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China: Um país, um ou dois sistemas?

Hong Kong foi muitas vezes identificada como um "laboratório da democracia" para a China. Mas 150 anos de experiência servirão para alguma coisa? A vontade de Pequim de escolher quem pode ser escolhido pelos eleitores mostra que se vivem tempos complicados para a direcção mais centralista de Xi Jinping.

17 de Outubro de 2014 às 12:41
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Não é por acaso que a China sempre se considerou o Império do Meio. Ou seja, o centro do mundo, como um império, e o pólo central da civilização no mundo conhecido. Os impérios são unidades políticas com um extenso território, ou então incluem vários Estados com uma única autoridade. A riqueza económica, cultural ou tecnológica está concentrada no centro e não nas periferias. O que leva a que estas sejam menos importantes, sem grande influência nas decisões do centro. Muita da estratégia definida no centro e nas periferias pela nova liderança de Xi Jinping pode ser lida a partir deste contexto.


Na China, o conceito de "império" reflecte a ideia de um mundo organizado, onde a paz e a harmonia prevalecem porque os rituais, a música e o comando militar (como Confúcio explicava nos "Analectos"), provêm do filho-do-Céu. Centro do mundo civilizado, a China teria sempre de se confrontar com os povos menos civilizados. Assim se poderão perceber melhor os acontecimentos de Hong Kong, no Xinjiang, nos conflitos de delimitação nos mares do Sul da China ou na forma de relacionamento com Taiwan. Xi Jinping, já o mostrou, quer exercer uma autoridade reforçada (e as campanhas internas contra a corrupção têm servido para afastar críticos). E isso vai ter implicações notórias na forma como a China se moverá no contexto asiático e como lidará com dois territórios da periferia de base democrática, Hong Kong e Taiwan, porque o princípio de "um país, dois sistemas" parece ter muitas "nuances".


Os protestos de Hong Kong levantaram uma nova questão a Pequim neste seu relacionamento com a periferia: como agir quando a "agitação" acontece em sistemas democráticos. Porque Hong Kong vem levantar a questão de Taiwan: a projectada reunificação, dentro de um conceito de "um país, dois sistemas", como se fará? Como se manterá a autonomia democrática da ilha? Todo o processo que culminará nas presidenciais em Taiwan, em 2016, mostrará se os cidadãos da ilha desejam, ou não, que o partido pró-independência assuma as rédeas da governação, depois de anos de um namoro claro entre as actuais elites com Pequim. E, se assim for, outros desafios se colocarão.


Em Hong Kong, a questão aponta para raízes mais complexas: a maioria dos que desafiaram o poder de Pequim são muito jovens e são apoiados por uma elite universitária autónoma. Dentro de décadas, serão o poder nuclear de Hong Kong. A cidade foi muitas vezes identificada como um "laboratório da democracia" para a China e não apenas como vaso comunicante financeiro com o exterior. Mas 150 anos de experiência servirão para alguma coisa? A vontade de Pequim de escolher quem pode, depois, ser escolhido pelos eleitores, mostra que se vivem tempos complicados para a direcção mais centralista de Xi Jinping. Porque o efeito de contágio ao centro, onde uma nova classe jovem aspira a outros desafios, pode ser devastador para o princípio da "paz e harmonia".

 

Os protestos de Hong Kong levantaram uma nova questão a Pequim neste seu relacionamento com a periferia: como agir quando a "agitação" acontece em sistemas democráticos.


A mudança dentro do Partido Comunista Chinês (PCC) começou a verificar-se há algum tempo. Quando a ascensão de Xi Jinping para o poder se tornou irresistível. Quando se reforçou o papel hegemónico do partido. A chegada da chamada "geração perdida" ao poder tem raízes curiosas. E um futuro interessante, porque estará no poder mesmo depois da generalidade dos líderes ocidentais de hoje se terem afastado. É na história que também se tem de ler a nova elite chinesa: quando Mao Zedong lançou a tempestuosa Revolução Cultural, em 1966, Jinping tinha 13 anos e Li Keqiang tinha 11. Xi Jinping, numa entrevista em 2003, à televisão Central Chinesa, disse mesmo: "No passado, quando falávamos das nossas crenças, era tudo abstracto. Penso que os jovens da minha geração serão relembrados pelo fervor da era dos Guardas Vermelhos. Mas era emocional. Era uma tendência. E quando os ideais da Revolução Cultural não foram realizados, tudo se provou uma ilusão".


O poder da nova geração
Foi esta geração que chegou ao poder. Enquanto outra se retira em ordem. Mas as virtudes do modelo chinês, baseadas no confucionismo, vão manter-se. A meritocracia (baseada em exames) e a legitimidade de actuação garantem que, para o PCC, só os mais aptos chegam ao topo. Uma escolha piramidal assente em equilíbrios e facções. Uma cultura de poder diferente da ocidental, cuja legitimidade se baseia nas eleições. Os chineses buscam a legitimidade na execução e na actuação.


A coreografia mantém-se, mas os actores mudam. E Jinping tem ideias mais arriscadas. Hu Jintao, na despedida da liderança, falou da reforma da estrutura política. Mas isso, na China, não são eleições ou sistema judicial independente. Jintao foi claro: o PCC nunca seguirá a "rota diabólica" de mudar a sua cor e considerou que a firme liderança do partido é a chave para atingir os objectivos. A ideia, disse, é duplicar o rendimento médio dos chineses até 2020. E aumentar as reformas económicas sem copiar as democracias ocidentais. E isso faz-se percebendo as novas classes médias e combatendo a corrupção. "Ninguém está acima da lei", disse, e todos recordaram o escândalo de Bo Xilai, o antigo chefe do partido na cidade de Chongqing, que está a ser julgado. E foi aí que Hu Jintao também deixou clara a nova política marítima da China.


Recordemos que, em 2010, o Exército Popular de Libertação fez, pela primeira vez, exercícios navais nos mares do sul da China, algo que não sucedia desde o século XV, onde a China tinha uma poderosa presença naval nos mares do sul, antes da chegada de Vasco da Gama a essas zonas. Jintao referiu, no seu discurso, que é intenção da China tornar-se uma "potência marítima" em linha com o seu crescimento económico. Para explorar os recursos marítimos e salvaguardar os direitos e interesses marítimos da China.


A transição geracional começou em 2007 quando Xi Jinping e Li Keqiang foram promovidos à Comissão Permanente do Comité Central, que agrupa os homens mais poderosos da China. Os anos seguintes cimentaram as alterações na cúpula dirigente, num ambiente de secretismo, em que os gestos são mais importantes do que as palavras. A mudança não é apenas de líderes. É, sobretudo, de geração. Xi é também um homem com outras perspectivas. Gosta de cinema e é casado com uma cantora que, por acaso, é major-general das Forças Armadas chinesas.


A imagem do poder chinês transforma-se. O pai de Xi Jinping foi uma das vítimas da Revolução Cultural de Mao Zedong e ele próprio foi trabalhar para uma quinta com 15 anos. O seu pai, que manifestou as suas críticas ao lado de Hu Yaobang sobre a repressão de Tiananmen, foi um dos "pais" da zona económica especial de Shenzhen, símbolo do renascimento económico chinês. O seu afastamento após 1987 não impediu o filho de subir na hierarquia do partido. Não deixa de ser curioso que um dos mais ardentes críticos da subida de Xi Jinping fosse Bo Yobo, outro herói da revolução, que tudo apostou no seu próprio filho, Bo Xilai, que caiu recentemente em desgraça. Julgou-se que era uma geração mais "liberal". É cada vez mais evidente esse erro: o "liberalismo" é económico. Politicamente, o centralismo é maior.


A nova geração que chegou ao poder está melhor preparada, mas terá muitos problemas por resolver a curto prazo. Desafios tais como reorientar a economia chinesa, que necessita de crescimentos rápidos para evitar turbulências sociais e encontrar uma alternativa para a economia de baixos salários pela qual era conhecida. Isto num quadro de centralismo político. Para não falar da ameaça ambiental, vastíssima.


Já em Setembro de 2008, Xi Jinping, na cerimónia de abertura da escola central do partido, definia um rumo. Aí definiu a estratégia de transformar o PCC, de um partido "revolucionário", num "partido do poder". O PCC deveria deixar de ser o partido da revolução constante e da luta de classes (o centro do pensamento marxista e maoísta), para se solidificar como o partido que ocupará o poder no longo prazo. Porque há diferenças fulcrais entre liderar uma revolução e dirigir um país. Afinal, um partido do poder não tem de intensificar a luta de classes, antes deve satisfazer os interesses de todos os grupos sociais.


Para a nova geração de líderes chineses, a mentalidade revolucionária ainda influencia a percepção do PCC sobre os problemas actuais, nomeadamente na resposta aos conflitos sociais cada vez mais visíveis no país. Nos corredores do poder, na cidade proibida moderna, Zhongnanhai (a residência dos líderes chineses), discutem-se os nomes que sobem e afastam-se outros. Até agora com paciência. Mas as constantes viagens de Xi Jinping ao estrangeiro, as apostas na nova "rota da sede", rumo à Europa, a constante luta anti-corrupção, as frases sobre Taiwan ou a postura sobre Hong Kong, mostram, contudo, um líder com mais pressa do que os antecessores.


Xi Jinping fala um inglês razoável e tem uma imagem sóbria e atraente. A sua confiança e a maneira como transmite essa segurança também o distinguem. Nos últimos anos, foi preparado para o seu futuro posto. A imprensa chinesa tem-se desdobrado a publicar artigos de Xi Jinping sobre a arte de liderar e sobre as qualidades pessoais para se governar 1,3 mil milhões de pessoas. No fundo, parece estar a criar-se um novo culto da personalidade que lembra velhos tempos.


Xi Jinping tem também surpreendido porque utiliza muitos aforismos maoístas para definir as qualidades de liderança, reiterando (ao contrário, por exemplo, de Deng Xiaoping) que "a qualidade e a habilidade do número um é a chave" para o sucesso do partido e do Estado. "A possibilidade de um comboio viajar rápido depende de quem comanda a locomotiva", escreveu. Para liderar, considera que é necessário ter excelentes qualificações e carisma, mas também ser capaz de criar a unidade. Xi diz que "um líder deve ter uma fé firme e ser resoluto estrategicamente". E isto faz-se com a liderança do PCC: "temos de ter um objectivo; uma cadeia de comando e uma autoridade coordenadora; uma decisão e uma estratégia; uma (forte) dose de firmeza e devoção; e uma direcção de pensamento".


Xi pensa também que o grande líder deve focar-se na imagem e deixar aos subordinados a concretização das políticas. Em troca da obediência. Só Mao Tsé-Tung, entre os anteriores líderes, teve uma tão forte teoria da liderança. Em 1942, lembrava: "instaurar a liderança sobre as ideias é a primeira prioridade de qualquer quadro de topo". Deng Xiaoping considerava o contrário. Em 1980, no discurso sobre a reforma dos sistemas de liderança, disse: "os sistemas e as instituições do partido e do Estado são muito mais importantes do que os indivíduos". Os seus sucessores partilhavam das teses de Deng. Hu Jintao era mais comedido, falando de "harmonia". A ousadia de Xi choca com a política dos seus antecessores, como demonstra a sua campanha interna contra a corrupção e a sua mais agressiva táctica contra o Japão e os Estados Unidos. Mas como reagirá uma China em mutação face a um novo centralismo e autoritarismo?


O trauma da queda da URSS
Não deixa de ser curioso que, recentemente, tenha sido divulgada uma conversa interna de Xi, em Dezembro de 2012, sobre o fracasso do Partido Comunista da União Soviética, criticando "traidores" como Gorbachev e Ieltsin: "Quando o Partido Soviético estava a colapsar, não houve uma pessoa que fosse homem suficiente para mudar a maré". Aquele que foi o seu principal rival, antes de cair em desgraça, Bo Xilai, também recuperava o passado. Em Julho de 2011, durante as comemorações dos 90 anos do PCC, a glorificação do papel de Mao Zedong foi o seu momento alto. A assistir a esta glorificação do passado, que definia simbolicamente a liderança de Bo Xilai na megalópolis de Chongqing, estava o diplomata americano Henry Kissinger. Hoje Xi Jinping, recuperando Mao, relembra também que é o herdeiro da liderança que venceu após a violência de Tiananmen. A questão é que se assiste à "limpeza" acentuada da imagem liberal de Deng Xiaoping e do que legou ao PCC.


A questão democrática parece importante. Mas será que a China alguma vez conseguirá usar o "laboratório" de Hong Kong ou mesmo de Taiwan para uma redefinição interna? Há quem acredite que poderá continuar a crescer economicamente sem se democratizar segundo os padrões ocidentais. Mas também não será evidente que o caminho comum entre capitalismo e democracia no Ocidente está cada vez menos a funcionar em paralelo?

 

Ilustrações de Luís Simões. Viajante português, Luís Simões é o autor das ilustrações cedidas ao Negócios. Ao autor, os nossos agradecimentos. 

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