um dia depois desta entrevista. "Como é que chegámos ao ponto de pensar que uma pessoa como Trump pode ser Presidente dos Estados Unidos?!"


 "O Comboio do Luxemburgo – Os refugiados judeus que Portugal não salvou em 1940." Como chegaram a esta história?

É um livro escrito a quatro mãos (com a Margarida de Magalhães Ramalho). Em 2006, eu tinha feito um trabalho sobre os refugiados judeus durante a Segunda Guerra e tomei conhecimento do episódio do comboio de Vilar Formoso, que estava mencionado num livro do historiador alemão Patrick von zur Mühlen. Desde então, tentei perceber melhor o que tinha acontecido. Entretanto, verifiquei que a Margarida tinha entrevistado uma sobrevivente desse comboio, Rachel Wolf, para o livro e museu "Vilar Formoso – Fronteira da Paz". E propus-lhe que nos juntássemos. Começámos a fazer investigação no Luxemburgo no início de 2015, visitámos essa sobrevivente, uma senhora absolutamente maravilhosa, jantámos em casa dela, estivemos nos Estados Unidos, em Washington e Nova Iorque, e decidimos avançar com o livro.

 

É um livro que vem pôr em causa a imagem "difusa" de um Portugal "paraíso" para os que fugiam ao nazismo, como disse ao Jornal de Letras.

Vem pôr em causa, mas não totalmente. Em 1938, a política nazi relativamente aos judeus muda bastante: se, até então, a ideia era expulsá-los da vida pública e de certas profissões, a partir de 38, a ordem é para expulsá-los do território alemão, "purificando-o". Os judeus tiveram de fugir e foram­-se refugiando nos países à volta, países esses que temiam uma inundação e, por isso, fecharam as suas fronteiras ou introduziram medidas restritivas… É quase sempre assim. Isso aconteceu também com Portugal, que se baseou naquilo que muitos países já tinham feito.

 

Mas há a ideia de que Portugal até acolheu bem os refugiados.

Há a célebre Circular 14, de 1939, que torna praticamente impossível obter um visto para Portugal, só os diplomatas de carreira passam a poder conceder vistos de entrada no país e apenas mediante autorização do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). E só eram concedidos a pessoas que já tivessem um visto no país de destino para saírem rapidamente de Portugal. Além disso, ainda teriam de ter um bilhete de avião ou lugar no navio, o que tornava o processo muito difícil. Portugal era um país de trânsito e, basicamente, comportou-se como os outros países. Dito isto, há o episódio Aristides de Sousa Mendes, o cônsul que concedeu vistos contra as regras da Circular 14, e foi por isso que tantos refugiados chegaram a Portugal no Verão de 1940. A população, de um modo geral, acolheu-os bem e nem entendia porque é que eram refugiados – mas aquela gente até é cosmopolita, mais rica do que nós, porque foge? Portugal acabou por ser um país de refugiados, algo que, depois, foi aproveitado por Salazar para manter o seu regime. O episódio do comboio de Novembro é, apesar de tudo, excepcional, mas mostra aquilo que pode acontecer quando os países não dão guarida aos refugiados, porque nós nunca sabemos o que é que vai acontecer. A História nunca se repete da mesma forma, porque as circunstâncias são diferentes, mas existem matrizes que podem desencadear situações semelhantes.


Vitória de Trump: penso que se pode dizer que foi o medo do outro que ganhou. (...) O que se está a passar na América não era imaginável há um ano. Andámos muito distraídos. 

 

O que se passa connosco, homens?

Com o ser humano, não é? O ser humano, basicamente, é parecido em qualquer parte do mundo e, se olharmos para a História, o Homem não tem mudado muito. O ser humano tem capacidade de empatia com outro ser humano, mas também tem capacidade de antipatia e de egoísmo. Por outro lado, tem medos, assusta-se facilmente com o outro, tem medo que o outro invada o seu território. Este é um lado algo animal próprio do ser humano. Por isso é que as circunstâncias são muito importantes. Por exemplo, na Alemanha nazi, muitos dos habitantes que não eram perseguidos até beneficiaram do regime. Hitler nunca fechou um cinema ou um teatro até ao final da guerra. Os brinquedos das crianças que iam para Auschwitz eram distribuídos pelos outros miúdos alemães. Hitler fez, de uma certa forma, um Estado Social só para alguns. Há muitos alemães que viveram uma vida quotidiana habitual e que apoiaram Hitler precisamente por causa disso. O nazismo só pôde existir, com o seu nível de criminalidade, por terem existido milhões de cúmplices ou, pelo menos, por ter havido muita gente indiferente.

 

É essa indiferença que permite que os países estejam, também hoje, a fechar fronteiras?  

Penso que sim, mas o "problema" da História é que só conseguimos analisá-la porque o processo terminou. O historiador não consegue prever nada, porque há um conjunto de circunstâncias que determinam os acontecimentos. Basta haver uma figura como Hitler ou um conjunto de relações entre países para existirem modificações. Na Europa, neste momento, há uma tendência para fechar as fronteiras. Curiosamente, o país que aceitou mais refugiados foi a Alemanha. E o que é que está a acontecer? O partido da senhora Merkel – e eu nem simpatizo com a senhora Merkel, mas simpatizo com a sua atitude em relação aos refugiados – pode estar em risco porque há novos partidos, mais à direita, xenófobos, que estão a ter sucesso. Em França, passa-se a mesma coisa. Vamos ver o que vai acontecer amanhã nos Estados Unidos… Como é que chegámos ao ponto de podermos pensar que uma pessoa como Trump pode ser Presidente dos Estados Unidos?!

 

(Um dia depois da entrevista, Donald Trump ganhava as presidenciais americanas. Impôs-se a actualização da entrevista)

 

Que leitura faz da vitória de Donald Trump?

Ainda estou em choque. Embora sabendo que existia o risco de Trump ganhar, não acreditava que tal pudesse acontecer. Os sinais estavam aí mas, de um modo geral, não os quisemos ver. Houve um conjunto de circunstâncias que permitiram a sua vitória e é vital compreendermos o que está a acontecer nos Estados Unidos, até porque é aquilo que está a acontecer na Europa. Não sei se ainda vamos a tempo de impedir o pior, mas é fundamental analisar, debater e não permitir que os valores da sociedade europeia e ocidental, do humanismo e da solidariedade, sejam completamente derrubados.

 

Podemos dizer que foi o medo do outro que ganhou?

Penso que se pode dizer que foi o medo do outro e pode dizer-se, sobretudo, que os Estados Unidos estão completamente divididos. E que a Europa se debate com as mesmas questões: o medo da globalização, que é algo imparável, mas que causou estragos... A política neoliberal conduziu à falta de alternativas, abrindo caminho para a xenofobia e o tal medo do outro. A globalização não é um bicho­-papão, mas é preciso repensar todo o modelo, está na cara que a iniciativa privada não se regula a si própria, e as serpentes que estavam no ovo, agora, estão cá fora.

 

Pelo menos, parece que esta eleição teve o efeito de despertar um outro tipo de debate.

Sim, aliás, um amigo meu dizia: mas isto pode ser um mal que vem por bem. Eu acho que o mal está feito e não vem por bem, mas que, perante o mal, as pessoas estão a reagir, tentando compreender, discutindo, e esse é um aspecto bom do mal.

 

A Europa irá mesmo conseguir "retirar" lições?

Penso que já está a tirar, não sei é se vamos a tempo de mudar o rumo, porque vai haver eleições brevemente e tudo o que é alternativa populista ganhou imenso dinamismo. Estou pessimista, mas digo o mesmo que costumo dizer em relação à História: pode não servir para nada mas, se calhar, seria pior se não soubéssemos nada. O "saber alguma coisa" faz com que as pessoas reajam e, nesse aspecto, não sou completamente pessimista. Ainda assim, penso que vivemos algumas das situações mais terríveis desde o pós-Segunda Guerra Mundial: a eleição de Trump, a questão dos refugiados, a situação na Europa, a crise de 2008 que ainda não terminou, especialmente na Europa… Todo este conjunto torna a situação muito perigosa. Não consigo fazer profecias, mas, neste momento, ninguém pode estar optimista.

 

Adivinham-se mais protestos contra o sistema?

Sim, mas muitas das alternativas populistas ao nível da Europa são completamente sistémicas e aproveitaram para cavalgar esta onda populista. E é verdade que o divórcio entre os políticos e o cidadão comum é muito maior do que aquilo que se pensava. E que as elites têm aqui responsabilidades, mas acho extraordinário quando a Marine Le Pen diz que "isto" é o povo contra as elites.

 

Não é um pouco assim?

Eu acho que não. É algum povo contra algumas elites. O que se está a assistir é a uma clivagem da sociedade, que está completamente polarizada.

 

E com muitos medos. Alguma vez imaginou que pudesse voltar a acontecer este fechamento de fronteiras?

Não. Se me tivessem dito, há vinte anos, que a Europa iria reerguer muros, eu diria que nem pensar, achava eu que o sonho europeu estava construído, quase fossilizado, e que o facto de se ter feito a união da Europa, justamente depois das duas guerras mundiais, era sinal de que tínhamos aprendido as lições. Ainda assim, tenho sempre algum cepticismo em relação ao "nunca mais". Já tenho alguma idade e vi muitas coisas. Nunca mais? Nunca mais do Holocausto? Já houve o Uganda, sabemos que já houve extermínios posteriores.

 

Falávamos na indiferença, na apatia…

… no egoísmo. Portugal não tem ainda partidos como a Frente Nacional de Marine Le Pen ou como o partido populista alemão AFD, e eu gostaria que não viesse a ter, mas também é verdade que, por cá, ainda não se nota a presença dos refugiados. A partir do momento em que se começar a notar mais, temo que não fiquemos imunes ao chauvinismo, à xenofobia e ao racismo. Já se começa a ouvir: "Ah, depois vêm roubar-nos os postos de trabalho e nós já somos pobres." Eu não sei qual será a atitude dos portugueses. É nestas circunstâncias que os seres humanos são praticamente iguais. No outro dia, alguém dizia que os portugueses têm uma alma de generosidade que se viu na forma como receberam os refugiados durante a guerra. E eu respondi: tenho imensa dificuldade em dizer que os portugueses se comportam de forma diferente na mesma situação daqueles ou daqueloutros. Os alemães eram todos assassinos? Aqueles que percebiam que, de repente, o vizinho do lado já não estava, nem ele nem a família? Eram todos assassinos? Não, eram alemães vulgares, educados segundo a ética protestante ou segundo a ética católica, aprenderam o que era a compaixão…

 

No vosso livro, citam Hannah Arendt, que se referia ao século XX como o século dos refugiados. O século dos refugiados foi o século XX ou será o século XXI?

É impressionante, não é? O século XXI é um século de refugiados ao nível do mundo. Digamos que o século XX foi o grande século dos refugiados… até então. E depois há aqueles que são considerados refugiados e os que são considerados imigrantes económicos… O problema é que muitos dos imigrantes económicos podem até nem estar a fugir da guerra, mas podem estar a fugir da morte e da fome em regiões afectadas pelas questões ambientais. O Bangladesh, por exemplo, está a desaparecer como país. Os argelinos não são considerados refugiados em parte alguma do mundo, os tunisinos também não, os marroquinos também não. Por tudo isto, há uma grande tragédia subliminar a toda esta triagem.


A globalização não é um bicho-papão, mas é preciso repensar todo o modelo. As serpentes que estavam no ovo, agora, estão cá fora. 

 

Sempre lidou com o tema dos refugiados desde criança. Aliás, uma amiga sua de infância é filha de uma família de refugiados, não é?

A minha mãe é suíça-alemã, casou com o meu pai e veio para Portugal. Ela era uma estrangeira no país e, por isso, quando encontrava mulheres estrangeiras, tendia a aproximar-se delas. E isso acontecia muito no jardim da Parada ou no jardim da Estrela – nós vivíamos em Campo de Ourique –, onde essas senhoras passeavam com os filhos. Algumas estavam casadas com portugueses ou tinham vindo para Portugal no tempo da guerra, outras eram de famílias de refugiados judeus. A minha melhor amiga de infância é filha de uma dessas senhoras, que fugiu para Portugal ainda miúda, através de Hamburgo, e depois casou com um médico português.

 

Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, ao Público, a Irene disse que foi marcada, durante muito tempo, pela culpabilização social, pela vergonha de ser rica…

Sim, a partir de determinada altura, quando tive consciência de que havia grandes diferenças de classe em Portugal, sentia alguma culpabilização pelo facto de ser rica. Tive uma infância muito privilegiada e, quando comecei a ter essa noção, isso incomodava-me.

 

 Estudou no Liceu Francês, que seria um pequeno oásis de quase democracia em tempos de ditadura. Foi muito influenciada por essa escola?

Embora, em termos classistas, não se possa dizer que o Liceu Francês fosse um liceu de todas as classes, era um liceu das classes mais altas, eu relacionava-me com alguns portugueses como eu, da minha classe social, com filhos de embaixadores ou de empresários estrangeiros. Por outro lado, havia todo um caldo cultural. Eu lia autores como o Balzac, o Stendhal.

 

E foi lá que viveu o Maio de 68.

Fiz o "baccalauréat", o exame final do liceu, justamente em 68 – até estivemos para não fazer, como aconteceu em França. Logo a seguir, fui para a Suíça, onde estive um ano e meio a estudar na universidade. Lá, o ambiente universitário era completamente pós-Maio de 68, o Maio de 68 alastrou por todo o lado. Conheci novos costumes e comecei a viver sozinha. E a Suíça já era um país completamente diferente. O meu avô materno era ferroviário, mas um ferroviário na Suíça era um homem cultíssimo, que sabia dizer poesia, que tinha todas as possibilidades. Do ponto de vista social, não existiam as diferenças de classe como em Portugal.

 

Em Portugal, o seu avô paterno foi fundador do laboratório Sanitas.

Sim. E do Monumental.

 

E a Irene Pimentel até assistiu a alguns filmes antes de serem censurados, não foi?

Eu andava muito pelo Monumental, podia entrar e sair livremente… Há um episódio engraçado que a minha mãe me contou. Um tio do meu pai era uma figura do regime, deputado e médico, e foi convidado para fazer censura de filmes, coisa que todos adoravam porque, assim, viam cinema, pois…! Um dia, a mulher desse meu tio-avô convidou a minha mãe para ver um filme: "Erika, tens de ver um filme que o Américo (o marido) proibiu. Estamos a convidar algumas pessoas." E a minha mãe: "Mas se o tio Américo proibiu é porque não devíamos ver." E a minha tia responde: "Mas, por nós, respondemos nós." Isto é típico do regime salazarista: manda quem pode e obedece quem deve. E esses que podiam mandar é que sabiam o que é que os outros deviam ler e ver e fazer porque respondiam por eles.

 

Foi com toda essa bagagem para a Suíça estudar Literaturas Comparadas, mas depois partiu para França.

Pois. Isso depois foi a parte mais disparatada.
 

Não se revê, não quer rever-se?

Eu não posso dizer, aos 60 anos, que sou a mesma pessoa que era aos 18 anos, seria absurdo, mas, do ponto de vista de historiadora, sei que o que aconteceu, aconteceu. E o que aconteceu é que, a dada altura, pensei que deveria meter­-me na política porque achava que o mundo era completamente injusto. Porque a ditadura era uma coisa absurda. Eu, além de ser filha da Segunda Guerra Mundial, sou filha do antifascismo, dava-me muito com antifascistas e, portanto, o meu caldo cultural é tudo isto, sou muito filha de tudo isto.

 

Pertencia a um movimento de extrema-esquerda. Como se chamava mesmo?

É muito complicado. Chamava-se O Comunista em Paris, depois o Grito do Povo, Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP). E a Frente Eleitoral dos Comunistas (marxistas-leninistas) – FEC(m-l) era uma frente eleitoral que concorreu às primeiras eleições. Era um dos movimentos marxistas-leninistas, também um pouco maoistas, que existiam.

 

Já disse publicamente que está agradecida aos capitães do 25 de Abril.

Claro, ninguém pensava que o 25 de Abril acontecesse como aconteceu. Nesse dia, eu estava em casa a ouvir a rádio, não se percebia bem o que se estava a passar. Tenho pena de não ter vivido o 25 de Abril no Carmo. Os capitães do 25 de Abril, ao fazerem aquele golpe de Estado, também me salvaram a mim e a todas as pessoas que estavam em risco de vir a ser presas. Só de pensar que nunca fui torturada, mas que podia ter sido, eu só posso agradecer àqueles senhores.

 

E, se não fossem os capitães, alguns grupos poderiam ter entrado em deriva mais radical?

Podia ter acontecido, já havia organizações de luta armada na altura. E, se a guerra colonial continuasse durante muito mais tempo, penso que teria havido uma radicalização nesse sentido. Isso não aconteceu em Portugal, e acho que tem que ver, precisamente, com o 25 de Abril. Na Europa, começa a haver uma radicalização e Portugal poderia ter resvalado para essa tendência.

 

O seu passado político radical incomoda-a de alguma forma?

Não, não me incomoda, e é um passado que fez parte de uma geração. Assim como fez parte dessa geração o culto do Bob Dylan. Por um lado, éramos estalinistas, porque éramos contra aquilo a que chamávamos de revisionismo e de reformismo do PC, e tínhamos uma simpatia para com a China, e isso é que eu preferia não ter tido (podemos dizer que defendemos uma via totalitária). Por outro lado, esse autoritarismo totalitário convivia com uma presença cultural libertária, o que era uma grande contradição. Mas isso fez com que o totalitarismo, que podia ter sido a mil, tivesse sido travado. O Maio de 68 era uma coisa completamente libertária. O "Proibido proibir" – que é uma asneira completa, tem de se proibir – foi fundamental na altura. Há partes do que fui ou do que pensei que eu não gosto, mas há outras que foram maravilhosas.

 

Sempre vai escrever um livro sobre as companheiras. Sobre as mulheres nas organizações clandestinas?

Tenho essa ideia. Seria um livro sobre as funcionárias clandestinas do Partido Comunista e a continuação nas organizações da esquerda radical, como se costuma dizer. Tenho alguma investigação feita, mas, a dada altura, percebi que o tema já estava a ser estudado, já há um livro e agora há uma tese de mestrado. Não digo que não escreva, mas, para já, não está na calha.

 

Mas as companheiras eram maltratadas nessas organizações?

Eu acho que sim. Durante a vigência do Partido Comunista, estas mulheres tinham de dar a impressão de, com os seus companheiros, formarem casais normais. Eles, normalmente, tinham encontros com outras pessoas, e elas ficavam a defender e a tratar das casas, a cozinhar. As organizações da oposição comportavam-se de acordo com a mentalidade da época. Se calhar, não podia ser de outra forma.

 

Era uma representação da realidade…

Era uma representação, mas havia muitas mulheres que eram analfabetas e que continuaram analfabetas. Ora, o mínimo que podiam ter feito era ensinar-lhes a ler e a escrever, acho eu. Por outro lado, elas foram maltratadas também porque o seu papel foi desvalorizado. No fundo, elas eram consideradas como uns apêndices dos funcionários quando, na realidade, eram elas que defendiam as casas porque estavam ali o tempo todo. E também eram maltratadas por outras vias, mas isto é muito complicado e eu não queria entrar por aí porque se trata de um assunto que não se pode explicar em três palavras, e eu não quero ser mal-entendida. Eu percebo o contexto da mentalidade da época, a mentalidade era a mesma ao nível do regime e ao nível da oposição clandestina, e isso é que é terrível. As companheiras eram mulheres-objecto, donas de casa, tal como o código civil dizia – dentro do casal, a mulher tem de obedecer ao marido, viver no sítio onde ele quer e, independentemente do que ela faça, mesmo trabalhando fora de casa, tem de se ocupar do espaço doméstico.

 

Ainda é um assunto tabu?

Ainda é qualquer coisa assim, mas é algo que tem de ser feito agora. Porque os testemunhos ainda existem e temos de ouvi-los. Aquelas mulheres estavam muito isoladas, muito sozinhas. A vida delas era terrível. Os filhos, a partir de determinada idade, quando começavam a falar e iam para a escola, eram-lhes retirados. Não havia a sensibilidade para se perceber a tragédia disto.

 

Saiu da política em 1978.

Sim, eu já não acreditava muito naquela linha política, digamos. Pouco depois, em 80, fui fazer o exame "ad hoc", comecei a estudar História em 80, fiz a licenciatura, depois arranjei emprego na livraria Buchholz e ainda demorei uns anos até retomar o estudo. E, a partir daí, virei-me completamente para a investigação histórica.

 

Consegue imaginar um regresso à vida política?

Nem pensar, jamais. Em democracia e, no estado actual da política, não me interessa. A política precisa, como de pão para a boca, de uma nova forma de ser exercida. Precisa de discutir ideias, é tão simples como isso. A política está muito dividida entre os partidos, sobretudo entre os partidos do chamado arco de poder que hoje, em Portugal, são quatro. Sim, não se pode dizer, neste momento, que BE e o PCP não pertencem ao arco do poder. E nem sequer estou a dizer mal. Estou a ler uma realidade que nós nunca pensaríamos que existiria, mas que existe.

 

E como interpreta essa realidade?

Vivo-a com grande simpatia. Depois, concordo com algumas coisas de alguns partidos, mas não a ponto de pensar que pudesse militar em algum deles. E não gosto nada das redes clientelares. Pelos partidos do arco de poder se partilha os poderes que o poder dá, e isso não me interessa nada. As nossas lideranças são péssimas, mas isso não é uma coisa exclusiva de Portugal. O que se está a passar na América não era imaginável há um ano. Andámos muito distraídos.

E andámos para trás?

Não sei, porque eu acho que a globalização tem coisas fabulosas, passo a vida a ir à internet, é completamente diferente fazer História hoje e fazer História há uns anos, em que tínhamos de ir à biblioteca e requisitar o livro… Eu adorava ir, porque gosto imenso de arquivos, mas também gosto muito de poder confirmar determinadas datas apenas em segundos.


O nazismo só pôde existir, com o seu nível de criminalidade, por terem existido milhões de cúmplices ou, pelo menos, por ter havido muita gente indiferente.

A partir do momento em que se começar a notar mais (a presença de refugiados em Portugal), temo que não fiquemos imunes ao chauvinismo, à xenofobia e ao racismo.

 

Já não vai à biblioteca?

Vou, sobretudo aos arquivos. Ainda agora, no Luxemburgo, os arquivos foram fundamentais para chegar ao nome dos passageiros do Comboio. Temos, no livro, o testemunho de uma sobrevivente, a única pessoa do Comboio que foi para o Auschwitz e que sobreviveu. Chama-se Erika Thuna Brodsky, ela era muito nova, foi colocada no trabalho escravo e, por qualquer razão, sobreviveu. Andou nas marchas da morte de Auschwitz para Bergen-Belsen e foi encontrada debaixo de cadáveres pelas tropas americanas. Uma vez, perguntaram-lhe: "Quando saiu de Bergen-Belsen, o que é que as pessoas faziam quando viam que vocês tinham vindo do campo de concentração? Ajudavam-vos?" E ela: "Ajudarem-nos? Mas por que carga de água haveriam de nos ajudar?" A minha primeira reacção foi pensar que esta mulher tinha ficado muito dura, mas ela explica: "Será que as pessoas imaginam o que era a realidade na altura? As pessoas tinham era de se ajudar a si próprias." Isto é que é horrível. Nós, com o estômago cheio, dizemos que teríamos ido logo ajudar as pessoas, mas não é completamente verdade. A verdade é que vemos pessoas na rua e não as levamos para dentro de casa. Eu não levo. Mas, se calhar, devia, não era?   

 

Não há empatia que valha.

E muito do que se passa hoje parece não fazer impressão às pessoas que não estão em situação de guerra. Refugiados em Calais, isto incomoda alguém? Incomoda porque estão a sujar a rua. Faz-me lembrar Londres na altura da Thatcher. De repente, famílias inteiras com crianças ficaram sem trabalho e sem casa e foram viver para a rua. Nas principais ruas das lojas bonitas, os comerciantes, ao fim do dia, inundavam os passeios de água para as pessoas não irem para ali. E eu não posso dizer "foram os ingleses". Fomos todos. Quanto a mim, estamos a viver um período ainda pior, mas que tem muitas parecenças. Acredito que os seres humanos farão qualquer coisa para impedir a tragédia de novo, mas estamos a caminhar perigosamente para uma situação de guerra. Não sei se é uma guerra mundial, não sei se é uma guerra global, mas qualquer guerra dessas seria muito pior do que a Segunda Guerra, tal como a Segunda foi muito pior do que a Primeira.


Ver comentários
Saber mais Irene Flunser Pimentel Margarida de Magalhães Ramalho judeus refugiados nazismo Trump Hitler História guerra xenofobia chauvinismo Le Pen
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio