Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Fátima: Hierarquia de um milagre em construção

Falta um mês para 13 de Maio. O trabalho é de pormenor para acolher o Papa no Centenário das Aparições. Francisco vem como peregrino e como peregrino partirá. Agenda apertada, menos de 24 horas. Um mar de gente. E expectativas divididas sobre o que ficará em Fátima depois do grande dia.

  • ...
Piedade Gaspar perde-se nos números. "Já aqui estou há muitos anos", diz. Uns 40 ou 50 talvez, não importa. A banca de produtos religiosos, num dos cantos da Praceta de São José, já assistiu à visita de três Papas a Fátima.

O quarto, Francisco de seu nome, chega daqui a um mês. Nos produtos à sua volta, nada assinala esse dia. "Quando foi o Bento XVI, muita coisa acabou por ficar. Não se vendeu", lembra. Há-de haver velas e ímanes do Centenário das Aparições. E o terço oficial, que custa 12 euros, promete.

Esperança de vender mais um bocadinho? Nem por isso. "Isto há fins-de-semana em que se faz tanto como no 13 de Maio." Para Piedade, mais gente não significa negócio. Os carros não circulam, a confusão é maior. Mesmo que tudo esteja pensado ao pormenor.

Desde 2010 que o Santuário de Fátima vem preparando este aniversário redondo. O traço mais visível está à vista de todos, qualquer que seja o ângulo do recinto. O anterior presbitério era provisório há décadas, o novo recebe agora pela primeira vez um Papa. Francisco tomará a cadeira central. Na ala à sua esquerda, as autoridades oficiais; à sua direita, os doentes.

A um mês da visita do Papa Francisco, a calma persiste em Fátima. O silêncio impera. Na oração, uma promessa que se cumpre. 

"Tudo o que fizemos são infra-estruturas que têm que ver com a vida normal do Santuário. O facto de vir o Santo Padre não muda nada", assegura o padre Cristiano Saraiva, administrador do Santuário.

Os ajustes feitos no pavimento, na iluminação ou na instalação sonora - assim como o restauro da Basílica de Nossa Senhora do Rosário e o seu órgão - nunca tiveram na vinda do Papa a sua justificação. Mas há sempre "embelezamentos extra", reconhece Fernando Silva enquanto pinta, ao sol, as letras cravadas numa das paredes. Nessas palavras, indicações para os peregrinos.

A casa vai estar cheia, bem cheia, como nunca antes esteve. No fim-de-semana do próximo 13 de Maio esperam-se um milhão de pessoas em Fátima, o dobro do que é habitual. No recinto do Santuário só cabem 330 mil. Os restantes vão ter de se espalhar ao longo do percurso do papamóvel e pela cidade, onde serão instalados quatro ecrãs gigantes.

"Temos consciência de que nem todos os peregrinos conseguirão entrar", admite o padre Carlos Cabecinhas. O reitor do Santuário de Fátima diz que não há motivos para preocupação: o local está "habituado a multidões" e a outras visitas papais. Só que, desta vez, ao contrário dos antecessores, o líder da igreja católica só vem a Fátima. E fica menos de 24 horas.

Na casa do senhor

Precisão ao segundo, direcção decrescente. Um relógio marca o tempo em falta para o arranque destas celebrações de Maio. Com elas, o Papa Francisco como peregrino. Agenda apertada e encontros-relâmpago com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro António Costa.

Entre celebrações, o descanso é feito na Casa de Nossa Senhora do Carmo, a poucos metros da praça onde rezará com outros fiéis. "O próprio Papa foi dando indicações de que o acolhimento na casa fosse o mais simples possível, que não tivéssemos nem grandes banquetes nem condições luxuosas", conta o padre Vítor Coutinho, vice-reitor do Santuário de Fátima.
Para os outros peregrinos, torna-se mais difícil seguir a mensagem católica da simplicidade e da contenção na hora de arranjar pouso. Quando a procura supera a oferta, não se olha a gastos. É preciso aceitar que os princípios do negócio se tornam mais fortes do que os da religião. Ao longo dos últimos meses, multiplicaram-se os quartos em Fátima a várias centenas de euros. Alguns estavam dez vezes acima do que é habitual.

Mesmo essas propostas desapareceram. A um mês do acontecimento, a etiqueta está já nos milhares quando se procura nos raros anúncios online. Um hotel de quatro estrelas no centro de Fátima pede 2.300 euros por um quarto, por exemplo. A oferta prevista é de cinco noites com pequeno-almoço incluído. Todavia, mesmo que o cliente só esteja interessado numa noite, terá de pagar o valor total.

A Associação da Hotelaria de Portugal confirma que a ocupação está a tocar os 100%. Desde o final de 2016 que todos os hotéis estão praticamente lotados em Fátima, demonstrando a antecedência das reservas. A que preço, em média? "A 250 euros. As notícias que têm surgido de preços superiores a este valor referem-se a casos isolados e não podem ser tidos como prática geral", sublinha a presidente executiva Cristina Siza Vieira.

As contas são fáceis de fazer. Fátima conta com sete mil camas de hotéis, a que se juntam outras sete mil em alojamento local e instituições religiosas. Todos os 13 de Maio esgota, não há surpresa. O que a vinda do Papa Francisco trouxe foi algo diferente: a procura a disparar em Leiria, Coimbra, Nazaré, Tomar, Alcobaça, Santarém, Aveiro e Lisboa.

Espera-se um milhão de peregrinos no fim-de-semana de 13 de Maio. Nem todos caberão no recinto. O Santuário pede para que se distribuam pelo percurso do papamóvel.  

"A vinda do Papa vai estender-se a toda a zona centro. Ninguém consegue quantificar o que representa. Se Fátima já tinha um lugar muito importante no mundo religioso, essa marca vai ser potencializada. Não podemos dizer que seja um milagre, mas é um momento de referência", aponta Domingos Neves, presidente da Associação Empresarial de Ourém (ACISO). Só num fim-de-semana, Fátima recebe um dos oito milhões de turistas que espera para 2017.

A cidade quer ser um ponto de partida para que o património da UNESCO nas redondezas - o Mosteiro da Batalha, o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Cristo em Tomar, também de carácter religioso - se afirme. A estratégia de combate à sazonalidade também só funciona se, do outro lado, for possível diversificar mercados emissores de turistas.

Em vez de se dizer que já se sente, será melhor dizer que já se ouve. Mesmo em Abril, as sonoridades no recinto do Santuário de Fátima são diversas. Coreanos, filipinos, brasileiros, espanhóis, italianos, franceses, e americanos debaixo do mesmo Sol que, reza a história, terá bailado 100 anos antes na Cova da Iria.

O caminho, a verdade e a vida

O motor de uma grua quase consegue cortar o murmúrio de uma Avé Maria rezada na Capelinha das Aparições. Lá no alto, dois homens substituem as lâmpadas de um candeeiro. No presbitério, prepara-se o sistema de som para a próxima missa. Cada teste é mais uma garantia de que tudo correrá bem no grande dia.

A contrastar com a multidão esperada, agora há muito espaço. Cruzado a pé - ou de joelhos - por todos. Será essa a única forma, aliás, de percorrer a cidade a 12 e 13 de Maio, quando o Papa ali estiver.

A circulação automóvel será permitida apenas aos que tiverem acreditação. Por causa destes "dias de excepção", o presidente da Câmara Municipal de Ourém, Paulo Fonseca, pede às empresas que se abasteçam com a maior antecedência possível, embora estejam previstos períodos para esse efeito.

A tradição e a mudança cruzam-se no mesmo espaço. Tudo é preparado ao detalhe para o grande dia com o Papa. 

Como fazer então para chegar ao Santuário? Há um conselho transversal: chegar cedo, com a máxima antecedência. Quem não puder utilizar os transportes públicos e se vir obrigado a levar carro tem de, em primeiro lugar, evitar a A1. É previsível que existam congestionamentos nesta via de acesso. Os condutores devem, por isso, escolher alternativas como a A8, a A13, a A23 ou o IC9.

Ao redor de Fátima encontrarão, depois, 20 bolsas de estacionamento. Com capacidade para 18 mil carros, ficam a uma distância máxima de 13 quilómetros. Cada uma será identificada com uma senha colorida. A partir daí, os peregrinos terão autocarros para ir e voltar do Santuário.

Ao longo de todas as etapas, existirá um dispositivo de segurança montado entre a Autoridade Nacional de Protecção Civil e a GNR. A primeira contará com 668 operacionais no terreno e, em caso de necessidade, esse número poderá chegar aos 980. A GNR, a quem caberá a segurança do Papa, opta por manter em sigilo o tamanho da sua operação.

Bombeiros, Cruz Vermelha, INEM, Exército, Força Aérea e Corpo Nacional de Escutas. Todos estão a postos para um 13 de Maio sem precedentes. Em Fátima, por exemplo, estará montado um hospital de campanha. Há quatro helicópteros preparados para entrar em acção e transportar eventuais doentes para um dos dez hospitais que integram o plano nacional de contingência deste evento.

Servir a Deus e ao dinheiro

Sentada num banco a meio da rua, observa a loja à distância. "É o movimento da Páscoa", começa Etelvina Pereira. A comerciante sabe que a data que se aproxima, em Maio, é importante mas não encomendou produtos específicos do Centenário.

A amiga, ao seu lado, recorda que o Papa vem num dia e volta no outro. "Olhe, que não haja turbulência. Não podemos pensar que vamos vender muito senão ficamos decepcionadas", resume.

"É muito barulho à volta. Enfeita-se muito. Lá em cima está tudo muito organizadinho", conclui. Quando diz "lá em cima", Etelvina Pereira contém uma gargalhada, como se a impedisse de chegar aos lugares de que fala: a Reitoria do Santuário de Fátima e a Câmara Municipal de Ourém.

As alterações no recinto do Santuário, feitas desde 2010 para o Centenário das Aparições, foram pagas com ofertas dos peregrinos. Por isso, não se divulgam valores.

Paulo Fonseca, que preside à autarquia, define o próximo 13 de Maio como a "operação de maior envergadura feita em Fátima". Qualquer festa tem custos e a pergunta não pode deixar de ser feita. Falta-lhe resposta concreta. O elemento mais palpável é uma candidatura apresentada por Ourém ao Estado, avaliada em um milhão de euros, para o desenvolvimento de infra-estruturas, sobretudo acessos.

"Temos é de aproveitar este momento para colocar uma imagem positiva", diz o autarca. Um discurso que atenua uma das sensações do próprio Santuário, que louva o esforço mas não deixa de apontar o dedo a um certo afastamento do poder público face às questões do Centenário das Aparições de Nossa Senhora aos Pastorinhos.

"Custou-nos ver que acordassem um pouco tarde para a questão do Centenário, preparada desde 2010. Algumas coisas poderiam ter sido planeadas com mais tempo, menos condicionadas politicamente", crê o padre Vítor Coutinho, vice-reitor da instituição religiosa.

Também o Santuário de Fátima não divulga a factura deste caminho de sete anos. O padre Cristiano Saraiva, administrador, justifica a opção com as dinâmicas da própria fé. "Tudo o que foi feito tem como objectivo que o Santuário tenha melhores condições para acolher os peregrinos. É tudo fruto daquilo que recebe dos peregrinos. Os valores não divulgamos, até para respeitar aquela que é a oferta voluntária, simples, escondida que os próprios peregrinos deixam", diz.

O Santuário conta com 311 funcionários, não tendo existido um reforço neste campo. As necessidades despoletadas por um programa como este do Centenário das Aparições foram geridas internamente pelas diferentes equipas, todas coordenadas pelo reitor e apoiadas por mais 400 voluntários.

E o que fica quando o Papa Francisco partir na tarde de 13 de Maio? As pessoas, as obras, a fé, respondem. Fica tudo em Fátima. Fica também, estima o Banco de Portugal, uma ajuda para as exportações nacionais em 2017. O banco central reviu em alta a previsão de crescimento da economia portuguesa, com as vendas ao exterior a crescer 6% este ano, à conta do Papa mas também da conferência Web Summit e do novo modelo da Volkswagen Autoeuropa.

São cenários que passam despercebidos a Pedro Luz. Apesar da calma que habita Fátima por estes dias, as mãos não deixam de embrulhar artigos nas lojas. As mãos não deixam de rezar. As mãos não deixam de agarrar velas para vê-las arder, numa promessa que se cumpre.

E é aí que ele entra em acção, a repor os círios nas caixas, num dos cantos do recinto. "Isto é 'self service'. Pagar já depende da consciência de cada um". No grande dia não haverá falta de oferta para tanta procura, garante. Quando se pergunta se é o responsável pelo negócio, responde de sorriso no rosto. "A responsável pela venda das velas é Nossa Senhora". É ela a responsável por tudo isto.


Ver comentários
Saber mais Fátima Centenário das Aparições Papa Francisco Santuário turismo peregrinos hotelaria
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio