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Fernando Lemos: "Eu não tenho idade, eu tenho tempo"

Fernando Lemos nasceu em 1926 e cresceu na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa. Pintor, designer e poeta, mergulhou no mundo dos surrealistas e partiu para o Brasil antes do 25 de abril. Tem uma obra incontável de fotografias, ilustrações, desenhos e escritos. Alguns estão na Cordoaria Nacional, na exposição “Fernando Lemos Designer”, organizada pelo MUDE. Outros encontram-se na Galeria Ratton e na Galeria 111.

Miguel Baltazar/Negócios
16 de Agosto de 2019 às 10:00
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Tem 93 anos e acumula muitas vidas. Pintor, designer e poeta, Fernando Lemos nasceu em Lisboa, mergulhou no mundo dos surrealistas e partiu para o Brasil, onde colaborou com o jornal Portugal Democrático. É o autor das ilustrações que representam os salazaristas como "ratazanas repulsivas". Tem uma obra incontável de fotografias, ilustrações, desenhos e escritos. Alguns estão na Cordoaria Nacional, na exposição "Fernando Lemos Designer", organizada pelo MUDE. Outros encontram-se na Galeria Ratton e na Galeria 111. Também a publicação "Ph.04 Fernando Lemos", editada pela Imprensa Nacional, recorda a sua obra fotográfica. Fernando Lemos lançou, igualmente, o livro "Poesia". Ele é um homem múltiplo.

Fernando Lemos nasceu em 1926 e cresceu na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa. Bem menino, ia com o pai e com o vizinho, o fadista Alfredo Marceneiro, para a carvoaria do lado, onde se vendia carvão e vinho. Por lá ficavam noite adentro, a beber e a cantar o fado corrido. O menino foi crescendo e começou a frequentar espaços de ópera e de teatro. Gostava de ficar atrás do palco, aquele que era para si o verdadeiro lugar do teatro. Conheceu gente das artes e mergulhou no mundo dos surrealistas portugueses. Nesses anos de "efervescência surrealista", fotografou escritores, atores, artistas plásticos, ensaístas. Sophia de Mello Breyner Andresen, Casais Monteiro, Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, Jorge de Sena, Cardoso Pires e Mário Cesariny fazem parte da extensa galeria de Fernando Lemos. Expôs pela primeira vez na Casa Jalco, em Lisboa, com Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo. No início dos anos 1950, partiu para o Brasil, morou em São Paulo, onde colaborou com o jornal Portugal Democrático, criado por intelectuais portugueses exilados. Saíram das suas mãos as ácidas ilustrações que representavam os salazaristas como "ratazanas repulsivas". Fernando Lemos naturalizou-se brasileiro e tornou-se um designer militante. Hoje acumula um acervo quase incontável de obras nas mais diversas linguagens. Fotografias, desenhos, escritos. Em 1994, expôs individualmente no Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian, com os retratos cúmplices dos seus surrealistas desaparecidos - mais do que retratos, eram performances e encenações em que não faltam máscaras, redes e bonecos articulados. Pintor, escultor, designer e poeta, Fernando Lemos está representado em várias coleções nacionais e internacionais e continua a produzir com afinco. É irrequieto e tem umas mãos irrequietas. Elas também falam e ele, ao falar, traz consigo qualquer coisa de bossa-nova misturada com um português mais antigo. Ele é mistura, ele é contaminação, ele é poesia.

Começa ele:
- Teu nome?
- Lúcia
- Lúcia?
- Sim.
- É bom.
- É?
- Funciona. Tem poucas letras. Até Amélia, ainda dá. Depois já fica quase cuspindo... Então, olha, vamos lá ser rápidos e rasteiros, devagar e sempre, como dizem os corruptos. Onde é que você quer chegar? Tens algumas perguntas armadas? Vamos lá. Estou dando muitas entrevistas, quase repetindo coisas, fica muito chato, parece que começa a ficar conversa de bêbedo.
Mas as pessoas que leem não são necessariamente as mesmas. Há quem não conheça a sua história. Nasceu na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa, era vizinho de Alfredo Marceneiro.
Meu pai andou com ele, foram amigos, frequentavam a mesma carvoaria, que é o lugar de vinho onde vendem carvão e onde há um aroma muito particular, um cheiro de carvão, de gasolina, de vinho junto. E, mais a mais, ficavam lá à noite, já de porta fechada, era só o pessoal do fado. Eu era ainda miúdo, colocavam-me sentado no balcão e ficava ouvindo aquela malta toda tocando, com o cigarro ainda aceso atrás da orelha. Era um ambiente bem característico. Havia uma casa de fados no Largo do Rato, a Parreirinha, onde a gente fazia festival de fado corrido, cada um ia cantando uma quadra e depois passava ao outro, homens e mulheres.

E o Fernando também cantava?
Também. Todos nós cantávamos… E o mestre era o Alfredo Marceneiro, ele era semelhante ao grande músico de swing americano, Louis Armstrong. O Armstrong tinha o som de uísque, o Alfredo Marceneiro tinha mais o som do vinho, do barril de vinho, o som de madeira do barril. Isto para mim, que sou um surrealista imaginativo. Como não me conformo com a realidade, eu invento. O Alfredo Marceneiro, que tinha uma particularidade muito bonita e inteligente - ele fazia miniaturas de móveis -, morava ao nosso lado. E essa foi a minha primeira experiência de público assistindo à vida, à vida mesmo, à vida da cidade.

O que fazia o seu pai?
Era marceneiro também. Primeiro ele foi marinheiro, andou no navio mercantil de carvão, trabalhando na parte do fogão, tinha de ficar alimentando o forno. Depois abandonou a vida mercantil a trabalhar em navio e foi para terra. Ele dizia: eu não quero ficar mais no mar, porque no mar fala-se muito alto, no mar as pessoas só gritam. É tudo no grito. O mar faz mais barulho. Ele não aguentava isso, porque o seu temperamento era o de um homem mais sereno, de uma violência contida, como a violência do sujeito que trabalha com madeira ou ferro… Já crescido, como fadista, tocava guitarra e ficava muitas vezes com o Alfredo. Depois foi trabalhar como figurante em ópera… É engraçado, às vezes ele ficava ouvindo uma ópera e cantava-a, lembrava-se muito dela. Então, eu tive uma grande ligação com essa parte do teatro e depois, ao crescer, levava a minha mãe - ela era uma pessoa muito rudimentar, mas quando assistia à ópera soltava umas gargalhadas de parar o trânsito! Eu adorava levá-la só para a ouvir rir. Mais crescido, passei a conviver com os atores todos, com quem fiz retrato e fotografia, eu vivia mesmo dentro do teatro. Eu via muito pouco teatro, gostava era de ficar lá atrás - atrás do cenário.

A conviver?
Você fica num camarim de teatro e aí vem o ator, maquiado, pedindo mais um cigarro e tal. A gente via-o ir lá para baixo, fazer o seu papel, não tinha nada que ver com o cara que queria cigarro. Isso, para mim, era o teatro. E não o que eles faziam lá no palco. E o meu pai ficava lá atrás também, à procura de pregos, enchia o bolso de pregos, daqueles pregos que existem nos cenários. Enchia o bolso e levava para a oficina. A outra particularidade do meu pai é que ele tocava gaita e levou-me a um programa de rádio, na Rádio Hertz, onde acabámos participando de uma orquestra. A gente tinha uma vida assim... Como éramos amadores e não podíamos receber salário, éramos convidados para associações de recreio, festas de casamento também...

E começou quando era muito menino.

Tinha 10, 12 anos.

Tem irmãos?
Não, eu sou o mais único. Tive uma irmã que morreu no parto. Ela nasceu antes de mim. É um dos meus já falados complexos, por isso andei sempre vendo a mulher como uma coisa que me faltava, a imagem da minha irmã. Então, para mim, a mulher tem esse algo mais, é alguma coisa que me falta desde que me conheço... Mas tive uma vida infantil muito boa porque comecei cedo. Com cinco anos já escrevia e lia.
Há pouco, falava no surrealismo imaginativo, que precisava de inventar a realidade.
O surrealismo tendia a mostrar os outros lados, como se a realidade em si não existisse. A gente ia à procura da realidade, que não existia, só para lhe pôr coisas que faltavam para ela ser, realmente, uma realidade. No fundo, o surrealismo é a procura do desconhecido. A gente só inventa o que já conhece. Almada Negreiros, o nosso grande pintor e pensador, deixou um testamento dizendo: nós já inventámos todas as palavras, agora chegou a vez de inventarmos de novo as palavras que eram novas. É isso. É ir atrás daquilo que já existe.

Quando se dá o seu encontro com os surrealistas? Com António Pedro?
Sim, ele foi nosso guru, era um pensador aberto, um homem que já tinha tudo. Ele guardava contactos com muita gente em França, tinha um relacionamento direto com André Breton, por exemplo. Então, a gente obedeceu a esse seu instinto poético, inventivo, próprio de alguém que está sempre a pensar e a sentir. Era uma figura humana autêntica, não era mais um elemento de fantasia humana, não era um animal, era uma pessoa que nos ensinou muita coisa, ficou nosso mestre.

Recorda-se dos tempos em ele foi cronista?
Na altura da guerra, ele foi trabalhar na BBC, no programa português, e era através dele que a gente recebia aqui o noticiário, só chegava a voz dele. Ele passou a guerra entre o hotel e o estúdio, andando debaixo das bombas. Quando acabou a guerra, quis voltar para Portugal, mas Salazar só permitia a sua vinda se ele não participasse em política. Ele tinha uma casa na praia, muito boa, em Moledo, e então montou lá um ateliê e ficou fazendo cerâmica, pratos, coisinhas. Fez exposições e ficou lá, quieto. Montou uma companhia de teatro no Porto que teve muito sucesso, com gente nova, porque ele era um homem de teatro, era um homem com uma vida estranha. Ele tinha uma coisa de pele, que caía, era um eczema ou algo assim, e então andava sempre de luva, para se proteger dessa queda de pele. Quando ele foi a São Paulo para estar comigo, eu armei uma reunião com gente do teatro, e esses meus amigos diziam que ele era o meu "barão de luvas" (risos). Ele tinha uma figura enorme, uma presença enorme. Chegava e, só de abrir a boca, já assustava! Uma vez, estávamos na porta do Teatro da Trindade conversando, eu, ele, o (Marcelino) Vespeira e o (Fernando) Azevedo. A certa altura, chega um gajinho, bem pequenino, e perguntou: o seu isqueiro? Na altura era proibido. E lá fomos todos para a esquadra. Éramos testemunhas do crime do isqueiro! O cabo começou a pôr o carimbo na mesa e perguntou: qual é o seu nome? O António Pedro, com aquela voz, responde: António Pedro da COSTA! O homem apanhou um susto. O que é que o senhor faz? O António Pedro encosta a barriga e diz: boxeur! O menino cagou-se todo. A sessão foi assim, bem teatral, até que a certa altura o chefe achou que era melhor mandar a gente embora. Vão com Deus.

Divertiam-se muito.
Ah, sim, sim.

Como eram os vossos dias na altura em que tirou os famosos retratos?
Os retratos foram feitos como uma provocação, para guardar na galeria dos perseguidos. Foi tudo tratado com muito humor, dentro de uma imensa depressão. Mas eu me interessei pela fotografia porque queria muito ver como era a cara dos portugueses, queria ver como era a nossa cara.

Aliás, sempre que o Fernando viajava, as pessoas perguntavam se era russo ou espanhol, nunca se era português, como se o português não existisse.
As pessoas perguntavam: você é russo? Não. Espanhol? Não. Acabei achando realmente que nós, portugueses, temos todas as caras. Aqui, em Portugal, temos árabes, italianos, alemães, temos caras para tudo. E temos sotaques também. Então, eu andava à procura da nossa cara nessa época, e a nossa cara era a cara dos perseguidos. Também fiz o meu autorretrato, eu também era perseguido. Tenho sido assim alguém, à procura do que não existe ou do que existe mas que se esconde, existe mas está oculto. E a fotografia também é uma forma de ocultação. É tirar a transparência de qualquer coisa, viva ou morta, e fazer disso uma imagem que pode ser transposta, copiada, ampliada. O surrealismo preocupou-se sempre muito mais com os sonhos, porque o sonho é, e já repeti isso um milhão de vezes, o único território onde nada está oculto. Pelo contrário. Ele revela. Mas hoje estou mais interessado em ler e escrever sobre fotografia do que andar a fotografar as coisas.
Porquê?
Porque dá uma outra visão, porque a minha imaginação é maior do que aquilo que eu estou vendo. Estou entrando um pouco na personagem da cegueira. Eu acho que o maior artista é o cego, porque o cego inventa tudo o que não viu. Ou até nem inventa, pensando que viu. Falta-nos ser cegos. Então, a cegueira vem um pouco nesse sentido, o de inventar aquilo que já existe.

Falava do humor em cenário de depressão. Esse humor era então uma forma de cegueira, nesse sentido de cegueira de que falava?
O humor nasceu de vários partos. O primeiro era de ordem sentimental, quase política. Depois do horror da guerra, a gente precisava de algum sorriso, não para esquecer, mas para acrescentar a esse terror alguma gargalhada da farsa. Essa coisa de fingir que era bravura é o cinismo fingindo que tem força, que é poderoso. A guerra é uma farsa, e então a gente ria, ria para rir disso. Não era para se divertir, não, ninguém se divertia, mas realmente podemos acrescentar uma palhaçada, toda a vida dura merece isso. Essa foi uma primeira costela do ensaio. O resto era ir pondo na história elementos que haviam sido esquecidos por conveniências várias, políticas, económicas, dos donos do poder. Era recolocar na história quem foi esquecido. Então, a gente começou a ir atrás dos grandes poetas, dos grandes músicos, e a dar valor às pessoas que passaram sem ser vistas - a gente tinha uma certa adoração pelo que ainda não estava visto. Muita gente diz: a verdade é isso. Mas a verdade também não existe, a verdade é o lugar onde você tem de ir pôr mais uma coisa, é o caos ao qual você precisa de acrescentar códigos.

Nas suas fotografias, acrescenta algo para mostrar.
Sim, tem que dar lugar a todo o lugar que está em falta, vivemos num mundo onde falta muita coisa que não foi feita. A gente hoje sabe tudo. A tecnologia tornou-se tão poderosa que faz tudo o que quer, nós já estamos ao serviço da tecnologia, mais do que ela está ao nosso serviço. É o resultado da velocidade que a ciência trouxe, é o futurismo, essa negação do tempo, que quis fazer com que o tempo fosse mais para a frente, mais depressa que ele mesmo. É o trem que chega antes de ter partido. É uma televisão que, mal abre, já está fechando. Essa velocidade é uma das coisas que nos perseguem. Eu tenho o maior cuidado com isso.

De que forma?
Sou ainda de uma cultura artesanal, de uma cultura do fazer, tal como fazemos a comida que, para ser bem feita, demora tempo a fazer. Nós tínhamos o artesanato como a lei de quanto mais tempo, mais preciso é o acabamento. Agora você compra coisas que vêm prontas da fábrica, como se já não fosse necessário fazer nada novo. Tudo já está tão novo que acaba aparecendo de graça, com o cartão de crédito. Essa facilidade da velocidade é um dos nossos perigos. E torna-nos escravos. A obrigação imediata que você sente de responder a um e-mail mal ele chega... Não te dá nem tempo de pensar. A velocidade chegou antes de partir.

[Beatrix Overmeer, mulher de Fernando Lemos, junta-se à conversa e diz: ele desenha e escreve à mão. Ele manda cartas pelo correio para os amigos. Ele: eu só escrevo à mão. Ela: e ele desenha e pinta sem usar nada da internet.]

Escrever é desenho. Escrever é desenhar. É por isso que a letra muda nas pessoas. A caligrafia mostra o caráter. Agora, eu estou fazendo uma série de trabalhos sobre a transparência dos raios X. O raio X já é um negativo, é o nosso autorretrato por dentro. Então, estou fazendo um trabalho em que introduzo à mão, como se estivesse desenhando e retocando, uma mão segurando a imagem do crânio, fazendo uma homenagem a essa mesma mão, que é a peça mais importante e mais inteligente do nosso corpo. Há uma série de imagens que mostram isso: a mão que foi perdida no braço da Vénus de Milo, a mão que empurra a bengala do homem e vai por aí…

Gostaria de nascer agora?
Eu, se pudesse nascer todos os dias, acho que me sentiria melhor (risos).

A mão está a desaparecer?
Sim, parece que não damos importância à mão. A mão que aparece nos poemas do Fernando Pessoa. Essa coisa de dar as mãos é um acordo, imagine a força disso, do que existe entre as duas mãos, no aplauso, numa aliança, numa reza, num pedido de esmola, numa caligrafia, num autógrafo, numa identificação... Isso é a força que só nós temos, sabendo usar. Não é porque ela existe, é que só nós sabemos usá-la. Só nós temos direito. É claro que é à sombra disso que se criam políticas, ditaduras, maneiras de poder, fardas, hinos, dinheiro.

A mão pode ser muito má. A mão que tapa a boca.
Que estrangula.

Foi por causa dessa mão que saiu de Portugal?
Sim.

Foi para o Brasil à procura de "coisa melhor", disse numa entrevista. E encontrou?
Sim, acho que sim. Apesar de o Brasil estar hoje em ditadura, foi lá que eu tive oportunidade de recuperar o meu território perdido.

A juventude perdida.
Completamente. Considero que Portugal hoje está-me dando melhor, mas já me deu tudo o que havia de pior. Sacrificou-me a juventude, a minha e a dos outros, e a gente fica pensando: o que é que eu faço, não posso voltar para trás, perdi a referência a tudo o que não fiz. Quando estamos em ditadura, você deixa de fazer o que fazia. Alguém pode dizer: porque é que não fez escondido? Não pode. Você, para fazer qualquer coisa, seja arte ou não, tem que saber que está fazendo para outra pessoa, e não para você. É uma coisa social e coletiva. O pior é quando a ditadura desmaia um pouco, porque não desaparece nunca…

A ditadura nunca desaparece, ela desmaia apenas?
As pessoas gostam de pensar que desaparece, mas não desaparece totalmente, tem coisas que ficam. Olha, por exemplo, a polícia militar no Brasil. A gente sabe que, mal ou bem, quem ajudou a libertar o país aqui em Portugal foram os próprios militares. Foi farda. O que prova que a farda pode ter duas caras. A ditadura disfarça, dizendo que é democrática. E foi a democracia que deixou a abertura, a democracia é tão boa que deixou a ditadura vir, foi amiga. Aqui, o Spínola chegou a ir de helicóptero para as frentes lá, tentar harmonizar e fazer tratados com a população toda, e convenceu-os a vir, aos retornados. Foi quase o afogamento do país.

Muitas dessas pessoas deram quase uma nova vida ao país...
Isso é o que está acontecendo hoje com a imigração de uma forma geral. As pessoas estão entrando em lugares onde vão dar uma lição à burguesia instalada. Mas falamos de gente que perdeu tudo - que não tem mais idade, nem nação, nem língua, nem lugar, não tem nada. Eu acho muito perigoso, porque tenho a sensação de que é uma nova escravidão.

Como assim?
Essas pessoas estão indo para lugares onde as põem a trabalhar de qualquer maneira, onde são pagas de qualquer maneira, e isso é uma nova forma de escravidão consentida. O Brasil foi feito de imigração e talvez tenha sido o único país a dar certo. Ainda se pode estar dentro do caldeirão, misturado com o alemão, com o chinês e com o japonês. A gente aguentou tudo com uma humanidade que não acontece mais. Nem aqui. Agora jogam banana contra a presença dos brasileiros, mas isso é o preconceito do qual a gente não abre mão mesmo, você sempre se acha melhor que o vizinho. Mas, quando as pessoas vão para outros países, elas acrescentam algo, não vão para destruir. Cultura não é só aquilo que você tem, é o que eu acrescento e recebo de você. É comida. É um alimento. Então, a gente precisa de costurar isso para não azedar.

Porque pode azedar.
Tudo pode azedar. Envenena a gente. Dá diarreia. O problema não é a imigração em si, mas as ideias e os interesses, as leis que se criam para isso.
Como olha para o Brasil de Bolsonaro?
Começamos a perceber que, dentro deles mesmos, há um distúrbio, estamos a perceber que eles não se estão entendendo. Estão-se debochando uns aos outros, estão-se criticando. Quem esteve ou pensa que está no poder quer que o seu poder seja maior, porque a mentalidade do militar não é estática: é sargento, é capitão, vai até general, depois general é pouco, é presidente.

Nunca acaba.
Não acaba nunca, é um modo contínuo. Essa moléstia está afetando por dentro. E os militares não se conformam de ficar recebendo ordens de um capitão. É uma história de quadradinhos.

De autodestruição?
Sim, e o Bolsonaro já falou que é muito difícil governar, ele já confessou tudo. Não é fácil ser Bolsonaro. Todos querem ser alguma coisa mais.

Mas foi no Brasil que encontrou o seu território, como disse, e trabalhou no jornal Portugal Democrático, fundado por portugueses emigrados e de oposição ao regime.
Era tudo gente refugiada, escritores, matemáticos, grandes nomes da vida literária e histórica. Pessoas que foram para o Brasil por conta delas e não a serviço de nada, foram elas por elas mesmas, para serem operantes, para fazer coisas, gente que teve importância para o novo Brasil, que já não era mais um Brasil de escravo, mas um Brasil de imigração ligada ao trabalho.

Foi lá que conheceu Agostinho da Silva. O que aprendeu com ele?
Nós já éramos amigos. Um dia, em 1963, estava no Japão e disseram-me: chegou aí hoje um português com cara da Checoslováquia... Era ele. A gente, sempre que se encontrava, dizia: o que é que o traz por aqui? Era a nossa pergunta. Então, ele olhou para mim e disse: o que é que o traz por aqui? Eu vim à tua procura para a gente poder almoçar juntos. Demos vários passeios, a gente ia nas lojas e falava português e as pessoas percebiam que havia ali uma ligação remota - os portugueses introduziram quarenta mil palavras no Japão que foram desaparecendo com as perseguições religiosas. Nos restaurantes, pegávamos no cardápio e púnhamos o nome das comidas em português!

Gostava muito dele?
Gostava... Agostinho era uma pessoa com uma cultura acima da compreensão. Quando a gente falava com ele, ficava a conhecer coisas que a gente já sabia, mas não sabia ainda o valor de conhecer essas coisas. Ele sabia o valor daquilo que a gente já sabia e traduzia-o culturalmente na conversa com a gente. Tirava as nossas ideias e os nossos pensamentos da sombra, dava uma luz nisso. Era de uma grande lucidez.

Tornava transparente, para usar os seus termos.
Ele dava uma grande transparência e fluidez, era um homem ligado a tudo o que era superior. E foi um dos primeiros homens a serem expulsos por Salazar. Das figuras que conheci, considero-o alguém que nos deixava limpos, que nos acrescentava, porque até hoje a minha camisa ainda não está feita, mas naquela altura já prometia. Era alguém que nos ensinava a ouvir.

O Fernando só voltou a Portugal depois do 25 de Abril de 1974?
Vim aqui no ano seguinte. Eu estava quase desmaiado, porque desde a véspera que eu e outros estávamos colados na televisão, vendo amigos sendo soltos, saindo de Peniche, saindo de todos os presídios. O Cardoso Pires e essa gente toda. E nós delirávamos. Vim cá no ano seguinte para estar com esses meus amigos, que me levaram a sair até de madrugada para me contarem como é que tinha sido. Com todos os detalhes. Fazíamos jantares, juntávamos os amigos para lembrar o nosso tempo. Era uma festa muito nova, era uma lavagem da alma, era delirante. Encontrei muitos amigos que estavam tão roucos da festa que nem falavam. Queriam falar, parecia piada.

Não pensou voltar a viver em Portugal?
Sim, mas tenho a certeza de que se viesse não me iria dar bem, porque entretanto tenho experiências diferentes e iria encontrar nas pessoas outras pessoas, e hoje não tenho mais ninguém do meu tempo, morreram todos os meus amigos. Então, iria dar-me mal, até porque hoje tenho algumas dúvidas em relação a nós. Nós somos um país fraco. A gente sonhou com uma coisa que não se pode sonhar: ser império. Isso ficou, como ficou no Brasil a ideia da colonização, a ideia da grandeza. Tudo o que está no Brasil veio da nobreza, a própria corrupção foi dada pela nobreza, que era dona, e a nobreza é uma forma de ditadura. Isso ficou.

Isso ainda existe?
Existe, porque o ser humano tem uma certa vocação para o chamado passado, para o antes, quando o antes tinha muitos dantes, antes mesmo de ser dantes. Há mentalidades culturais, inclusive, que têm pelo antigo, pela antiguidade, não apenas uma apreciação, mas um desejo de continuidade. É uma sociedade que quer voltar a ser antiga, esquecendo-se que o antigo nunca existiu, nós fomos sempre atuais. As pessoas querem transformar em antigo aquilo que já não tem nada de antigo, então compram uma cómoda do século XVII para terem em casa e sentir que estão nesse mesmo século.

O Brasil tem uma mentalidade de colónia?
Sim. O principal buraco do Brasil é que, até hoje, tem o complexo de não ter sido inaugurado. O Brasil foi uma montagem de peças vindas do exterior como se fosse um automóvel, e ficou no povo a ideia de que era preciso inaugurar. O povo ficou sempre adorando inaugurações. É por isso que o Brasil nunca foi, até agora, inaugurado.

E isso torna-o mais vulnerável a ditaduras?
É a tal história do medo que nasce de qualquer autoridade. É a história do pai, o pai é o primeiro patrão, é o primeiro polícia. Nós temos necessidade de inauguração, o povo exige-a, porque a inauguração é espetáculo, é o preconceito de ser inferior, sempre a pensar que a civilização existe, mas está longe, lá não sei aonde, e que não é para nós. Há por isso essa mania da inauguração. Vem o político, o deputado, o governador e inaugura um grande parque, daí por quatro anos vem outro e inaugura a rede elétrica… A inauguração dá medalha, dá cargo, dá dinheiro, dá prestígio, e dá quatro anos de "mamata". Você inaugura para lucrar. E a gente não destrói.

O Brasil tem o "complexo do colonizado". Portugal tem o complexo de colonizador?
Sim, acho que tem o (complexo) do dono do território, até porque Portugal não foi à procura no mar para conquistar nada, isso é tudo ilusão histórica, é demagogia. O português foi para o mar à procura do outro, para sair do tédio de um falso império, de um país de marasmo, da mesmice de uma sociedade provinciana, mesmo no bom sentido. Salazar chegou e disse: nós somos uma raça humilde. E o povo disse: olha, que bom, nós somos humildes.

E assim ficámos?
Ficámos. Até hoje.

Falámos em fotografia, falámos em transparência. A velhice é uma forma de transparência que faz aparecer todo o passado? A frase é sua.
É a transparência da idade. Você, pela transparência, sente os milhões de anos. Como é que sabe que temos milhões de anos? Porque o tempo é transparente. Conta-se em transparência: um, dois, três, quatro, cinco…Todo o homem idoso é a transparência da idade que tem. Nele está contida essa transparência, é uma memória que ele pode até nem conhecer, mas está lá, talvez nem a escute, mas está contida nele. O tempo é sólido, é transparente, mas existe, é uma massa.

Gosta da idade que tem?
Sim. Uma vez perguntaram à grande atriz do teatro Fernanda Montenegro que idade é que tinha. Ela disse: eu não tenho idade, eu tenho tempo. É isso. Hoje, eu já nem conto mais o meu tempo por anos, eu uso décadas. Só falo de décadas. A década em que cheguei ao Brasil, a década em que tive o meu primeiro filho… Dá menos trabalho acumular toda essa informação do que estar, a todo o instante, a contar se são mais cinco minutos ou se é mais um mês. Isso desaparece no tempo, porque o tempo é transparente, o tempo torna-se uma espécie de vidro onde as coisas se escondem. É um brilho, o tempo também brilha, não é fosco, e nós somos o resultado disso, a gente se transparece. Porque é que a gente se olha e sabe que está vendo uma pessoa, e não um retrato, não uma escultura? Que transparência existe entre eu e você? Como é que você está impressa em você mesma? Como é que você é a sua fotografia? Se eu fizer o teu retrato, posso de repente aparecer-te com coisas que você ainda não conhece ou até deseja, mas só quando você é provocada, você se mostra. Quando é chamada a uma coisa de maior pressão - carinho da família, do namorado, sei lá -, então você existe porque é a sua própria transparência, você se imprime em você mesma. Quando olha no espelho, mesmo sem se perguntar, pensa: como eu me pareço comigo desde ontem. Como estou ficando velha, estou com umas rugas aqui. Olha o tempo na minha transparência. É tudo um mistério, nós somos um mistério de carne, de pele, somos como se fôssemos de vidro. É isso que eu acho que tem o raio X. Ali, é como se você fosse de vidro, como se estivesse embutida em vidro, não é mais transparência, já nascer dentro do vidro, como se fosse possível a gente nascer dentro do vidro, dentro de uma garrafa jogada ao mar.



O jornal Portugal Democrático foi a principal trincheira na qual se reuniram intelectuais portugueses exilados no Brasil. Fernando Lemos é o autor das ilustrações que representam os salazaristas como ratazanas repulsivas. Em 1974, após a revolução dos Cravos, Lemos redesenhou o projeto gráfico do jornal, e as suas caricaturas tornaram-se o destaque visual da primeira página. A publicação autoextinguiu-se em 1975.

(Esta e outras obras gráficas do artista plástico podem ser vistas na exposição "Fernando Lemos designer", que está no Torreão Poente da Cordoaria Nacional, em Lisboa).


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