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Helena Roseta: Não é possível fazer política sem compaixão
Helena Roseta fez parte da Assembleia Constituinte em 1975 e as temáticas da habitação foram desde sempre a sua grande paixão. Agora, novamente no Parlamento, coordena o grupo de trabalho que prepara a Lei de Bases da Habitação. Ao longo dos anos, vimo-la várias vezes de lágrimas nos olhos. Mas nem sempre foi de emoção, avisa. Ela também tem "raivas".
Na primeira aula com Nuno Portas, na Faculdade de Arquitectura, disse que tinha escolhido aquele curso porque queria "resolver o problema da habitação em Portugal".
Sim. Mas também fui muito influenciada pelo próprio professor, que é ainda hoje uma grande referência da minha vida. Ele "abria-nos" a cabeça. Era, e é, uma pessoa absolutamente extraordinária, com uma capacidade crítica quase ilimitada. Ensinou-nos não só a ver a arquitectura, mas sobretudo a questionar o mundo.
Antes do 25 de Abril, isso era complicado.
Era e nós tínhamos problemas na escola. O próprio Nuno Portas foi perseguido.
Voltou esta legislatura ao Parlamento e coordena o grupo de trabalho que está a elaborar a Lei de Bases da Habitação. Esta lei é a sua grande missão de vida?
De certa maneira é. Eu fiz muitas coisas. A partir de dada altura, quando saí da Ordem dos Arquitectos, em 2007, decidi: agora tenho 60 anos, está na hora de pensar em trabalhar para a minha cidade. Fui ter com o Partido Socialista, a que pertencia na altura, e ofereci-me para participar nas autárquicas numa lista para Lisboa. Nem resposta me deram. Aí pensei: não vou por dentro, vou por fora. Entreguei o cartão de militante e criei o movimento Cidadãos por Lisboa. Quando anunciei à Lusa que me iria candidatar à Câmara de Lisboa, não tinha ninguém. Anunciei isto da boca para fora. Depois, a partir daí, as pessoas começaram a aproximar-se. Foi outro momento muito refrescante porque era uma candidatura diferente, juntou-se muita gente que já me conhecia, ou não, mas que também estava um bocado farta dos partidos e queria uma coisa mais solta, mais liberta, e esse movimento está muito virado para as questões da habitação, porque tínhamos a consciência de que havia problemas graves.
Porque é que acredita tanto nos movimentos de cidadãos?
Eu não acredito tanto, eu preciso de movimentos de cidadãos. Os partidos são importantes, evidentemente, porque dão uma certa estabilidade ao regime democrático. Representam a pluralidade de opiniões. Mas têm um modo de funcionar (há "nuances", não são todos iguais) ainda muito hierárquico e a vida mudou. Hoje vivemos em rede. As coisas já não funcionam de cima para baixo. Os movimentos são mais ágeis e é mais fácil rapidamente mobilizar pessoas. O problema dos movimentos é que, muitas vezes, desaparecem. Tão depressa se constituem como se desfazem porque não têm uma estrutura por trás.
Não há uma disciplina.
Não é só a disciplina. Não têm objectivos de longo prazo. É relativamente fácil constituir um movimento para resolver um problema, fazer uma petição, fazer uma crítica ou ir atacar uma situação qualquer. Mas depois, continuar no processo, dar solução, continuidade, essa é a falha maior dos movimentos de cidadãos. Não são criados para isso. Existem mais para a mobilização e para a abertura da agenda política.
Concretamente, do que é que não gosta nos partidos políticos?
Da questão hierárquica. A organização piramidal que ainda é dominante nos partidos. Há uma liderança, depois existem as lideranças intermédias, depois as bases, depois os simpatizantes que estão de fora e que, de vez em quando, são ouvidos, mas pouco. Acho que as coisas hoje em dia não funcionam assim. As lideranças que eu reconheço são as lideranças que têm autoridade moral, que são as referências. E muitas vezes as lideranças partidárias não são referências. Para mim, são muito mais importantes as referências do que as lideranças. Isto tem muito que ver com o que aprendemos na vida com pessoas tão fascinantes como o Nelson Mandela. Já muito depois de deixar os cargos que tinha, ele era uma referência mundial. Não precisava de mandar em ninguém.
Portanto, o estatuto de independente é algo que quer manter.
A independência é uma atitude interior. A pessoa pode estar num partido e ser independente, não se sujeitar àquilo que não quer.
Mas é mais difícil. Existe uma disciplina de voto.
A disciplina de voto não é uma coisa sagrada.
Ainda não está cansada da política?
Não, porque há sempre coisas para fazer. Quando se consegue pegar nas coisas de uma maneira divertida e criativa, até as actividades aparentemente mais cansativas ou enfadonhas se tornam uma festa. Eu recordo que estive um ano e meio fechada na casa da Natália Correia a fazer o levantamento do espólio – 14 mil livros, milhares de manuscritos, não sei quantas obras de arte –, que era um trabalho, à partida, assaz e enfadonho, e aquilo foi um divertimento permanente. Estávamos sempre a descobrir coisas que não conhecíamos da Natália. Eram gargalhadas de meia-noite.
Quando diz "nós", era quem?
Era um grupo de pessoas a quem eu pedi ajuda. Sozinha, não conseguia fazer.
Tinha uma relação muito próxima com a Natália Correia?
Sim, é outra pessoa que foi uma referência para mim. Na alegria de viver, na coragem, na poesia. Tinha muito talento. Eu tenho um respeito muito grande pelas pessoas que sabem escrever, pintar, desenhar ou cantar. Muitas vezes, o Sá Carneiro dizia-nos: ninguém se vai lembrar quem era o primeiro-ministro há 100 anos, mas vão saber quem eram os escritores.
Foi gerente, entre 1991 e 1993, do bar Botequim, da Natália Correia. Como foi essa experiência?
O marido da Natália morreu e ela era absolutamente incapaz das questões quotidianas. A Natália não sabia assinar um cheque, não sabia cozinhar... Aquilo [o Botequim] estava de pantanas. Tinha cinco anos de contabilidade por fazer, impostos por pagar. Juntámos um grupo de quatro ou cinco amigos e não comprámos o Botequim, comprámos uma dívida. Negociámos com o banco, encontrámos uma solução e depois estivemos ali dois anos a puxar por aquilo, a fazer jantares e leilões para limpar a dívida. Quando se limpou a dívida, saí. Fiz coisas que nunca me passariam pela cabeça. Mas as coisas vêm ter connosco.
A sua vida foi sempre assim? As coisas foram chegando?
Sim. Nunca pensei fazer intervenção política. Eu aparecia nas reuniões do PPD, o meu marido era amigo do Sá Carneiro, ia às reuniões do grupo de estudos e depois, a uma certa altura, perguntaram-me: mas porque é que não és candidata [à Assembleia Constituinte]? Fui presidente da Câmara de Cascais porque também vieram convidar-me. Eu tinha acabado de sair do Parlamento em conflito com o PSD, por uma questão de consciência. Entreguei uma cartinha de renúncia e, pronto, renunciei ao mandato. Nessa altura, vem um grupo de Cascais dizer-me: vai haver eleições, não queres vir? O PSD estava em quarto lugar e ganhámos. Perante um desafio, a gente tem de pegar nele e dar-lhe a volta. Mais tarde, com a Ordem dos Arquitectos, foi a mesma coisa. Nunca me passou pela cabeça concorrer. Veio um grupo de arquitectos jovens desafiar-me. Já havia duas listas apoiadas pelo Siza Vieira e pelos arquitectos todos conhecidos. Eu não era apoiada por ninguém conhecido. Era tudo malta nova. Miúdos. Está bem, então vamos fazer uma lista, é para perder, mas vamos a isso. Depois ganhámos. A minha vida é feita constantemente de situações novas, surpreendentes, em que a gente dá a volta. Umas vezes correm bem, outras não. Mas estou sempre disponível para tentar ver as coisas de outra maneira.
É optimista?
Não sou optimista irritante como o António Costa. Mas gosto de acreditar que as coisas boas podem acontecer.
Envolve-se sempre com o coração nas coisas que faz?
Com o coração e com a cabeça. O António Damásio ensinou-nos que essa coisa da razão sem emoção não existe. Razão e emoção é que funciona.
Mas comove-se com facilidade. É uma característica sua.
As pessoas viram-me já várias vezes de lágrimas nos olhos e nem sempre foi de comoção. Às vezes, é de irritação. Eu também tenho as minhas raivas. E quando me enervo e me indigno, podem vir-me as lágrimas aos olhos. Mas, quanto mais velha estou, mais sinto capacidade de compaixão. Acho que não é possível fazer política sem compaixão. Infelizmente, a nossa política hoje está muito vazia de compaixão. De compaixão verdadeira, genuína.
Mas isso muitas vezes não é confundido com fraqueza?
Isso é um traço machista do discurso político.
A ministra Constança Urbano de Sousa não foi criticada por se ter comovido na tragédia de Pedrógão Grande?
Não creio que seja por ter chorado. O Presidente Jorge Sampaio também chorou e ninguém disse que ele era mole.
É por ser mulher, então?
Não. Ela está a ser apontada porque infelizmente, sob o mandato dela, aconteceu esta tragédia. É natural que as pessoas questionem. Mas não creio que seja propriamente uma pessoa fraca. Ela pode não transmitir uma actuação mais determinada, mas isso é o feitio de cada um. Não é por ser mulher. Há muitos homens que também não transmitem nenhuma espécie de determinação.
Um adversário seu na corrida à Câmara de Cascais, em 1982, disse que a Helena não podia ser presidente porque chorava.
Foi o [Álvaro] Veiga de Oliveira. Era do Partido Comunista, depois acabou por sair. Eu tinha uma grande ternura por ele. Ficámos muito amigos. Magoou-me mais ele dizer isso porque tinha ternura por ele do que propriamente a frase em si. Se fosse dita por uma pessoa de quem eu não gostasse, era-me indiferente.
Isso mudou alguma coisa em si?
Não, não mudou nada. As pessoas são como são. Deus nos livre do cinismo. Odeio hipocrisia.
Mas a política não está pejada disso?
Está. Mas, felizmente, há excepções. A gente tem de se defender dessa dita necessidade de ser duro. Se os indivíduos forem como são, com as suas próprias características, serão muito melhores políticos do que se começarem a esconder a sua maneira de ser ou a defender-se das emoções. A Natália Correia dizia que a política sem emoções era chata. E, em Portugal, muitas vezes é chata. As pessoas não se riem e não querem mostrar que têm emoções. Torna-se uma coisa insuportável.
Porque é que acha que as pessoas têm tanto medo de mostrar emoções na política?
É um tabu machista. Um homem não chora. A política foi sempre um espaço dominado por homens. Mas hoje em dia acho que já não é assim. Muita gente já evoluiu.
O Parlamento aprovou recentemente a lei das quotas de género nas empresas públicas e cotadas. Faz sentido?
Alguém me disse que as quotas de género são um bocadinho como os aparelhos nos dentes. Não são muito bonitas, mas lá que endireitam, endireitam. Corrigem. Tem de haver. Se estivermos à espera que aconteça naturalmente, não acontece. Por uma razão simples. Isto é um universo de "numerus clausus". Os lugares são sempre os mesmos. Portanto, para entrarem mulheres, têm de sair homens. E eles não saem.
O que é que foi mais difícil enquanto mulher e mãe na política?
Eu tive vários privilégios. O primeiro foi: do lado do meu marido, havia uma aceitação grande do meu protagonismo e das minhas intervenções. Segundo: eu tinha apoio para as crianças. Isto é uma coisa absolutamente fundamental. Tive o apoio de uma senhora alentejana, a Catarina, a quem devo por ter criado as minhas filhas. E depois, a certa altura, também percebi que há algo que a gente tem de saber fazer. Perguntavam-me: como é que consegue conciliar? É uma pergunta que fazem sempre às mulheres e que, não sei porquê, não fazem aos homens. Eu respondi sempre: eu não concilio. Eu adio e dissocio. Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Costumava dizer sempre: não estou muito tempo com as minhas filhas, mas o tempo que estou, estou completamente. E isso é que eu acho que às vezes é difícil na conciliação. As pessoas nem estão completamente a trabalhar nem estão completamente com os filhos.
Também fruto das tecnologias.
Sim. Isto [o telemóvel] é muito invasor. A pessoa tem de estar sempre disponível para tudo. É um erro. O direito de desligar é uma coisa fundamental.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, teve a preocupação de dar peso igual na composição do executivo a homens e mulheres. Acha que vai ser uma boa experiência?
Agora é a prova dos factos. Vamos ver se as pessoas são capazes de dar boas provas. O facto de a sociedade francesa ter reagido tão bem às várias coisas que Macron apresentou, e em particular a essa, mostra que já evoluímos muito. Para mim, a coisa principal que decorre da paridade é a mudança das agendas. A agenda política, quando há mais mulheres, muda logo. Torna-se mais próxima da vida.
Está surpreendida com a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa? Já o conhece há muito anos.
Não. Sei que o Marcelo é uma pessoa muito capaz, brilhante, muito inteligente e também muito afectivo. Incapaz de estar quieto. Tem-me surpreendido positivamente o lado afectivo, no sentido de proximidade.
Portugal precisava disso?
Penso que sim. Tivemos líderes demasiado frios. Pouco compassivos, pelo menos na aparência. Um Cavaco Silva, um Passos Coelho, nunca mostraram ter sentimentos de compaixão para com o sofrimento das pessoas. Embora pudessem sentir humanamente, não revelavam isso. É importante diminuir esta distância que há entre o poder político e os cidadãos. Já tenho dito isto a muita gente que tem responsabilidades políticas: na dúvida, é melhor darmos mais força e mais poder aos que não têm, aos que estão a passar mal, aos que têm menos condições, aos pobres. O Marcelo está sempre a chegar ao estrato mais esquecido, mais abandonado, e faz bem.
Como foi a experiência de ter sido directora do Jornal Novo?
Foi uma experiência muito intensa. Eu fazia coisas a mais naquela altura. Era vereadora na Câmara de Lisboa, com o pelouro da habitação, dirigia o Jornal Novo e depois estava na Assembleia da República. Era impossível. Mas foi muito importante porque tinha de fazer editoriais todos os dias. Perdi o medo da página branca e comecei a escrever melhor. Esse exercício diário foi quase um curso de escrita. Deu-me uma ferramenta que não tinha. Era um jornal muito iconoclasta. De certa maneira, foi antecessor do Independente. Aliás, foi lá no Jornal Novo que, aos 15 anos, o Paulo Portas escreveu um texto que me fez ir a tribunal.
O Paulo Portas deu-lhe problemas aos 15 anos?
Sim. Escreveu uma carta de leitor que eu mandei publicar. Recebi um telefonema da Presidência da República. Era a mulher do General Eanes. Aquilo depois foi complicado. Tive uma acção em tribunal, que acabei por ganhar passados alguns anos. A carta chamava-se "As três traições". Os três "traidores" eram o Mário Soares, que era primeiro-ministro, o Freitas do Amaral, que estava coligado com o Mário Soares, era um governo PS/CDS e o Ramalho Eanes, que era Presidente da República. O Mário Soares e o Freitas do Amaral não devem ter gostado nada daquilo, mas não ligaram. O General Eanes, como militar, traidor não é uma palavra que pudesse aceitar. Mas, na sentença, o juiz acabou por dizer que era liberdade de pensamento.
O General Eanes ficou aborrecido consigo?
Ficou.
Mas já fizeram as pazes?
Sim. Tenho muito respeito por ele e pela mulher. Damo-nos muito bem. Foi por causa da Natália Correia, de quem eles eram muito amigos, que acabámos por ter depois uma aproximação grande.
Quando volta para a Assembleia da República, em 2015, qual era o seu objectivo? Voltar a trabalhar o tema da habitação?
Era. Quando fui para a Câmara, queria fazer alguma coisa em Lisboa, pôr em prática tudo aquilo que penso e acredito na área da habitação. Passei uma vida toda a estudar estes temas, a fazer conferências, a escrever artigos sobre isto. Estava na altura de provar se era capaz. Tive quatro anos muitíssimo intensos com o pelouro da habitação e quando o António Costa me convidou para vir para aqui [para o Parlamento] eu disse: é agora. Agora vou conseguir fazer mais. Fui eu que propus que houvesse um grupo de trabalho permanente para as matérias de habitação. O PS acabou por sugerir o meu nome para coordenadora. É um grupo de trabalho em que eu procuro muitas vezes a unanimidade, que é uma coisa que neste Parlamento não é muito frequente. Temos conseguido. Não há crispação, temos uma relação muito cordial. Já no plenário sinto, muitas vezes, que alguns grupos parlamentares parecem mais claques do que propriamente grupos parlamentares. Temos de respeitar a opinião dos outros. Isso é a base da democracia.
Foi uma defensora deste modelo governativo, da chamada geringonça.
Sim, muito antes de ela existir. De certa maneira, o que andámos a fazer na Câmara de Lisboa, quando o António Costa era presidente e eu vereadora, foi um modelo daquilo que viria ser a geringonça. Ele habituou-se a conviver com este modelo.
O estado de graça do Governo parece ter acabado com a tragédia de Pedrógão Grande e com o assalto a Tancos.
Uma coisa eu sei. Quando há um problema grave é que se mostra a qualidade das pessoas. Está na altura de vermos até onde é que este Governo tem capacidade de fazer frente a uma situação que realmente é gravíssima.
Deveriam ter rolado cabeças de ministros?
Isso é um complexo que existe na política. Rolar cabeças não resolve problema nenhum. Esta coisa, em Portugal, de cada vez que há um problema se pedir a cabeça de alguém, para mim, é um atraso de vida. Nós não estamos no tempo da Revolução Francesa com a Maria Antonieta. Já abolimos a pena de morte há muito tempo. Só a própria imagem já me choca. Pode haver pessoas a dizer: não tenho condições para continuar. Mas isso é uma coisa que só os próprios podem chegar a essa conclusão. Também pode acontecer que o primeiro-ministro entenda que não tem condições para manter a confiança em A ou B. Mas é o próprio que tem de chegar a essa conclusão. Acho que as pessoas, se precisarem, devem sair pelo seu pé. Para mim, tem mérito quem é capaz de fazer frente. Não é quem vai embora. Agora, há alturas em que não se tem essa condição.
Fez sentido António Costa aproveitar o pedido de demissão de três secretários de Estado para remodelar o Governo?
Não conheço as razões do primeiro-ministro para fazer esta remodelação. Mas aplaudi a criação da secretaria de Estado da Habitação que só peca por tardia. Inúmeras vezes alertei o António Costa para a necessidade de termos uma política de habitação própria e um interlocutor no Governo com mais disponibilidade do que tínhamos. Sempre me bati por isso.
Vai facilitar a articulação entre o Governo e o grupo de trabalho que coordena?
É evidente. Não só da lei, mas de todas as políticas de habitação. É muito bom que haja agora a equipa e uma pessoa muito capaz, que é a Ana Pinho.
Já conhecia a nova secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, da Câmara de Lisboa.
Sim. Ela conhece muitíssimo bem toda a problemática da habitação. É uma excelente escolha. Trabalhou directamente com o António Costa na autarquia. É alguém em quem ele tem confiança. Isso é importante nestas coisas, haver alguma cumplicidade e confiança entre as pessoas. Não precisam de um tradutor para falar um com o outro.
O primeiro-ministro defende que é essencial que jovens e classe média possam arrendar casas no centro de Lisboa, mas isso não pode travar o turismo, que é fundamental para a economia.
Ele tem razão.
Mas isto não é consensual no PS. Houve um projecto de lei sobre arrendamento local de curta duração, apresentado por alguns deputados socialistas, que dava poder de decisão ao condomínio, e que foi chumbado no Parlamento.
O projecto estava mal feito, foi uma coisa simplista, não ouviram ninguém. Não perceberam que o fenómeno é complexo. Tem de ser abordado de vários ângulos. Fazer leis só para preencher um buraquinho dá asneira porque, às vezes, criam-se buracos maiores. O fenómeno é complexo, nós estamos a discuti-lo, a perceber o que é que se pode fazer. Há, com certeza, legislação a fazer mas, se calhar, mais importante do que a questão dos condomínios há outras matérias. Nomeadamente qual é o papel das autarquias, qual é o papel regulador do Estado, se as autarquias têm poder para estabelecer determinadas condicionantes ou não. Ele está cheio de razão, há uma carência absoluta de habitação no centro, mas não podemos esquecer que continua a haver uma camada pobre que não tem acesso à habitação. Basta olhar para a periferia de Lisboa. Continuamos a ter bairros de barracas, bairros em condições muitíssimo precárias. O problema não está resolvido. Desde 2009 que não há, no Orçamento do Estado, um tostão para intervir nestes bairros. É um problema gravíssimo. A dimensão é muito maior do que as pessoas possam imaginar.
Foi na periferia de Lisboa que despertou para as desigualdades, quando ainda era jovem.
Foi nas cheias, em 1967. Morreram 500 pessoas numa noite. Hoje estamos a falar de 64 vítimas em Pedrógão Grande e é um choque brutal. Agora imagine o que é ter 18 ou 19 anos, que era a minha idade naquela altura, e perceber que tinham morrido 500 pessoas. Eu estava a estudar Arquitectura e percebi que aquelas pessoas que morreram moravam em construção clandestina. Apercebi-me de que isto era uma desigualdade tremenda. E a arquitectura era uma grande ferramenta para intervir nessa área. O que me angustiava eram os bairros de barracas. Isto talvez seja uma herança da minha mãe, que tinha uma enorme sensibilidade à injustiça e às questões sociais. Tenho de socorrer primeiro quem está pior. Isto não dá direito a grandes currículos académicos, nem a grandes currículos arquitectónicos. Só agora é que começa a estar na moda, na arquitectura a nível mundial, o trabalho com os bairros mais pobres, com as periferias. Temos vários arquitectos a mostrar que junto dessas populações se pode fazer um trabalho de qualidade e isso foi o que sempre sonhei. Talvez tenha sido antes de tempo, mas foi sempre isso.