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Gisela João: O fado é música de intervenção romântica

Gisela João gosta de se ver como uma espécie de “doutora do coração”. Em Novembro, lançou o álbum “Nua”, a continuação perfeita do seu primeiro disco, de 2013, que deixou rendida a crítica.

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O fado é música de intervenção romântica. Quem o diz é Gisela João, que gosta de se ver como uma espécie de "doutora do coração". Porque quando canta intervém nos assuntos do coração, do nosso coração, que todos somos capazes de sentir e que todos sentimos de maneira diferente. Como ela que, garante, nunca canta um fado da mesma maneira. O que levou a menina de Barcelos a apaixonar-se pelo fado foi a forma como este "dá toda a força à palavra" e como textos simples conseguem dizer tanta coisa. A conversa decorreu numa amena tarde de Inverno,  no Lux, em Lisboa, onde Gisela João falou que se desunhou.


Um dos aspectos mais aborrecidos quando se lança um disco novo deve ser esta sucessão de entrevistas.

Eu gosto! É uma oportunidade de falar sobre o trabalho que fiz. Quando estou na pele de público, interessa-me perceber o que a pessoa tem a dizer, como gravou, como chegou até ali.

 

Não tens dificuldades em falar sobre ti?

Não, falo bué. Falo que me desunho! [ri-se]

 

O que sobra hoje da menina de Barcelos que gostava de cantar sozinha no duche?

Independentemente de sermos cantores ou não, vamos sempre tornando-nos pessoas diferentes, vamos crescendo e amadurecendo. Continuo a mesma pessoa, mas com uma tensão maior nas costas, de responsabilidade. Por causa da expectativa que as pessoas têm quando ouvem o meu nome.

 

E do facto de teres perdido anonimato?

Sim. Aflige-me muito quando vejo aqueles programas, estilo "Ídolos", e oiço os miúdos dizerem que querem ser famosos. Não querem ser cantores, querem ser famosos. Isso é muito vago. E é vazio porque o ser conhecido é vazio. Mas sim, esse lado da privacidade é o que se perde. Mas a pessoa em si, falando de mim, é que tem de controlar essa parte da privacidade, perceber o que é que dá, até que ponto.

 

Vendo a história de tantos cantores, parece contar muito mais a perseverança e o trabalho do que o talento. Mas, quando olho para ti, tenho a sensação de que não tiveste de contrariar nada e que as coisas aconteceram naturalmente.

Eu tive de batalhar muito, filhote [responde quase zangada]. Muito. Eu venho de Barcelos. Canto desde pequenina. E cantando fado, eu não era da cidade do fado. Quando cheguei a Lisboa, não sabia como eram as dinâmicas das casas de fado, como era o meio, há toda uma linguagem que eu desconhecia. Quando cheguei, fui cantar para o Sr. Vinho e quando gravei o disco, aí sim, é que as coisas aconteceram naturalmente. As pessoas gostaram, e ainda bem...

 

Tive de batalhar muito. Venho de Barcelos. Quando cheguei a Lisboa, não sabia como era o meio, há toda uma linguagem que desconhecia.  

 

Vou explicar-me melhor: não tens músicos na família, nunca aprendeste música, nunca tiveste aulas de canto. Esse teu dom de cantar nasceu e cresceu contigo. Quando vieste para o Sr. Vinho, já cantavas como cantas hoje. Aí há uma certa naturalidade.

Sim, aí é verdade. Mas a forma de chegar às pessoas, de entrar no meio, isso foi difícil.

 

Porquê o fado? As meninas e adolescentes de Barcelos não andavam com certeza a cantar, nem sequer a ouvir, fado…

Divirto-me sempre a contar essa história. Eu era miúda e sou a mais velha de sete. E tomava conta dos meus irmãos. Lembro­-me de que éramos ainda só quatro e eu andava na segunda ou terceira classe quando ouvi o "Que Deus Me Perdoe" e achei que aquele poema era sobre mim.

 

Era um poema [de Silva Tavares, que fez também a letra da "Casa da Mariquinhas"] cantado pela Amália.

Sim. Achava que aquela senhora estava a cantar sobre mim: se a minha alma fechada/se pudesse mostrar/o que eu sofro calada/se pudesse contar/ toda a gente veria/quanto sou desgraçada/quanto finjo alegrias/quanto choro a cantar. Foi o poder da poesia que me fez prender ao fado. Um texto muito simples pode dizer tanta coisa e falar de tantas vidas ao mesmo tempo! Naquele momento, quando ouvi aquele poema, ouvi a minha vida. Eu que era pequenina e queria brincar e fazer as minhas birras de criança, não podia porque tinha de ser o exemplo para os mais novos. Se as pessoas soubessem o quanto está cá dentro, o quanto choro a cantar, quando eu cantava havia qualquer coisa que se libertava cá dentro. Sabes quando estamos a desabafar com alguém? Quando canto, sinto que estou a desabafar. Já sentia isso quando era miúda. E então apaixonei-me por aquilo! Comecei a cantar nas festas de escola, de fim de período, de Natal, e numa espécie de minichuva de estrelas que uma senhora dos círculos católicos barcelenses organizava na cidade.

 

Já cantavas outros fados?

Cantava também o "Ai Mouraria". E o "Tudo isto é fado". Na escola primária, tinha aulas de tarde e no intervalo ficava muitas vezes na sala de professores a cantar.

 

De Barcelos vais para o Porto e daí para Lisboa, onde vives hoje. Qual é a diferença entre viver em Lisboa ou no Porto?

São diferenças gigantes...

 

Também depende do bairro onde vivias no Porto e onde vives em Lisboa.

Não interessa. O que interessa aqui é a cidade grande. Gostava que o resto do país pudesse ter o que tem a cidade grande. A história da descentralização é uma peta pegada! Lisboa está ao nível de qualquer grande cidade europeia e o resto do país nem aos pés chega. É uma questão de oportunidade. O Porto evoluiu muito, mas Lisboa também evoluiu, e mantém sempre uma "décalage" muito grande. Aqui há muito mais oferta cultural.

 

Sei que sentiste uma grande diferença quando vieste viver para Lisboa e conheceste Alfama e a Mouraria, onde, descreves, as pessoas respiram fado.

Sim, em relação ao fado, foi uma diferença, meu Deus!

 

Mas não achas que esse lado mais genuíno está a perder-se com a invasão de turistas?

Acho que se está a perder em relação a tudo. Um dos traços de personalidade de que eu não gosto nos portugueses – nós temos muitas coisas boas, atenção – é acharmo-nos sempre pequeninos e que o que é caro e estrangeiro é que é bom. Se eles vêm, ficamos todos contentes. É preciso cuidado para não perdermos a nossa identidade. Em 2013, quando publiquei o meu primeiro disco, cantei uma letra nova para a "Casa da Mariquinhas", e na altura perguntei-me como estaria a Casa da Mariquinhas se passasse por lá hoje. Esta letra é um olhar ao espelho sobre o nosso país.

 

Esse fado já tinha várias versões [ao longo do tempo, sucederam-se diferentes versões da letra que foram imaginando a evolução desta casa de fados]...

Eu pedi à Capicua para escrever e ela lá escreveu sobre as casas velhas, as pessoas que já nem se lembram de quem era a Mariquinhas, tudo esburacado, uma tabuleta a dizer que se vende. No outro dia, ela escreveu uma versão actualizada da Mariquinhas [na revista Visão], sobre o que acontece hoje em dia: agora é o Hostel da Mariquinhas. A comida portuguesa é super-requintada, as sardinhas já vêm em pão integral sem glúten e sem sal; alfacinhas só mesmo a "password" da internet porque o resto é tudo "camone".

 

Ainda cantas em casas de fado?

Não.

 

Mas o que sentes quando cantas para pessoas que não entendem português?

Gosto de cantar. Dá-me muito gozo cantar para os portugueses porque percebem a língua e todo o ritual. Para nós, portugueses, é uma espécie de religião. Para além da língua portuguesa, temos outra língua em Portugal que é esta coisa melancólica, cómica, castiça, trágico-cómica... É todo um ambiente que fica criado, muito bom. Mas também há um lado mau quando são portugueses.

 

Qual?

Quando comecei a cantar nas casas de fado, avisaram-me: "Quando há muito barulho é porque são portugueses, já conhecem tudo e não estão interessados." Eu estranhei. Mas de facto acontece isso. Com os estrangeiros, é como cantar para crianças. As crianças falam português, mas temos de lhes dar uma perspectiva da coisa, explicar o que estamos a cantar. Com os estrangeiros é igual, não percebem puto do que eu estou a dizer, e por isso procuro explicar-lhes do que fala o poema. Mas mesmo quando não percebem nada, choram muito. Por exemplo, no final do concerto em Leuven (Bélgica), um senhor veio falar comigo, emocionado, até eu fiquei emocionada: "Não quis ver as traduções [distribuídas no início do espectáculo]. Estava a ouvi-la e a lembrar­-me de tantas coisas da minha vida e a reviver tanto." E perguntei-lhe: "Esqueceu­-se dos seus problemas do dia-a-dia, não foi?" "Sim, esqueci."

 

Gisela João
Nua
Valentim de Carvalho
Novembro de 2016

"Chama-se 'Nua' porque não pode ser Gisela João 2", explica a fadista em entrevista ao Negócios. E é isso mesmo. Este disco é a continuação perfeita do primeiro álbum, de 2013, que deixou rendida a crítica - e o público. Três anos depois, a fadista repete a receita e repete o sucesso. Gisela João volta a revisitar fados consagrados por grandes vozes, designadamente quatro cantados por Amália, sem que se perca, admiravelmente, na comparação. Para isso contribui também o naipe de músicos que a acompanham, a produção de Frederico Pereira (que já produziu o primeiro álbum) e a mão de Hélder Moutinho sempre por perto. O caso de "Labirinto ou não foi nada" (Fado Vianinha, com letra de David Mourão-Ferreira) é exemplar, onde a voz da fadista se junta a um solo de guitarra arrepiante, naquela que é provavelmente a faixa mais intensa do álbum. Mas Gisela João também arrisca neste álbum quando atravessa o Atlântico para pegar em dois sambas de Cartola. Uma vez mais, a fadista atreve-se a cantar sambas interpretados pelas melhores vozes do Brasil e, mesmo assim, consegue fazer magia num deles: em "As rosas não falam", Gisela resgata um fado soberbo que ali estava escondido. Pelo caminho, o ouvinte ainda tem direito a um fado original belíssimo, composto por Frederico Pereira. Destaque ainda para "Noite de São João" (fado triplicado), onde Capicua assina uma letra de vivacidade contagiante, confirmando o seu talento na escrita para fados. 

 

Por falar em sentimentos, sentes-te mais fadista ou cantora?

Há muitas músicas que não são fados, mas que para mim são fados. Maria Bethânia, Ella Fitzgerald, Nat King Cole, para mim são fadistas também.

 

Há um bom exemplo neste disco, com a música do Cartola, "As rosas não falam", tu transformas a música num fado. Quando pegas noutras músicas, tendes a…

...fadistar? Não, detesto isso. A música "As rosas não falam" [do brasileiro Cartola] já era um fado para mim. Quando vou cantar outras músicas tenho sempre de entrar dentro do poema, que tem de me dizer alguma coisa, tem de me fazer pensar em algum momento da minha vida, em alguma história da minha vida ou da vida de alguém. 

 

Portanto, facilmente extravasas as fronteiras do fado?

Sim.

 

Como lidas com a pressão para se produzir discos continuamente?

Lido muito mal. E esta profissão tem um lado muito público: se faço alguma coisa e não está muito bem, muitas pessoas vão ver, todos opinam. Eu, para fazer, gosto de fazer bem. E depressa e bem há pouco quem. Acho que esta coisa de ter de se lançar um disco de dois em dois anos ou de três em três anos não faz sentido. Na música, não faz sentido. Acordo hoje e se calhar não me apetece cantar aquela música, apetece-me outra. E gravar é uma coisa que fica para sempre. Não dá para apagar e tirar os discos da casa das pessoas. Eu preciso de tempo e, aí, não me chateiem! Mas quando acho que já está, quero para ontem!

 

E consegues controlar esses "timings" para pôr o disco cá fora?

Quando se quer mesmo, consegue-se. Como em tudo na vida.

 

Chamaste ao disco "Nua". E apareces também nua, de forma resguardada, na capa. Não receias que se possa ver aí algum aproveitamento comercial da nudez?

Não. Preocupar-me-ia se o que estivesse lá dentro não soasse a fado, como eu o sinto. Sou completamente contra o aproveitamento excessivo do corpo, da beleza feminina, das curvas, dos lábios, pá… Em primeiro lugar, eu já tinha aquela imagem na minha cabeça, que gostava de fazer um dia. Em segundo lugar, porque, caramba, isto saiu-me tanto da pele… E porque nunca me chateio muito com os títulos dos álbuns. O primeiro foi "Gisela João", já está. O segundo é "Nua" porque não pode ser Gisela João 2.

 

O Chico Buarque fez isso: Chico Buarque de Hollanda Vol. 2; Vol. 3.

O "Nua" é um Gisela João 2. Sou eu a cada música que canto, saiu-me mesmo do pêlo. Estou dentro das músicas, faz-me reviver momentos da minha vida, que estavam resguardados. É uma nudez total porque sou eu.

 

Foste tu que concebeste a capa?

A ideia da fotografia é minha, levei a Estela [autora das fotografias] para minha casa, arrastei o sofá para ali, disse que queria esta luz e tal... E a capa é de um amigo meu que tem um estúdio onde fazem um trabalho incrível. Os desenhos da capa são pontos de costura. Eu faço bordados, gosto muito de costura. De fazer roupas.


 

Em relação ao disco, há semelhanças entre os dois discos. Ambos apostam em fados já consagrados. Também revisitas um fado com uma letra da Capicua, no triplicado; produtor e músicos (excepto o viola) são os mesmos. Não sentiste necessidade de mudar?

Sabes, quando eu era miúda – e tu perguntavas há pouco como é que uma miúda ouvia fado em Barcelos – sempre me irritou que me dissessem que o fado era uma música de velhos. Eu achava, e acho piamente, que a poesia chega a toda a gente, não há idades. E o que me fez apaixonar pelo fado foi a simplicidade dos poemas, de quererem dizer tanta coisa. Quando era miúda, pegava no batom da minha mãe, punha uma roupa da minha mãe, e a minha avó dizia-me "pareces um pinheirinho"! Mais vale simples do que com muita coisa. Eu acredito mesmo nisso. Por isso é que continuo a cantar fado. A beleza do fado está precisamente na simplicidade. Sou eu mais três músicos. E a força da palavra. Gosto muito das palavras e acho que as palavras se gastam com o tempo. Aqui há uns tempos estava com a minha irmã, tinha ela 15 anos e sentia-se triste porque se tinha separado do namorado. "Eu amo-o", disse-me. E eu respondi-lhe: não digas "eu amo-te". Porque um dia vais querer dizer "eu amo-te" [di-lo com grande ênfase] e vais sentir que já não chega porque já o disseste muitas vezes. O fado tem essa coisa, é muito simples, eu estou a cantar o poema, e os músicos, sem egos, estão ali a fazer a cama e a dar as notas certas para impulsionar a palavra, para que ela tenha a força toda. 

 

Mas há uma grande novidade no discoque é a inclusão de duas músicas do sambista Cartola. Como chegaste a ele?

A minha mãe sempre ouviu muita música brasileira em casa, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano, Chico Buarque, Vinicius. Mas o que me chegava, na minha adolescência, era a música brasileira de Carnaval, a Daniela Mercury, por exemplo, e havia ali um espaço grande que eu não sabia que existia. Quando fui viver para o Porto, conheci uma malta que foi estudar para lá, eles eram brasileiros e foram ouvir-me cantar: "Pô, Gisela canta fado. Isso aí é muito parecido com samba de raiz" [imitando o sotaque brasileiro] "O que é isso? O Carnaval?", perguntei. "Não, nossa, Cartola, Pixinguinha, você nunca ouviu?" Quando ouvi estas duas músicas do Cartola, achei que eram fados. 

 

Porque sentes estes sambas como fado?

É a simplicidade. A simplicidade do poema.

 

Os poemas eram do próprio Cartola.

Há poemas muito pequenos que são muito complexos. E eu gosto desta poesia que é muito simples e crua e que sei que a minha avó, que só fez a quarta classe, percebe. Consegue levar aquilo para a vida dela. Gosto de cantar uma poesia que seja fácil para toda a gente. Eu fujo, odeio imaginar, que o que faço seja considerado uma coisa de elite – até me faz comichão! Gosto de chamar a mim própria de doutora do coração, sou muito romântica e gosto de pensar que as pessoas vivem momentos e sonham com uma vida melhor e caminhos diferentes quando ouvem o meu trabalho. Acho que a música tem esse poder. A riqueza no Cartola é essa coisa de ser muito simples e com tanta coisa lá dentro!

 

Tem havido muitos músicos a fazerem incursões no mundo brasileiro. Seja reinterpretando músicas brasileiras, seja fazendo duetos com músicos brasileiros. Não há aí uma preocupação em alargar fronteiras e chegar ao mercado brasileiro?

Não sei. Eu nem estou no mercado brasileiro. Também gravei a "Llorona" [canção popular mexicana, popularizada pela cantora Chavela Vargas, entre outros]. Eu canto músicas que gosto. E acho que estas músicas ficaram fados. Se fosse por essa ordem de ideias, onde eu tenho trabalhado mais é em França, na Alemanha e na Bélgica, gravaria mais facilmente em francês, por exemplo. Há uma coisa que tenho desde miúda e que me orgulha muito: sou eu que pago as minhas contas desde muito miúda. Sou eu que mando na minha vida. Não são os outros que a vivem por mim nem são eles que vão pagar por mim. Por isso, acho que devemos fazer as coisas por nós, as coisas de que gostamos e em que acreditamos. Vamos agradar às pessoas que gostam de nos ouvir, ponto final.

 

Fazes música porque te dá prazer?

Sim. Porque me dá prazer e porque sei, isto é muito importante, que vou ajudar muitas pessoas. Eu acredito nisso. Sou romântica! [diz com um sorriso rasgado].

 

O fado é muito simples. Eu estou a cantar o poema e os músicos, sem egos, estão ali a fazer a cama e a dar as notas certas para impulsionar a palavra.

 

O fado é relativamente rígido na sua estrutura. Não sentes vontade de explorar outros domínios da música?

Gosto de cantar muitas coisas e de experimentar. Já fiz coisas na música electrónica, por exemplo. Acredito nas coisas pela qualidade, e não pela caixa. Isto é fado, isto é música electrónica. Isto é teatro. Isto não é. O que é teatro para uns, não é para outros. Sinto-me perfeitamente à vontade para cantar outras músicas que não fado. 

 

Como foi o processo de selecção destas músicas? Já te ouvi dizer que começaste com uma lista de 60 ou mais fados.

Escrevo num papel os fados que gostava de cantar, as melodias, porque quando se fala de fado são as melodias.

 

É o que aparece entre parêntesis à frente do nome dos poemas, por exemplo.

Isso mesmo. Faço uma lista grande, adoro este, adoro aquele. Primeiro encaixo poemas nas melodias, depois sento-me com o meu produtor e vamos fazendo um jogo de exclusão de partes: esta melodia é muito parecida com aquela, este poema quer dizer o mesmo que aquele.

 

Tem de haver uma visão de conjunto?

Sim, porque às vezes há poemas que me fazem sentir quase a mesma coisa. Depois deixo sempre alguns a mais, no total, uns 18 ou 19 e quando começo a tocar com os músicos e o produtor, aí surge uma selecção natural. E choro, custa-me, é lixado para mim andar a gravar…

 

Portanto, começas pela melodia e depois é que vais à letra?

Depende, é um bocado das duas maneiras. Outras vezes é o poema que me atrai e depois vou à procura de um fado onde ele encaixe.

 

Qual é o papel do Hélder Moutinho nos teus discos?

Ele é o meu "manager". O Hélder pensa a minha carreira a longo prazo, para onde quero ir. O meu produtor [Frederico Pereira] também faz isso comigo porque é uma espécie de irmão mais velho. Mas o Hélder é a pessoa que, desde o início, me marca os concertos, que me ajuda a estruturar toda a Gisela João, para onde é que ela quer ir…

 

As tuas duas grandes referências no fado são Amália e Camané?

Sim.

 

E em matéria de compositores?

Eu adoro o trabalho do Camané por causa do timbre dele, mas também porque ele tem fados novos que foram feitos para ele e que, para mim, parecem fados com muitos anos.

 

Estás a pensar no José Mário Branco?

Sim, adoro os fados dele. E a letras da Manuela de Freitas. Para mim, ela é a maior escritora de poemas para fados. Depois gosto muito do Alfredo Marceneiro, claro. Qual dos fados dele é que não é fixe? São todos bons. Gosto imenso do Jaime Santos… Do Armandinho também.

 

E do Alain Oulman [o compositor que pôs Amália a cantar os grandes poetas]?

O Alain Oulman é um bocado como o Zé Mário Branco. O Armandinho, o Jaime Santos, eram o fado tradicional, fado do povo. O Alfredo Marceneiro, por exemplo, era marceneiro, do povo. O Alain Oulman é uma pessoa que estudou música, composição, que veio de fora… O Zé Mário também estudou música. Nestes casos, há uma diferença. E o interessante é que os dois conseguem fazer fados daquela forma simples e crua e que parecem fados que já cá estão há mil anos. 

 

Gostas muito de cantar poesia. Gostas de lê-la?

Não tenho muita paciência. É muito diferente. Para ler um poema, tenho de cantá-lo na minha cabeça. Mas também é verdade que há poemas que eu gosto de ler, mas para cantar não servem. Gosto de ler Al Berto, mas não me imagino a cantá­-lo. Às vezes chegam-me letras, que as pessoas me enviam, custa-me muito dizer que não, mas tem tudo que ver com o momento da nossa vida, se estamos para ali virados ou não.

 

Sei que gostas da chamada música de intervenção dos anos 70, mas os teus fados falam pouco da realidade social…

Eu gravei a "Casa da Mariquinhas" [numa versão de Capicua que fala da decadência e do abandono] precisamente por causa disso. O problema é as pessoas não se permitirem ouvir com toda a atenção. Neste disco, gravei "O Mundo é um Moinho" [samba do Cartola] também pelo seu lado social. Para mim, essa letra fala da rapidez com que vivemos, diz que não paramos para respirar, para sentir, é uma chamada de atenção, "em cada esquina cai um pouco a tua vida; em cada amor herdarás só o cinismo". É só fazer a analogia. Assim como eu fiz quando era miúda e ouvi o "Que Deus me Perdoe", acho que as pessoas também o deviam fazer quando ouvem os fados. Eu conto a história do São João [letra de Capicua], é uma noite de São João, pode acontecer, e acontece… O fado é uma música de intervenção, mas de outra forma: do lado romântico. O fado é uma música de rua, do povo, que fala do dia-a-dia, fala das coisas de amor, fala da chapada na tasca, do roubo, da morte num acidente. Costumo dizer que o fado é parecido com o hip-hop, só que o hip-hop é muito mais cru e agressivo e o fado é mais
romântico.

 

Como é que te situas politicamente?

Toda a minha vida é de esquerda porque sou uma pessoa que vem de uma família de classe média baixa, que teve de trabalhar toda a vida e a quem nada caiu do céu, nem cai. Hoje em dia não sei muito bem onde me posicionar porque está tudo muito diluído.

 

A sociedade está menos politizada…

Sim.

 

E as pessoas não gostam de falar de política…

Sim, porque na escola não somos consciencializados para isso. O povo precisa de ser consciencializado, de perceber como é que as coisas funcionam, de saber o que acontece. Porque o povo tem de ter voz. Nós vemos tanta gente que não vai votar e isso quer dizer muita coisa. Quer dizer que as pessoas não acreditam. É um sentimento de impotência: "Eu não vou mudar nada, para que serve votar?" Oiço da boca de muitas pessoas: "Ah, são todos iguais. Direita, esquerda, é tudo igual." Não percebem e, por isso, não acreditam. Não têm ferramentas para poder acreditar. Não sabem como fazer… 

 

Não te cansa cantar as mesmas músicas quando vais apresentar um disco novo?

Ah, isso é fácil (ri-se). Cada poema tem tanta coisa diferente para dizer. Há dias em que eu subo ao palco e canto aquela música a pensar em certa pessoa. Há dias em que canto essa mesma música a pensar no meu país. Há dias em que se calhar canto essa mesma música a pensar noutra coisa qualquer. O lado social, por exemplo, dá para pensar em muitas coisas.

 

Mas hoje em dia já não há muito espaço para improvisar num concerto, pois não?

Há. O fado…

 

O fado tem isso na sua génese. Mas hoje está tudo programado ao milímetro…

Nunca canto os fados da mesma maneira, nunca.

 

Acontece cantares uma música que não está no programa?

Sempre. Os meus músicos já sabem que isso acontece sempre. Quando comecei a trabalhar com o Hélder, ele dizia que eu era um cavalo bravo, que não dava para controlar. E eu vou para o palco, não dá para controlar. Para mim, os espectáculos nunca são iguais, o público é diferente, a luz é diferente, o calor é diferente. Os músicos já sabem como sou. No último concerto que dei na Bélgica [no final do ano passado], trucidei o alinhamento todo, cantei músicas que simplesmente me apetecia cantar. 

 

És tu que fazes as roupas com que actuas?

Faço a maioria delas. Mas também uso coisas da [estilista] Alexandra Moura. Não tenho dinheiro para andar a comprar vestidos diferentes para cada concerto…

 

Tens projectos para o futuro que queiras partilhar?

Quero ser mãe (ri-se com ternura). Quero ter uma família, o meu grande objectivo de vida é ter uma família bonita. Cozinhar para o meu maridinho, para os meus filhinhos, ver um filme de sábado à tarde, com um bolinho, fazer compotas para os meus filhos. 


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