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Fernando Pereira: O português na inteligência artificial da Google

Já saiu há muitos anos do país. Mas não deixa de ser o português que trabalha na inteligência artificial e na aprendizagem das máquinas na Google. Há algo de Fernando Pereira em vários produtos da gigante. Mas nem sempre se pode saber.

Miguel Baltazar
07 de Dezembro de 2017 às 12:00
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Naqueles dias de esqui, a alienação é quase total. Não há rede móvel. A internet é apenas por satélite. Só à noite acaba por aceder um pouco. Naquela estância no Canadá, Fernando Pereira separa-se do seu mundo profissional. Nem que seja por algumas horas.

O português que trabalha na aprendizagem das máquinas e na inteligência artificial da Google acredita que tem de haver um controlo do dia-a-dia. Mesmo quando não está nesses dias de desconexão que o esqui lhe proporciona. Também por isso não tem uma presença muito assídua em redes sociais. Está fora do Facebook, e não é pela concorrência. Fica-se pelo Twitter e, claro, pelo Google+, embora este "não seja o nosso produto de maior sucesso", reconhece Fernando Pereira, a rir, numa conversa com o Negócios, em Lisboa, onde veio falar daquilo que o apaixona: a compreensão pelas máquinas da linguagem natural. É a sua área de investigação e de trabalho.

A maior parte do seu tempo é passada a criar, avaliar e conectar projectos, identificando oportunidades que possam ser exploradas, algumas "derivadas de problemas que a companhia tem e que não estão resolvidos". Não entra em pormenores. Não pode. Mas dá um exemplo. Quando um utilizador procurava no motor de pesquisa da Google "russian plane shot down" (avião russo abatido), surgia como resultado "russian sposkeman claims america shot down syran plane" (porta-voz russo diz que americanos abateram avião sírio). "Isto é um exemplo de um problema geral. A construção gramatical da pergunta não está a ser compreendida suficientemente para identificar que resultado e que documento tem a informação requerida. É um problema de compreensão", sugere Fernando Pereira, explicando que a resolução requer muita investigação, e a múltiplos níveis, já que não basta, muitas vezes, utilizar técnicas já desenvolvidas. Reconhece que "não temos tecnologia de compreensão da língua que vá ao cerne dessas dificuldades". Fernando Pereira trabalha na área da compreensão pelas máquinas da língua escrita, não da falada, que está com outro grupo, com o qual a sua equipa colabora.

Apesar da evolução na percepção pela máquina da linguagem, há ainda muito para evoluir, até porque falta o contexto e existem ainda obstáculos na compreensão da construção gramatical mais complexa. O que dificulta o relacionamento da pergunta com a resposta correcta.

A pesquisa no Google do nome Fernando Pereira devolve informação sobre o imitador português homónimo. Uma pesquisa feita em Portugal. Quando há uns anos, no início dos anos 2000, fez a mesma pesquisa pelo seu nome, nos Estados Unidos, no resultado surgiu um criminoso procurado pelo FBI. Fernando Pereira ri. E é com riso tímido que vai dizendo que tem uma parte importante de si em vários produtos da Google. "Alguns não posso dizer...". Mas fala-nos do Google Assistant, um serviço que sugere: "Ask it questions. Tell it to do things. It's your own personal Google, always ready to help" (Faz-lhe perguntas. Diz-lhe para fazer coisas. É o teu Google pessoal, sempre pronto a ajudar).

"Sinto um carinho especial por este produto", para o qual criou equipas fundamentais. É também de forma divertida que fala de uma pesquisa de três investigadores chineses, divulgada pelo Business Insider, que conclui que a inteligência artificial do Google é mais inteligente do que a dos concorrentes. Estes investigadores atribuíram ao Google Assistant um QI (Quociente de Inteligência) de 47,3, mais do que os 33 do chinês Baidu, ou os 32 do Bing, da Microsoft, ou ainda os 24 do Siri, da Apple. Mas, ao mesmo tempo, lembravam que esse valor era, ainda assim, inferior ao QI médio de uma criança de seis anos, que está nos 55,5. "Tem de começar por algum lado", mas para Fernando Pereira não faz sentido a comparação, nem atribuir um quociente à inteligência artificial. Mas, sorrindo, conclui: "Ainda assim, é mais alto do que todos os outros." Afinal, é o "seu" Google Assistant que está em confronto.

Outro projecto no qual esteve envolvido e do qual fala com orgulho é o destaque de uma das respostas numa pesquisa no Google.

Fernando Pereira conta que a ideia básica para o serviço teve origem na AT&T Labs (ex-Bell Labs), onde se encontrou pela primeira vez, profissionalmente, com Amit Singhal, que acabou por reencontrar na Google, de onde este engenheiro saiu em Fevereiro de 2016 como director do departamento de pesquisas. Foi, então, nos laboratórios da AT&T nos anos 1990, inícios de 2000, que nasceu o embrião da resposta específica. Passados uns anos, voou até São Francisco.

Tal como Fernando Pereira. Foi resistindo até que a filha mais nova acabou o liceu e saiu de casa. Fernando Pereira trabalhou, antes da Google, em vários locais, incluindo a AT&T, mas também em start-ups, e foi professor na universidade da Pensilvânia. Até que, a 7 de Janeiro de 2008, entra em Mountain View, a sede da Google. Daqui a um mês fará 10 anos de casa.

Não existem monstros

Fernando Pereira interessou-se pelo tema da inteligência artificial desde cedo. O curso do Técnico de Engenharia Electrotécnica foi interrompido ao fim de dois anos para se dedicar à Matemática Pura na Faculdade de Ciências. "Não queria saber nada sobre máquinas eléctricas e transformadores", justifica. Conheceu Luís Moniz Pereira, o cientista português que tem como área de investigação a inteligência artificial. "Comecei a ler livros e artigos sobre o tema e interessei-me", diz Fernando Pereira, que assume, no entanto, não conseguir dizer de onde lhe surgiu depois o interesse pela compreensão da linguagem natural. Trabalhou, por essa altura, no LNEC, num projecto para arquitectos que faziam procura automática de plantas de casas. "Uma inteligência artificial muito trivial." Quando o curso terminou, hesitou entre o doutoramento em Matemática e a sua nova área de eleição. Mas uma bolsa do British Council levou-o à Universidade de Edimburgo. Foi o momento em que o seu futuro ficou definitivamente definido.

A inteligência artificial já não sairia da sua vida profissional. Há motivos para recear os desenvolvimentos nesta área? "São receios baseados numa projecção. A inteligência artificial é a última etiqueta a que as pessoas se dirigem para articular um receio que têm de uma complexidade técnico-social que lhes parece incompreensível e, portanto, potencialmente uma fonte de efeitos negativos. Essa complexidade cerca-nos há muito tempo, muito antes da inteligência artificial", argumenta. A solução para essas ansiedades está nos governos e nas instituições, que "têm de pensar no papel da tecnologia na sociedade de maneira inclusiva", definindo os controlos necessários. É, pois, da natureza humana, sugere Fernando Pereira. Quando se perde a confiança, procuram-se monstros. "A inteligência artificial é o novo King Kong", ironiza, admitindo que hoje as pessoas têm medo de perder o controlo do seu dia-a-dia. Mas, argumenta, "perder esse controlo não tem que ver com a inteligência artificial, mas com o mundo de difícil compreensão". E por isso acredita que "a inteligência artificial até pode ser um acto de solução". O domínio do Homem pela máquina não é mais, na sua opinião, do que "ficção científica". "Estamos muito longe disso", garante.

Em relação aos avanços no campo da inteligência artificial, dá exemplos bons. Nomeadamente alguns que ajuda a desenvolver. "A inteligência artificial, se bem aplicada, pode ter um efeito muito positivo na relação entre pessoas e máquinas, oferecendo aos humanos maior controlo e compreensão do que a máquina está a fazer." Por exemplo, nas sugestões que surgem na internet a cada um de nós. Fernando Pereira acredita que as pessoas possam considerar essas sugestões relevantes quanto mais adaptadas estiverem às suas preferências. Apanha a mulher na boleia para dar um exemplo: actualmente, ela já não está tão interessada em tricotar casacos para a neta, que já tem sete anos. Por isso, não quer que lhe surjam mais sugestões de tricô. Seria interessante ela poder dizer à máquina que já não está interessada nessas informações. "Essa maneira de controlar a máquina, utilizando a nossa capacidade de comunicação humana, só a iremos atingir através do tipo de investigação que fazemos. Hoje, o canal de comunicação entre nós e a máquina é, ainda, limitado. A inteligência artificial vai permitir alargar esse canal."

Informação protegida

Os monstros não são receados apenas por causa da inteligência artificial. Mas surgem também por causa da quantidade de informação que estes gigantes tecnológicos, como a Google, têm. Fernando Pereira assegura que são receios infundados. "Não é verdade que haja uma grande base de dados que muita gente pode manipular. Somos extremamente cuidadosos a utilizar os dados dos utilizadores e limitamos o seu uso e acesso, e limitamos também os tipos de algoritmos que correm sobre esses dados. É algo de grande responsabilidade. Quando usamos informação pessoal, é para melhorar a qualidade de um produto."

Fernando Pereira volta aos exemplos. "Sou fanático de jazz, de um certo conjunto de grupos muito específico, e quando esses músicos têm um novo álbum, quero receber informação", diz, garantindo que a Google só pode fazer isso se souber as preferências individuais. E o acesso a essas preferências também pode ser limitado nas definições de cada conta. Fernando Pereira explica, por outro lado, que para o desenvolvimento dos produtos, o que é relevante é o uso geral da língua e não o caso concreto do que a pessoa faz. "As estatísticas gerais é que são úteis para a aprendizagem das máquinas." A quantidade de vezes que Fernando Pereira pesquisou pelo nome Dave Holland, compositor de jazz, já dá um sinal dos seus interesses e é uma forma de o Google saber que "é um dos meus favoritos".

A música, em particular o jazz, é um dos "hobbies" deste matemático, que é mais encarado como engenheiro. "Gosto muito de música", assume ao Negócios, a quem confidencia que vai a muitos concertos. E o seu equipamento de áudio em casa será especial. "Montei uma coisa complicada", diz, assumindo ser "única" a forma como está organizada. Mas hoje faz-se tudo no computador. Até ler os jornais. É um "news junky" (viciado em notícias), mas não compra um jornal em papel há muitos, muitos anos. Confessa que o tempo de conexão à internet já é, por vezes, excessiva. "Tenho de controlar."

"No outro dia, notei que no último mês não tinha lido um livro, porque estava sempre online a ler as notícias e isto e aquilo". A saudade de ler um livro de 200 páginas "do princípio ao fim". Fernando Pereira remata: "Não pode ser." E, por isso, quando veio de São Francisco, trouxe um livro e foi assim que passou a viagem.

Uma viagem a Portugal que tem feito mais vezes para ver os pais, que "precisam de atenção". Mas já pouco mais o prende a Portugal. Só a família. Ligação profissional, quase nada, apesar de continuar a relacionar-se com alguns daqueles que foram seus alunos nos Estados Unidos e que hoje são empreendedores, à procura de serem unicórnios (empresas com avaliações de mil milhões de dólares). Hoje, estes jovens falam a sua linguagem. E Fernando Pereira acredita que há bons exemplos em Portugal. Apesar de estar a ver de longe. De muito longe. A nove mil quilómetros. A distância da leitura de um livro. Em papel. Sem equipamentos electrónicos. É preciso a alienação. Nem que seja numa viagem de avião ou numa estância de esqui. 


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