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“Hukou”: O muro invisível que divide as cidades chinesas

Com uma crise imobiliária persistente, a China volta a admitir a necessidade de reformar o sistema de “hukou”. A ideia é facilitar a compra de casa por pessoas de diferentes regiões do país, mas o acesso à habitação é apenas um dos muitos problemas que este sistema de registo de residência causa a milhões de chineses.
Inês Santinhos Gonçalves 25 de Janeiro de 2025 às 17:00
A maior dificuldade para quem quer mudar de residência é passar de um "hukou" rural para um urbano, em especial para uma cidade apetecível como Pequim ou Xangai. A maioria muda-se sem essa autorização de residência e torna-se um migrante doméstico, sem os mesmos direitos de quem ali nasceu.


Educação, serviços sociais, de saúde, habitação. Na China, o acesso a estes benefícios depende do lugar onde se nasceu. Para muitos, mudar de poiso, em busca de uma vida melhor numa grande cidade, significa abrir mão desses direitos.

É assim desde 1958, quando Mao introduziu o sistema de "hukou", um modelo de registo de residência, que Xi Jinping diz querer mudar. A sua reforma é vista como uma maneira de amenizar a crise do setor imobiliário e a desaceleração económica, em geral.

A maior dificuldade para quem quer mudar de residência é passar de um "hukou" rural para um urbano, em especial para uma cidade apetecível como Pequim ou Xangai. A maioria muda-se sem essa autorização de residência e torna-se um migrante doméstico, sem os mesmos direitos de quem ali nasceu. Os mais recentes censos, de 2020, estimavam que 26,6% da população da China era "flutuante" - 376 milhões de pessoas.

Há muito que o sistema é criticado por promover desigualdade, mas não foi a justiça social a grande motivadora da reforma anunciada: o objetivo é fazer com que mais pessoas possam comprar casa.

"Comprar imobiliário como ‘outsider’ (sem ter um ‘hukou’ local) é muitas vezes restringido, mais difícil ou mais caro", resume ao Negócios Wang Fei-Ling, professor no Instituto de Tecnologia da Geórgia (Georgia Tech, EUA), e autor do livro "Organisation Through Division and Exclusion: China’s Hukou System".

Num país com excesso de construção de habitação, muitos não são, mesmo assim, capazes de comprar. Kam Wing Chan, especialista na urbanização da China, explica que, como o sistema "discrimina os migrantes, reduz os seus rendimentos e o consumo, incluindo de habitação". E "o reduzido consumo doméstico é um grande problema para a economia da China", aponta o professor da Universidade de Washington.

Para incentivar o mercado, uma dúzia de cidades chinesas anunciaram esquemas de acesso a residência para quem compre casa, incluindo Cantão - é a primeira grande cidade a fazê-lo. Mas persistem dúvidas sobre a eficácia do plano divulgado no ano passado. É que já em 2014 o Governo anunciou com pompa que iria reformar este sistema.

"Foi a enésima vez que o Governo chinês falou de reformar o sistema de ‘hukou’ e melhorar a economia. Mas, dado o seu grande valor político, é difícil mudar significativamente o sistema", comenta Wang.

Também Kam diz que o progresso até agora "foi muito limitado", com o anúncio de 2024 a poder ser entendido como "uma continuação da reforma de 2014". Em suma, a obtenção de "hukou" "foi facilitada para as cidades de segundo e terceiro nível para quem tem formação superior. Mas conseguir um ‘hukou’ continua a ser uma enorme barreira para muitos migrantes rurais normais que trabalham em grandes cidades", aponta.

Do "trauma da escola" ao "hukou dourado"

O grau de dificuldade em conseguir autorização de residência noutra cidade depende muito do "background" do requerente. Wendi Song nasceu em Anhui, mas desde 2019 que tem o seu "hukou" em Zhuhai. Foi, conta ao Negócios, um processo fácil. "Como a população está a diminuir, as cidades querem atrair jovens talentos. Pessoalmente, não me senti limitada, em parte porque frequentei uma universidade em Xangai, e também porque vivi fora da China continental muito tempo. Mas as pessoas com menos formação ou que fazem trabalhos mais simples sofrem mais", comenta. Segundo Wendi, quem possui formação superior tem a vida facilitada, com via rápida para o que chama de "hukou dourado".

Já Eunice Yang, de 25 anos, nunca chegou a mudar de "hukou". É de Hunan, viveu sete anos em Xangai, mas nunca se importou por não ter residência: "Desde que não tivesse um filho ou quisesse comprar casa, o ‘hukou’ não significava nada".

A grande dificuldade que o sistema que lhe causou foi quando ainda estava em casa dos pais. É que, sendo de Hunan, entrar numa universidade em Xangai é bem mais difícil do que seria para um detentor de "hukou" da cidade. As universidades guardam um número de vagas generoso para os seus próprios residentes e atribuem quotas às diferentes regiões. Isto significa que, consoante o lugar de onde se vem, o processo pode ser muitíssimo competitivo.

Em 2017, Eunice fez parte dos 152 mil estudantes de Hunan que fizeram o exame de acesso à universidade ("gaokao") na vertente de Artes. Apesar do número elevado, poucos conseguem chegar às universidades de topo - por exemplo, apenas os 10 melhores conseguem vaga na prestigiada Universidade de Pequim e 40 na Universidade de Fudan (em Xangai). Já um estudante de Xangai vê garantidas 1.200 vagas em Fudan. Tudo por causa do "hukou".

Eunice não se lembra da quota para a sua universidade, apenas que ficou em 617.º lugar, num total de 152 mil, e conseguiu entrar. Quando soube que colegas de Xangai conseguiram vaga mesmo tendo à sua frente mais de 3.000 alunos, ficou "chocada". "Essa classificação, se fosse em Hunan, apenas te daria acesso a uma universidade local", comenta.

Tiffany Ie, de Jiangxi, diz que o "trauma" do "hukou" lhe aconteceu ainda mais cedo, na escola primária. Tal como em Portugal, os estudantes frequentam a escola da área de residência. "Mas os meus pais disseram que a escola do nosso bairro não era muito boa. Se eu frequentasse essa escola, não iria ter uma boa educação e entrar numa boa universidade". A solução? Fazer um exame de acesso à melhor escola da cidade, aos 10 anos. "Preparei-me durante dois anos para o exame de entrada no segundo ciclo", um teste que incluía "matemática olímpica".

Esta jovem de 23 anos vive hoje nos EUA, mas vai em breve mudar-se para Pequim, para uma empresa estrangeira, o que não lhe dá acesso a "hukou". "Isso significa que não posso comprar casa ou comprar carro", lamenta.

O vício da mão de obra barata

Apesar de alguns percalços, Wendi, Eunice e Tiffany não serão os melhores exemplos das dificuldades do sistema. "As pessoas com quem falou são de cidades privilegiadas e já têm um grau elevado de mobilidade. Como em todos os casos de discriminação, os pobres e não qualificados sofrem mais", comenta Wang.

Uma das maiores dificuldades dos migrantes domésticos está relacionada com a educação dos filhos, que, não tendo "hukou" do local onde os pais moram, não têm acesso à escola.

Este não é o único fator para a diminuição da fertilidade, mas pesa na conta. E contribui para um fenómeno da modernidade chinesa, as chamadas "left behind children", crianças que crescem longe dos pais (que vão trabalhar para as grandes cidades), ficando ao cuidado dos avós nas aldeias. Não é apenas por dificuldades decorrentes do sistema de "hukou" que tal acontece - muitos pais simplesmente trabalham tal número de horas, e vivem em instalações adjacentes a fábricas, que não têm como cuidar dos filhos. Mas os fatores relacionam-se.

"O número de crianças ‘left behind’ aumentou bastante entre 2010 e 2020, de cerca de 68 milhões para 89 milhões, o que demonstra as crescentes barreiras para os filhos de migrantes acederem à educação nas cidades de destino, onde os pais vivem", sublinha Kam Wing Chan.

Tanto Kam como Wang concordam que o sistema de "hukou" dificulta a mobilidade social, ao institucionalizar uma cidadania incompleta para muitos dos que nasceram em meios rurais.

Mas porque é que ainda existe, afinal, se há tanto tempo que a sua reforma é admitida pelo próprio governo? O professor da Universidade de Washington explica que uma redução do papel do sistema de "hukou" implica uma profunda reforma do sistema fiscal. Seria necessário, por exemplo, instituir um imposto sobre a propriedade que gerasse receitas para financiar o alargamento dos serviços públicos a toda a população, passando a incluir os migrantes.

Mas mais do que administrativo, o motivo é, acima de tudo, económico: "O sistema de ‘hukou’ ainda fornece um grande exército de mão de obra barata à economia chinesa, e muitos na China estão viciados em mão de obra barata". 

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