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Fernando Pimenta: Passo mais tempo com o meu treinador do que com os meus pais

O campeão do mundo de canoagem, em K1 5.000 metros, admite que lhe custa estar longe da família para treinar e competir. As medalhas são uma espécie de “recompensa”. Agora foi recebido como um herói mas, em 2013, houve quem o quisesse fora de Portugal, quando bateu o pé à Federação e quis remar sozinho.

Miguel Baltazar
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O campeão do mundo de canoagem, em K1 5.000 metros, admite que lhe custa estar longe da família para treinar e competir. As medalhas são uma espécie de "recompensa" para ele e para o irmão João, de treze anos, que as guarda religiosamente. Agora ganhou mais duas para a "colecção", uma de prata e outra de ouro, conquistadas nos Mundiais, na República Checa. Fernando Pimenta foi recebido como um herói mas, em 2013, houve quem o quisesse fora de Portugal, quando bateu o pé à Federação e quis remar sozinho.


O espírito competitivo era algo que já tinha naturalmente ou ganhou-o com a canoagem?

Acho que sempre tive esse espírito de querer ser melhor, de querer ganhar.

 

Não começou como desportista nesta modalidade.

Não. Comecei a praticar natação com apenas quatro anos. O médico aconselhou esse desporto aos meus pais para melhorar o meu desenvolvimento em termos musculares, de coordenação. E mantive-me durante oito ou nove anos. Até 2001, que foi quando experimentei a canoagem nas férias desportivas do Clube Náutico de Ponte de Lima.

 

Mas foi uma iniciativa sua ou foram os seus pais que decidiram inscrevê-lo?

Foi minha. Eu costumava ir nas férias de Verão para os ATL, sempre de forma a praticar desporto. Nesse Verão, o ATL que costumava frequentar não abriu inscrições. E tive a possibilidade de me inscrever nas férias desportivas de Verão do clube. 

 

E gostou logo assim que experimentou a canoagem? Ou precisou de se adaptar?

Quando iniciei, aos 11 anos, não tinha aquilo que era necessário para a canoagem em termos físicos, de coordenação, de equilíbrio. Tive de aprender. Aos poucos e poucos, as coisas foram evoluindo. Nesse Verão, de 2001, construí um grupo de amigos muito sólido, que ainda mantenho, e fui convidado pelo meu actual treinador, o professor Hélio Lucas, a ficar na equipa de competição.

 

Está desde o início com ele?

Exactamente. No início, achei que devia ser alguma piada. Um atleta que fez as primeiras provas... nós, nessa altura, já fazíamos algumas competições entre os que estavam a iniciar. Eu ficava em último, fartava-me de virar. Sentia que não tinha jeito nenhum para aquilo. Mas divertia-me ao mesmo tempo. E tinha aqueles amigos, aquelas pessoas fantásticas, à minha volta.

 

Aí, o desporto era mais divertimento do que competição?

Sim, era para passar o tempo. Fazíamos uma parte do treino e depois queríamos era brincar. E acho que isso é o essencial na aprendizagem de uma criança. Passar esses processos todos até chegar à alta competição. Primeiro brincar, depois começar a ganhar hábitos de treino, começar a melhorar a pouco e pouco, até chegar à alta competição.

 

Não começou logo a ganhar medalhas…

Não! Entrei na canoagem em 2001 e só recebi o meu primeiro título de campeão nacional em 2004. Quando comecei nas provas, recebia aquelas medalhas de participação. Eu via os meus adversários a subir aos pódios e questionava muitas vezes porque é que eles conseguiam e eu não.

 

Teve vontade de desistir?

Não. Nessa fase, eu queria era brincadeira e estar com os amigos. Claro que queria medalhas e conquistar os pódios, mas só a partir de 2004 consegui o meu primeiro título nacional. Depois, em 2005, foi a minha primeira internacionalização. A primeira medalha internacional também veio nesse ano, no Festival Olímpico da Juventude em K4 [caiaque de quatro lugares], nos 500 metros. Foi uma experiência marcante. Deu aquele "clique" na minha carreira desportiva porque foi a primeira vez, com apenas 15 anos, que cantei a Portuguesa e vi a bandeira de Portugal a subir ao mais alto patamar.

 

Quando começou a competir e a viajar, era ainda um miúdo e foi praxado pelos atletas mais velhos. Quer contar a história da gripe do Algarve?

(Risos) As primeiras vezes que fomos para provas [no Algarve], eles começaram a dizer que tínhamos de levar uma vacina porque podíamos apanhar uma febre e era muito perigoso. Nós íamos, aquele tempo todo da viagem, a pensar: será que é verdade? Ficávamos irrequietos. Também diziam que tínhamos de apanhar gambuzinos. E nós: o que são gambuzinos? Era engraçado. Quando não há responsabilidade em termos de resultados, é uma das melhores fases.

 

Quando comecei, recebia medalhas de participação. Via os meus adversários a subir aos pódios e questionava porque é que eles conseguiam e eu não.  

 

Mas quando estão em estágio é sempre tudo muito a sério ou há momentos em que podem descomprimir e brincar?

Neste momento, a equipa é formada por mim e pelo meu treinador. Por opção técnica da Federação, estamos só a trabalhar no K1. E isso torna-nos um pouco mais solitários. Somos só nós os dois em muitos estágios. Mas quando fazemos estágios noutros locais onde estão outras equipas, como a nossa Selecção, é muito bom, porque torna as coisas mais engraçadas. Temos sempre com quem falar, trocamos experiências, dá para nos divertirmos um pouco, mandar piadas uns aos outros.

 

Esses momentos também são importantes?

Sim. Não pode ser só treino, treino, treino. Porque senão, em vez de estarmos focados, passamos a estar "vidrados". Acontece a alguns atletas, quando não conseguem resultados, deixarem as suas modalidades, porque, em vez de fazerem tudo para conseguirem o resultado e ao mesmo tempo terem momentos fora do treino, para descontraírem, vivem aquilo muito intensamente. Isso pode deitar um atleta abaixo em termos anímicos.

 

Um atleta de alta competição tem de ser disciplinado no tempo, na alimentação, nas actividades fora da modalidade. Tem de fazer muitos sacrifícios. Prescindir de muita coisa. O que foi mais difícil para si?

Deixar para trás a família. Não estar com os meus avós, os meus pais, os meus irmãos e mesmo com os meus amigos e a namorada. É aquilo que mais me custa. Sentimos falta dessas pessoas, de estar com elas. Tenho um irmão mais novo [o João, de 13 anos] e sinto falta de o ver crescer. Eu sou como um segundo pai para ele. Quando chego a casa, depois de três semanas fora, olho e penso: já cresceste tanto!

 

É ele que toma conta das medalhas?

Sim. E gosta de seguir a minha carreira. Muitas vezes tento levá-lo comigo para onde vou. Ele já praticou canoagem nas férias desportivas de Verão. Mas gosta de futebol. Tem de seguir o caminho dele e praticar a modalidade que mais gosta.

 

Está muito tempo fora? 

Sim. Eu posso treinar em Ponte de Lima mas, para conseguir evoluir, tenho de procurar outros locais. Normalmente, fazemos muitos estágios de vários dias, no mínimo duas semanas, que podem chegar até três semanas. Sempre focados naquele objectivo de tentar melhorar. Cá em Portugal e fora. Este ano, por exemplo, fizemos dois estágios de três semanas na cidade do México. 

 

Isso obriga-o a não participar numa série de coisas. Aniversários, festas…

Sim. No ano passado, o meu irmão fez a primeira comunhão e eu, que sou o padrinho dele, não estive presente. Tinha um campeonato nesse fim-de-semana.

 

Como é que se sente nessas alturas? Sente­-se em falta com a família?

Claro. Acabamos por saber que estão todos reunidos e faltamos lá nós. Quando trazemos os resultados e conquistamos medalhas é uma forma de recompensar [essa ausência]. Claro que não inteiramente, porque perdemos aqueles momentos de felicidade com os nossos. Mas acaba por nos ajudar em parte.

 

Pode dizer-se que o seu treinador é uma das pessoas que melhor o conhecem?

Acho que ele é mesmo a pessoa que melhor me conhece. Passo mais tempo com o meu treinador do que com os meus pais. E ele já sabe como é que eu reajo a certas situações. Sabe perfeitamente do que é que eu preciso em certos momentos.

 

É quase uma relação pai-filho?

Sim, sem dúvida. Como já andamos neste ritmo há muito tempo e passamos muito tempo juntos, acaba por ser um pouco isso.

 

É aquele tipo de relação em que ele já conhece o seu olhar, nem precisa de falar para ele saber o que vai na sua cabeça?

Sim. E eu a ele. Eu já sei quando é que ele não está a gostar do meu desempenho. E ele já sabe quando é que eu estou cansado, quando estou alegre e tudo é possível. Já nos compreendemos muito bem.

 

Não pode ser só treino, treino, treino. Porque, senão, em vez de estarmos focados passamos a estar "vidrados". 

 

No final da prova de 1.000 metros em K1, que lhe valeu a medalha de prata nos Mundiais, o Fernando chorou. Ficou frustrado com o resultado?

Frustrado, nunca fiquei. É verdade que queria vencer, porque fiz uma excelente prova e depois, na parte final, fui passado pelo atleta da Alemanha. Ficar a escassas 200 milésimas de segundo do ouro dá-nos aquela sensação de que podíamos ter conseguido vencer. Mas é assim o desporto.

 

Um atleta está constantemente a lidar com a frustração.

Acho que tenho conseguido fazer isso muito bem. Tenho conseguido ir buscar energias a esses momentos menos positivos para conseguir depois, nos momentos cruciais, estar bem preparado para alcançar os grandes feitos.

 

Mas é necessário ter uma preparação psicológica também, além da preparação física?

Sim. No meu caso, vou fazendo algumas aprendizagens com aquilo que vai acontecendo na minha carreira. Vou tirando as minhas ilações, vou aprendendo com os comportamentos e com atletas de outras modalidades. Isso também me ajuda a crescer e a saber lidar com os vários factores em termos psicológicos.

 

Os atletas utilizam muito palavras como "conseguir", "superar". Há alturas em que duvidam de que seja possível chegar lá? Em que percebem que os rivais estão no seu melhor nível e as hipóteses de ganhar diminuem? 

Nós pensamos sempre que é possível. Temos de chegar à linha de partida e dar tudo por tudo. Mas temos a consciência de que o resultado não vai depender só de nós, vai depender de como estiverem os outros atletas, de factores externos, como aconteceu nos últimos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro [havia algas na água]. E temos é de saber lidar com isso. Agora, quando estamos a fazer a preparação, o treino em si, sim, há momentos em que não estamos tão bem, ou porque não conseguimos descansar ou porque estamos com dores musculares, ou de cabeça. Nem todos os dias conseguimos estar motivados.

 

Estas medalhas que ganhou agora nos Mundiais garantem-lhe o apuramento para os Jogos Olímpicos de Tóquio?

Não. O nosso apuramento olímpico é muito ingrato. É tudo discutido numa única prova. Não temos "ranking". Não temos de ter "x" pontos, nem uma marca para nos apurarmos. O apuramento é feito no Mundial em 2019. Só esse é que é válido.

 

É a prova do tudo ou nada.

Sim. E muitas vezes basta ter algum problema de saúde para não estar tão bem. Quando se discutem essas provas às milésimas de segundo, acabamos por correr o risco de ficar de fora.

 

Ganhar uma medalha não dá só o gozo de chegar ao pódio. Há também uma componente financeira.

Muito pouco.

 

Nos Jogos Olímpicos, as medalhas garantem uma bolsa.

É-nos atribuída uma bolsa consoante o resultado que obtivermos. Eu, nos últimos anos, ando sempre no nível máximo, que é o nível de medalhado em campeonatos da Europa e do mundo. Dá uma bolsa de 1.375 euros, paga pelo Comité Olímpico. E, sem dúvida, que por aí não estamos mal, mas se for em termos de valor da própria medalha, muitas delas nem são contabilizadas.

 

Esta medalha de ouro que ganhou nos Mundiais vai materializar-se nalgum cheque?

Sinceramente, não sei. Fui para a competição porque queria conquistar a medalha. Agora temos de ver os decretos de lei e essas coisas todas.

 

Mas isso leva o seu tempo. Não é automático – "Ganhou a medalha, tome lá o cheque."

Não. Daqui a um ano já devemos ter as contas acertadas.

 

Como é que os atletas de alta competição vivem? De patrocínios?

Não é fácil porque estamos em modalidades amadoras e, muitas vezes, os contratos que temos são por material desportivo e pouco mais. Não é por aí que vamos sobreviver. Tentamos amealhar o máximo possível, ter poucos gastos. Fazer como a formiga.

 

O facto de ganhar medalhas dá-lhe visibilidade mediática. Já foi contactado por alguma marca desde que se sagrou campeão do mundo de canoagem? 

Ainda não.

 

Mas sente que se tornou mais apetecível para as marcas quando começou a ganhar medalhas?

Desde 2007, que foi o meu primeiro título europeu, que conquisto medalhas para Portugal. Já lá vão 70 medalhas. Dá uma média de sete medalhas por ano.

 

Mas isso reflectiu-se em patrocínios, ou não?

Não. Ainda não.

 

Actualmente, não tem patrocinadores?

Tenho para material desportivo, depois alguns também patrocinam a nossa preparação para os estágios. Espero que as coisas venham a mudar porque está na altura de as modalidades começarem a ter um pouco mais de peso [em termos de marketing]. Não é por falta de resultados. Acho que estou muito bem lançado nas redes sociais. Essa é agora a melhor forma de marketing que nós, atletas, temos. As minhas redes sociais estão a trabalhar cada vez melhor.

 

Mas tem alguém a trabalhar consigo nessa área?

Não. Sou eu que faço a gestão de tudo.

 

E acha que as pessoas agora estão mais interessadas em saber sobre canoagem?

Sim. Quando comecei, não se ouvia falar de canoagem. Muito esporadicamente saía uma notícia e era num cantinho muito pequeno. Felizmente, agora, mesmo os jornais generalistas já começam a tentar passar à frente dos desportivos.

 

Quando tive o meu problema com a Federação de canoagem, em 2013,  mandaram-me mensagens a dizer que devia ser expulso de Portugal. Senti-me um criminoso. 

 

E a modalidade também já abre telejornais quando os atletas portugueses ganham medalhas.

Sim, é verdade. Pelo que me disseram foi uma loucura. Ligavam-me a dizer que parecia que as televisões e os jornais tinham apanhado o "vírus Pimenta" (risos). Os meus amigos diziam-me: "Estás sempre a aparecer. É no jornal, depois é na televisão. Nós mudávamos de canal e estavas sempre tu a falar ou a competir." É fantástico saber que os nossos resultados são reconhecidos. Que estou a ser seguido.

 

Esse é o lado bom. E quando não consegue chegar aos objectivos a que se propõe? Como é lidar com as críticas?

Essa é a parte mais dura. Nós somos muitas vezes criticados de forma injusta. Eu gosto de ser criticado, mas de uma forma construtiva.

 

Já aconteceu as pessoas dizerem-lhe coisas menos agradáveis nas redes sociais?

Sim. Quando tive o meu problema com a Federação Portuguesa de Canoagem. [Fernando Pimenta queria competir em K1 nos Mundiais da Alemanha e a Federação recusou. O atleta rejeitou representar a Selecção de Portugal]. Na altura, em 2013, havia portugueses a mandarem-me mensagens a dizer que devia ser expulso de Portugal, que devia pagar por tudo aquilo que tinha feito. Senti­-me um criminoso. No ano a seguir, já estava a lutar por medalhas por Portugal.

 

Até se falou que admitia mudar de nacionalidade e competir por outro país.

Isso foi uma falsa notícia. A única coisa que eu queria era poder competir em termos individuais, mas não me davam essa possibilidade, apesar de eu ser o melhor. Nunca tinha a possibilidade de competir individualmente e trabalhar com o meu treinador. Achei que tinha esse direito e as pessoas, quando têm direitos, devem lutar por eles e procurar defender-se.

 

Porque é que prefere competir sozinho?

Porque numa tripulação pode haver um colega que tenha descansado pior ou que tenha algum problema de saúde e isso condiciona logo a equipa. É algo arriscado. Enquanto se fizermos uma boa preparação individual, o resultado vai ser bom. Na colectiva, é sempre inesperado.

 

Entrou no ensino superior, mas deixou o curso a meio.

Sim, inicialmente estive em Fisioterapia na Universidade em Coimbra. E depois, para tentar conciliar a canoagem com a vida académica, fui para Ponte de Lima, para a Universidade Fernando Pessoa, para o curso de Reabilitação Psicomotora. O curso era de três anos e consegui fazer os três primeiros semestres, só que depois já não parava em casa e era impossível ir às aulas e fazer o estágio. Tive de abdicar.

 

Mas a sua ideia é dedicar-se a essa área quando terminar a carreira de atleta?

Eu quero ficar ligado ao desporto. Com a experiência que tenho vindo a adquirir na minha modalidade e no desporto em geral, posso ser uma boa ajuda como dirigente, como treinador, como conselheiro. Está tudo em aberto.

 

Dedicou a sua medalha de ouro aos bombeiros. Porque é que sentiu essa necessidade?

As pessoas não se devem recordar dos bombeiros só quando necessitam deles. Eu conheço os bombeiros porque praticamente nasci dentro do quartel e fui lá criado. [O pai é bombeiro em Ponte de Lima] E vejo que, muitas vezes, eles têm as piores condições e mesmo assim ainda são criticados. No ano passado, quando foram os Jogos Olímpicos, o meu pai estava há três dias sem ir a casa. Três dias sem dormir! No dia em que chegou a casa para estar comigo antes de eu ir para o Rio de Janeiro, as chamadas caíam sucessivamente para ele voltar para o teatro de operações. Eu via nos olhos e na cara dele que estava completamente exausto. Acabou por dormir uma hora e meia e arrancou outra vez. A minha irmã também optou por ir para os bombeiros. Neste momento, não pode exercer por causa da profissão dela, que não o permite. Mas logo no primeiro ano [de bombeira] foi internada no hospital por inalação de fumos. No ano passado, uma das primeiras coisas que fiz quando voltei dos Jogos Olímpicos foi tornar-me sócio dos bombeiros voluntários de Ponte de Lima. E tento ajudar noutras coisas, como a criação de eventos para angariar fundos. 


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