Notícia
Ela é Unbreakable
No hospital, ela era a Frida Kahlo portuguesa. Ou a Alice no País das Maravilhas. Vivia na ala pediátrica mas imaginava-se num hotel. Desenhava compulsivamente em cima de uma base de madeira. Wolverine, personagem da Marvel, era o seu herói. “Tinha ossos de aço e nunca os partia e, se os partisse, eles voltavam logo ao sítio”. A ilustradora portuguesa Fatinha Ramos nasceu em Aveiro, estudou no Porto e vive em Antuérpia. Ganhou muitos prémios e os seus trabalhos (www.fatinha.com) estão expostos em vários países. O MoMA, em Nova Iorque, será a sua próxima paragem.
Wolverine, o homem inquebrável da banda desenhada X-Men, era o seu herói. Ele nunca se partia. Ela sim. Fatinha Ramos nasceu com múltiplas fracturas, tem osteogénese imperfeita, a chamada doença dos "ossos de vidro". Até aos 14 anos, passou mais tempo no hospital do que em casa ou na escola. Junto à cama, tinha uma base de madeira sobre a qual desenhava compulsivamente. Ela era a Frida Kahlo portuguesa. Também podia ser a Alice no País das Maravilhas. Ou a Amélie Poulain. Criava mundos paralelos, vivia dentro deles, regressava à terra e voltava a fugir dela. Um dia, "encarnou" o corpo de Wolverine e deixou de se partir. Aconteceu assim. Saiu do hospital, foi para o liceu, estudou Design Gráfico no Porto e emigrou para Antuérpia, onde vive ainda hoje. É a partir de lá que Fatinha cria as suas ilustrações. Acumula prémios internacionais e os seus trabalhos de traço surrealista, que podem ser vistos no site www.fatinha.com, têm viajado pelo mundo.
O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) vai lançar em Setembro o livro "Sonia Delaunay: A life of color", escrito por Cara Manes, curadora da instituição, e ilustrado por Fatinha Ramos. "Geralmente, é o museu que escolhe os ilustradores. No meu caso, eu é que escolhi o museu, eu é que fui ter com 'ele'. Se não batermos à porta, ninguém abre, então, porque não tentar?" Fatinha tinha sido seleccionada pela Society of Illustrators para expor, no Museum of Illustration, um trabalho sobre as mulheres Yazidi. Lá foi ela para os Estados Unidos, onde encontrou ilustradores que até então só conhecia de nome. Como sabia que o MoMA estava a fazer livros de arte para crianças e, uma vez em Nova Iorque, foi até lá tentar mostrar o seu portefólio. E mostrou. Entrou num concurso com outros ilustradores e foi a escolhida para fazer os desenhos do livro sobre Sonia Delaunay. "Nem conseguia acreditar."
Era uma vez uma menina…
Fatinha parecia estar a entrar numa espécie de mundo encantado real. A ilustradora nasceu em Aveiro há 40 anos com fracturas múltiplas . "Estava no hospital, ia para casa, partia um osso, voltava ao hospital e por lá ficava mais uns meses. Era sempre assim. Desenhar foi a forma que encontrei de sair do hospital. Desenhava compulsivamente. Uma vez, tivemos um acidente de carro, parti o pulso direito e então comecei a desenhar com a mão esquerda. Eu não podia era ficar sem desenhar! Chegou a fazer retratos dos profissionais da ortopedia que depois ficaram expostos na parede. Nascia assim a sua primeira exposição, aos oito anos, no Hospital Pediátrico de Coimbra, em Celas. "Em 2011, já eu vivia na Bélgica, fui ao hospital e os desenhos ainda estavam no corredor. Fiquei ali parada a olhar para eles e uma enfermeira explicava-me: estes retratos são de uma menina que viveu aqui muito tempo…"
Ao longo dessa sua vida, Fatinha Ramos ia estudando no hospital, às vezes ia à escola, não por muito tempo, partia sempre algum osso e tinha de voltar à ala pediátrica. "Praticamente, não tenho amigos de infância porque não tinha tempo para fazer amigos na escola. Mas, para mim, nada disto era um problema. As maiores incapacidades que existem são aquelas que colocamos à frente de nós próprios. Nunca encarei a minha doença como uma incapacidade, impedia-me de fazer algumas coisas, sim, mas eu estava focada noutros assuntos. Pode parecer estranho, mas sempre pensei: não vou colocar a minha energia em coisas que me fazem mais triste porque eu não sou essa pessoa. Uma vez, ouvi alguém dizer à minha mãe que, como eu ia passar muito tempo no hospital, seria difícil continuar a estudar… Eh pá, esqueçam! Jurei a mim mesma: eu não vou ser a pessoa que toda a gente espera que eu seja, não vou ser a menina coitadinha."
A partir dos 14 anos, Fatinha deixou de partir ossos. "Não sei porquê. É a vida. Eu andava na rua e tinha orgasmos múltiplos de alegria: olha uma árvore, olha uma pessoa!" Queria estudar artes e foi aprender Design na ESAD, no Porto, onde vivia num terceiro andar sem elevador. "Subia e descia as escadas, e subia e voltava a descer! Tinha uma vida normal de estudante. Festas? Eu estava lá! Concertos? Eu estava lá! Raves? Eu estava lá! E dançava até às 10 da manhã. Adoro dançar. Quando era pequenina, até queria ser bailarina e acho que esse gosto pelo movimento está nas minhas ilustrações."
Durante os anos em que estudou no Porto, Fatinha passou a desenhar menos. "Queria fazer tudo aquilo que não tinha feito até então. Acho que, por ter estado tanto tempo na cama, acumulei tal energia que tinha de a gastar! Queria vida, vida, vida! Queria fazer coisas! Não conseguia parar, nem consigo! Há três anos, fui para Nova Iorque com o meu irmão e a namorada. Um dia, caminhámos muito. Eles, cansados, tiveram de se sentar num parque e eu fui dar voltinhas para me cansar, porque não conseguia ficar cansada. No ano passado, fui para a Califórnia com um amigo a até subi ao Moro Rock no Sequoia National Park…"
Foi no Porto que Fatinha conheceu o ex-namorado belga, que estava a fazer Erasmus na ESAD, e, no final do curso, a ilustradora foi viver com ele para Antuérpia, onde trabalhou como directora artística na agência de publicidade Choco e desenvolveu campanhas nacionais. Uma delas, "Me is Out", sobre autismo, foi premiada pelo Creative Club of Belgium (CCB). "As pessoas gostavam do meu trabalho, acho que tenho um lado conceptual forte." A área da publicidade trouxe-lhe prémios e conforto monetário, mas era um trabalho duro e Fatinha não se sentia feliz. Despediu-se. Esteve uns meses na Nicarágua com os Arquitectos Sem Fronteiras a construir casas em bambu e, quando regressou à Bélgica, continuou a trabalhar na área do design gráfico como freelancer. Mas faltava-lhe a paixão. Tinha saudades dos seus desenhos.
Um dia, faltou um ilustrador na Libelle, revista com a qual colaborava, e Fatinha ofereceu-se para fazer a ilustração. Era sobre o relógio biológico das mulheres. "As pessoas ficaram maravilhadas e começaram a pedir-me mais, mais e mais. Tirei o design gráfico da minha vida, sabia que ia ser duro, e continua a ser, mas de repente tudo começou a escalar, e eu só faço ilustração há quatro anos! Os meus trabalhos viajam mais do que eu, estão na Coreia do Sul, em Cuba, nos Estados Unidos." Fatinha acumula distinções. Recebeu este ano o prémio de excelência, na área de ilustração da revista Communication Arts, e os desenhos têm sido internacionalmente reconhecidos por entidades como Society of Illustrators e publicações como 3x3, The Magazine of Contemporary Illustration. Um dos trabalhos mais premiados tem sido a ilustração do livro "Fábulas de La Fontaine", da Porto Editora. Também o trabalho "I am lots of love", da editora WPG (Davidsfonds), está a ser um "sucesso de vendas" na Bélgica.
Além de livros infantis, Fatinha Ramos faz ilustrações para revistas como a belga MO* Magazine e a holandesa Flow Magazine. Em Portugal, a artista é representada pela agência Illustopia, no Porto, e o seu terreno no país ainda está por explorar. Um dia, Fatinha gostaria de voltar, sente falta do sol e do mar e das pessoas. "As pessoas do Sul da Europa são como uma manga, muito 'soft' no início mas, a partir de determinada altura, são como um caroço, e não deixam passar mais ninguém para o seu círculo íntimo. Os nórdicos são como um coco, difíceis de partir mas, quando partem, são água."
Para já, Fatinha vai manter o seu pouso em Antuérpia, focada nas ilustrações. Mas irá além delas. Recebeu uma bolsa do governo belga para iniciar o seu trabalho enquanto artista plástica. "Quero pintar, sempre quis pintar." Mas continuará a fazer ilustrações e a mostrá-las ao público, fora e dentro de Portugal, como aconteceu com "Unbreakable", uma exposição que criou em Antuérpia para celebrar o seu aniversário e que depois esteve no Pólo das Indústrias Criativas, no Porto, a primeira mostra individual do seu trabalho no país. Uma das ilustrações da colecção "Unbreakable" mostra um elefante equilibrado em cima de uns bambus tão fininhos que parecem ossos. Da tromba sai uma árvore com vários ramos. "Todos nós somos quebráveis, todos nós somos frágeis. E é pelo facto de mostrar essa fragilidade que nos tornamos fortes."
O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) vai lançar em Setembro o livro "Sonia Delaunay: A life of color", escrito por Cara Manes, curadora da instituição, e ilustrado por Fatinha Ramos. "Geralmente, é o museu que escolhe os ilustradores. No meu caso, eu é que escolhi o museu, eu é que fui ter com 'ele'. Se não batermos à porta, ninguém abre, então, porque não tentar?" Fatinha tinha sido seleccionada pela Society of Illustrators para expor, no Museum of Illustration, um trabalho sobre as mulheres Yazidi. Lá foi ela para os Estados Unidos, onde encontrou ilustradores que até então só conhecia de nome. Como sabia que o MoMA estava a fazer livros de arte para crianças e, uma vez em Nova Iorque, foi até lá tentar mostrar o seu portefólio. E mostrou. Entrou num concurso com outros ilustradores e foi a escolhida para fazer os desenhos do livro sobre Sonia Delaunay. "Nem conseguia acreditar."
Fatinha parecia estar a entrar numa espécie de mundo encantado real. A ilustradora nasceu em Aveiro há 40 anos com fracturas múltiplas . "Estava no hospital, ia para casa, partia um osso, voltava ao hospital e por lá ficava mais uns meses. Era sempre assim. Desenhar foi a forma que encontrei de sair do hospital. Desenhava compulsivamente. Uma vez, tivemos um acidente de carro, parti o pulso direito e então comecei a desenhar com a mão esquerda. Eu não podia era ficar sem desenhar! Chegou a fazer retratos dos profissionais da ortopedia que depois ficaram expostos na parede. Nascia assim a sua primeira exposição, aos oito anos, no Hospital Pediátrico de Coimbra, em Celas. "Em 2011, já eu vivia na Bélgica, fui ao hospital e os desenhos ainda estavam no corredor. Fiquei ali parada a olhar para eles e uma enfermeira explicava-me: estes retratos são de uma menina que viveu aqui muito tempo…"
Ao longo dessa sua vida, Fatinha Ramos ia estudando no hospital, às vezes ia à escola, não por muito tempo, partia sempre algum osso e tinha de voltar à ala pediátrica. "Praticamente, não tenho amigos de infância porque não tinha tempo para fazer amigos na escola. Mas, para mim, nada disto era um problema. As maiores incapacidades que existem são aquelas que colocamos à frente de nós próprios. Nunca encarei a minha doença como uma incapacidade, impedia-me de fazer algumas coisas, sim, mas eu estava focada noutros assuntos. Pode parecer estranho, mas sempre pensei: não vou colocar a minha energia em coisas que me fazem mais triste porque eu não sou essa pessoa. Uma vez, ouvi alguém dizer à minha mãe que, como eu ia passar muito tempo no hospital, seria difícil continuar a estudar… Eh pá, esqueçam! Jurei a mim mesma: eu não vou ser a pessoa que toda a gente espera que eu seja, não vou ser a menina coitadinha."
A partir dos 14 anos, Fatinha deixou de partir ossos. "Não sei porquê. É a vida. Eu andava na rua e tinha orgasmos múltiplos de alegria: olha uma árvore, olha uma pessoa!" Queria estudar artes e foi aprender Design na ESAD, no Porto, onde vivia num terceiro andar sem elevador. "Subia e descia as escadas, e subia e voltava a descer! Tinha uma vida normal de estudante. Festas? Eu estava lá! Concertos? Eu estava lá! Raves? Eu estava lá! E dançava até às 10 da manhã. Adoro dançar. Quando era pequenina, até queria ser bailarina e acho que esse gosto pelo movimento está nas minhas ilustrações."
Durante os anos em que estudou no Porto, Fatinha passou a desenhar menos. "Queria fazer tudo aquilo que não tinha feito até então. Acho que, por ter estado tanto tempo na cama, acumulei tal energia que tinha de a gastar! Queria vida, vida, vida! Queria fazer coisas! Não conseguia parar, nem consigo! Há três anos, fui para Nova Iorque com o meu irmão e a namorada. Um dia, caminhámos muito. Eles, cansados, tiveram de se sentar num parque e eu fui dar voltinhas para me cansar, porque não conseguia ficar cansada. No ano passado, fui para a Califórnia com um amigo a até subi ao Moro Rock no Sequoia National Park…"
Foi no Porto que Fatinha conheceu o ex-namorado belga, que estava a fazer Erasmus na ESAD, e, no final do curso, a ilustradora foi viver com ele para Antuérpia, onde trabalhou como directora artística na agência de publicidade Choco e desenvolveu campanhas nacionais. Uma delas, "Me is Out", sobre autismo, foi premiada pelo Creative Club of Belgium (CCB). "As pessoas gostavam do meu trabalho, acho que tenho um lado conceptual forte." A área da publicidade trouxe-lhe prémios e conforto monetário, mas era um trabalho duro e Fatinha não se sentia feliz. Despediu-se. Esteve uns meses na Nicarágua com os Arquitectos Sem Fronteiras a construir casas em bambu e, quando regressou à Bélgica, continuou a trabalhar na área do design gráfico como freelancer. Mas faltava-lhe a paixão. Tinha saudades dos seus desenhos.
Um dia, faltou um ilustrador na Libelle, revista com a qual colaborava, e Fatinha ofereceu-se para fazer a ilustração. Era sobre o relógio biológico das mulheres. "As pessoas ficaram maravilhadas e começaram a pedir-me mais, mais e mais. Tirei o design gráfico da minha vida, sabia que ia ser duro, e continua a ser, mas de repente tudo começou a escalar, e eu só faço ilustração há quatro anos! Os meus trabalhos viajam mais do que eu, estão na Coreia do Sul, em Cuba, nos Estados Unidos." Fatinha acumula distinções. Recebeu este ano o prémio de excelência, na área de ilustração da revista Communication Arts, e os desenhos têm sido internacionalmente reconhecidos por entidades como Society of Illustrators e publicações como 3x3, The Magazine of Contemporary Illustration. Um dos trabalhos mais premiados tem sido a ilustração do livro "Fábulas de La Fontaine", da Porto Editora. Também o trabalho "I am lots of love", da editora WPG (Davidsfonds), está a ser um "sucesso de vendas" na Bélgica.
Além de livros infantis, Fatinha Ramos faz ilustrações para revistas como a belga MO* Magazine e a holandesa Flow Magazine. Em Portugal, a artista é representada pela agência Illustopia, no Porto, e o seu terreno no país ainda está por explorar. Um dia, Fatinha gostaria de voltar, sente falta do sol e do mar e das pessoas. "As pessoas do Sul da Europa são como uma manga, muito 'soft' no início mas, a partir de determinada altura, são como um caroço, e não deixam passar mais ninguém para o seu círculo íntimo. Os nórdicos são como um coco, difíceis de partir mas, quando partem, são água."
Para já, Fatinha vai manter o seu pouso em Antuérpia, focada nas ilustrações. Mas irá além delas. Recebeu uma bolsa do governo belga para iniciar o seu trabalho enquanto artista plástica. "Quero pintar, sempre quis pintar." Mas continuará a fazer ilustrações e a mostrá-las ao público, fora e dentro de Portugal, como aconteceu com "Unbreakable", uma exposição que criou em Antuérpia para celebrar o seu aniversário e que depois esteve no Pólo das Indústrias Criativas, no Porto, a primeira mostra individual do seu trabalho no país. Uma das ilustrações da colecção "Unbreakable" mostra um elefante equilibrado em cima de uns bambus tão fininhos que parecem ossos. Da tromba sai uma árvore com vários ramos. "Todos nós somos quebráveis, todos nós somos frágeis. E é pelo facto de mostrar essa fragilidade que nos tornamos fortes."