Pão, vinho, azeite, mel, leite, água, peixe, carne... A lista de alimentos citados na Bíblia é imensa. Desde o Génesis ao Apocalipse existem inúmeras referências a comida. A alimentação é, há milénios, fulcral na relação entre o divino e os homens. E não só nas religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo. Budistas e hindus também fazem oferendas de comida em cerimónias nos templos. Todas as religiões, desde as primeiras civilizações, dão importância aos alimentos.
Na cultura ocidental, as raízes judaico-cristãs influenciam a gastronomia e as festas religiosas, como o Natal, que agora celebramos. E não é preciso ser um crente para seguir determinadas tradições que foram passando de geração em geração.
A brasileira Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, investigadora de gastronomia, colunista e jornalista nessa área, dedicou-se durante dez anos a estudar todas as referências que existem na Bíblia sobre alimentação – umas vezes, aparece como símbolo espiritual, outras como elemento de culto ou prova do cuidado de Deus para com o seu povo, outras ainda como objeto utilizado para a realização de um milagre. O resultado dessa pesquisa está no livro "A mesa de Deus: os alimentos da Bíblia", recentemente publicado em Portugal pela Quetzal.
"No Brasil, quando gostamos muito de uma comida, dizemos que se deve comer [esse prato] de joelhos, rezando. É que a boa mesa é como um altar, onde nos curvamos diante do sagrado", diz a autora ao Negócios.
A sua pesquisa fê-la "mergulhar" numa obra que nunca tinha lido antes mas que "está na origem da nossa civilização" e é "um dos mais fascinantes livros já escritos". A Bíblia é tão fascinante que "é estudada em grandes universidades do mundo – como Harvard, Princeton ou Cambridge –, em matérias não religiosas". No seu caso, a introdução ao chamado "livro dos livros" foi feita "pela porta da cozinha", que é para ela "um lugar mágico e de aprendizagem".
Esse espaço da casa "é um lugar de incertezas, experiências, criação e transformação", porque "cozinhar é exatamente transformar a natureza", afirma.
O prefácio do seu livro é assinado pelo Cardeal José Tolentino Mendonça, o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana. Foi Tolentino que suscitou esta obra numa conversa com a autora e o marido há vários anos em Lisboa, também à volta da mesa. Logo no título do seu texto, o sacerdote católico deixa uma mensagem: a cozinha é mais espiritual do que se pensa. Mais à frente, explica porquê.
"A cozinha é, numa casa, um motor de vida espiritual. Quem não descobriu isso, não descobriu o significado antropológico da comida e o instrumento de humanização que a mesa representa. Sim, uma mesa não é só uma mesa."
Nesta viagem que Letícia Cavalcanti fez pelas páginas da Bíblia, percebeu que no Antigo Testamento "todos se alimentavam obedecendo aos ensinamentos da Torá", e isso "foi muito importante porque deu uma identidade aquele povo, tantas vezes disperso pelo mundo".
De facto, diz a autora, "a história do povo hebreu conta-nos uma forte ligação entre alimento e fé". Exemplo disso é o êxodo do Egito, quando Moisés retirou os hebreus da escravatura do faraó e os liderou durante quarenta anos no deserto até chegarem à "terra prometida", onde "manava leite e mel", como refere Êxodo 3:8. Nesse tempo, Deus provava o seu cuidado pelo povo, enviando todos os dias o maná do céu para os alimentar.
Mas há ainda outras indicações na Torá, que ensinam, por exemplo, a preservar a Terra, a cuidar dos animais e sobre quais os animais permitidos e proibidos para consumo", acrescenta.