Na política, nas redes sociais ou nas caixas de comentários de notícias, a ira, a raiva e o discurso do ódio estão omnipresentes. Haverá uma maneira mais saudável de lidar com estas emoções? A resposta pode ter já algum tempo - dois mil anos, mais concretamente - e vem dos estoicos da Roma antiga. "De Ira", o texto de Séneca incluído nos "Diálogos", pode dar pistas para como manter a serenidade quando tudo à volta parece instar-nos a reagir sob o efeito das emoções. Com dois investigadores das universidades de Coimbra e Lisboa, revisitámos os ensinamentos de Séneca, cuja última edição chegou aos escaparates com o título "Como manter a calma (mesmo quando não é fácil)".
No texto que dirige ao irmão Novato, Séneca sublinha que a raiva é a única das paixões "capaz de sequestrar um Estado inteiro". Noutra passagem, cita um ditado de acordo com o qual "um homem cansado é um homem quezilento" e alerta ainda para o facto de o "luxo excessivo e a eterna insatisfação" alimentarem a raiva. "Não lemos Séneca por ele ser um histórico, como uma espécie de arqueologia. É perfeitamente possível fazer um diagnóstico da situação atual a partir desta apresentação ‘De Ira’", assume Bruno Venâncio, coordenador da linha de investigação Literatura, Humanismo e Cosmopolitismo do CEG-UAb, da Universidade Aberta e investigador do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra. "Ele tenta compreender o que é a ira e o que nos acontece quando embarcamos nesse estado. Isso, em geral, não mudou. E as consequências que embarcar nesse estado têm para o indivíduo enquanto indivíduo e cidadão, também não mudaram", refere o investigador.
Combater a pressão do tempo
O que Séneca procura demonstrar é que quando o ser humano decide tomado pelos sentimentos, decide mal. "Quando tomamos decisões a partir do medo, a partir da raiva, vamos incorrer numa ação de que nos vamos arrepender. E esta denúncia mantém-se válida porque o ser humano, fundamentalmente não mudou", diz Bruno Venâncio, que lembra que a proposta estoica passa por superar este estado.
Apesar disso, as circunstâncias mudaram e complicam a assunção da postura estoica, que convida a que o indivíduo espere antes de agir e se coloque no lugar do outro. "Não só estamos instados a sentir - como se a nossa identidade fosse o que sentimos ou como sentimos -, mas estamos permanentemente instados a decidir o que sentir e a agirmos sobre isso", diz Bruno Venâncio. Esta pressão é particularmente percetível em "movimentos sociais, movimentos políticos e partidos políticos", mas também nos media. Se por um lado são forçados a reportar de forma instantânea, sem tempo nem espaço para a mediação e análise da informação, por outro também buscam o comentário e a decisão instantâneos.
Para Bruno Venâncio, o tempo é o ponto principal para a leitura das recomendações de Séneca. "Há uma passagem em que um serviçal parte um prato e o amo diz: ‘não te vou castigar porque estou irado’. Ele sabe que o movimento de ira vai levar a uma reação desproporcionada em relação à ação", explica. "Quando estou embarcado numa emoção é a emoção que me leva (...). Na sociedade em que nos movemos há algumas instâncias em que isto é ainda mais acelerado", refere o investigador, que lembra que os antigos fóruns romanos nem sempre eram bem frequentados ou locais onde o debate fosse particularmente elevado. "Em termos de qualidade, talvez não fosse muito distante do debate contemporâneo", assume. O que mudou foi o caráter instantâneo e a magnitude do alcance dos modernos "fóruns". "Temos a possibilidade de mostrar imediatamente ao mundo todo o que estamos a sentir. E há instâncias que usam isso a seu favor, seja porque beneficiam economicamente, seja porque a sua mensagem se coaduna com este tipo de estrutura", alerta Bruno Venâncio.