Notícia
Doping imperialista
Os Jogos Olímpicos sempre foram uma extensão do teatro político mundial. As grandes potências usam o palco do desporto para reclamar a sua supremacia. É assim desde há muito. Mas, desta vez, a Rússia "deixou-se apanhar nas malhas do doping".
Dos 387 atletas que o Comité Olímpico da Rússia pretendia levar ao Rio de Janeiro, mais de 110 foram banidos por recurso a doping. O "urso russo" chega ferido aos Jogos Olímpicos, que foram sempre uma extensão do palco político mundial. O Muro de Berlim caiu e a União Soviética implodiu no início da década de 1990. Mas as disputas pela supremacia que são inerentes ao território das relações internacionais continuam a travar-se nas Olimpíadas. Os Jogos não deixaram de ser uma projecção das batalhas pela hegemonia. Adaptando a expressão do general Carl von Clausewitz - "a guerra é a continuação da política por outros meios" -, os Jogos Olímpicos serão a continuação da luta entre Estados por meios pacíficos.
Para o general Loureiro dos Santos, as prestações nos Jogos Olímpicos "normalmente correspondem ao poder geopolítico dos países. E os Estados Unidos são exemplo disso." O fim da história previsto por Francis Fukuyama após a queda do Muro não se confirmou. Pelo contrário, vingou a tese do choque de civilizações de Samuel Huntington. Nos Jogos, esse choque é, acima de tudo, um confronto entre distintos modelos sociopolíticos. José Milhazes, ex-correspondente na Rússia, explica que "a política russa no desporto passa por mostrar que eles são os melhores".
De acordo com uma investigação conduzida pelo canadiano Richard Mclaren, o ministro russo do Desporto, Vitaly Mutko, "orquestrou, controlou e supervisionou a manipulação de resultados" dos testes feitos a atletas russos, com a conivência dos diversos organismos do país. De seguida, a Agência Mundial Antidopagem propôs que os desportistas da Rússia fossem banidos dos Jogos do Rio de Janeiro, considerando a existência de "uma profundamente enraizada cultura de fraude" no desporto russo. No entanto, o Comité Olímpico Internacional (COI) não recorreu à "bomba atómica", optando por deixar a decisão final nas mãos das federações de cada uma das modalidades. Ficou decidido que só os atletas com "registo limpo" poderiam ir ao Rio. Por exemplo, todos os 68 praticantes de atletismo e os oito halterofilistas que a Rússia pretendia apresentar nos Jogos foram banidos.
As conclusões da WADA foram reforçadas pela confissão do ex-director do laboratório russo antidoping. Grigory Rodchenkov admitiu ter colaborado num programa estatal secreto de dopagem de atletas que participaram nos Jogos de Inverno de 2014 em Sochi. Nesse evento, os atletas russos foram os primeiros tanto em total de medalhas conquistadas (33) como em medalhas de ouro (13).
Num mundo cada vez mais polarizado, fará sentido continuar a utilizar as Olimpíadas como palco de afirmação de poder? "Faz todo o sentido. É típico dos regimes autoritários. O regime russo é cada vez mais autoritário. Já durante a Guerra Fria era assim", responde o também historiador Milhazes. Com 1.528 medalhas conquistadas em Jogos Olímpicos de Verão, a Rússia é a segunda grande potência olímpica (se aqui estiver incluída a ex-União Soviética), mas tem a posição ameaçada pela Alemanha e por uma China em crescendo.
Se os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna (1896), realizados em Atenas, preconizavam um certo idealismo, assente no amor pelo desporto em contraposição à prossecução de interesses próprios ou nacionais, rapidamente o cenário mudou. Apesar de o capítulo 5 da Carta Olímpica estabelecer a proibição de todo o tipo de propaganda política, religiosa ou racial, a era olímpica moderna foi campo de guerras, protestos, boicotes e até de terrorismo.
A mudança de paradigma ficou notoriamente patente nos Jogos de 1936, em Berlim. Num contexto de plena afirmação da ideologia nazi, Adolf Hitler viu nas Olimpíadas uma oportunidade para afirmar a supremacia da raça ariana. As suas contas foram furadas de forma espectacular pelo norte-americano Jesse Owens. Este velocista e saltador negro acabou por se tornar, ironicamente, no herói dos Jogos de Berlim, ficando gravadas na pedra as quatro medalhas de ouro conquistadas na capital alemã.
Mas seria o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria a atribuírem um novo significado às Olimpíadas, de então em diante realizadas sob o binómio capitalismo "versus" comunismo. A disputa entre os blocos soviético e ocidental, separados pela Cortina de Ferro, foi transposta para o campo dos Jogos. Sete anos depois do fim da Segunda Guerra, a União Soviética regressou às Olimpíadas, em Helsínquia, após 40 anos de ausência. Logo aí Moscovo exigiu que os seus atletas ficassem em instalações separadas. O auge da tensão entre blocos foi atingido nas edições de 1980 (Moscovo) e 1984 (Los Angeles).
Em 1979, o Presidente norte-americano, Jimmy Carter, apresentava um ultimato a Moscovo, dizendo que se o exército soviético não retirasse do Afeganistão, os Estados Unidos iriam boicotar os Jogos Olímpicos do ano seguinte, na Rússia. A invasão russa do Afeganistão só terminaria em 1989 (com derrota soviética) e os Jogos de 80 não contaram com a participação de mais de 60 países, entre eles os Estados Unidos, o Japão, o Canadá e a República Federal da Alemanha (RFA).
Acto quase contínuo, a União Soviética lideraria em 1984 um boicote aos Jogos de Los Angeles, argumentando que o Comité Organizador não respeitara o espírito olímpico ao apostar na obtenção de lucros. Estados socialistas como Angola, República Democrática Alemã (RDA) e Cuba não foram à Califórnia. A era pós-moderna dos Jogos acabaria por consagrar o fim do ideal que fez renascer as Olimpíadas.
A Guerra Fria não acabou
O actual golpe sofrido pela Rússia neste escândalo de doping surge após anos de vitórias na política externa por parte de Putin. À anexação da península da Crimeia, em 2014, seguiu-se um conflito armado no Leste da Ucrânia, que permitiu a Moscovo reiterar a sua tradicional área de influência. Depois de negociações e processos de paz falhados, a Ucrânia continua dependente de Moscovo e a anexação da Crimeia é um facto consumado. Na Síria, a intervenção russa revelou-se decisiva para o volte-face que permitiu ao Presidente Bashar al-Assad recuperar a dianteira numa guerra civil que parecia perdida para os rebeldes apoiados pelas monarquias sunitas da região.
Putin capitaliza internamente, recuperando a ideia da Grande Rússia. No fundo, defende José Milhazes, "a Guerra Fria nunca acabou. Abrandou em determinado momento e está agora a recrudescer". A própria defesa do Kremlin no caso de doping em grande escala recupera uma narrativa própria da Guerra da Fria. Além de não demitir o seu ministro do Desporto, Putin afirmou que as alegações sobre práticas de doping patrocinadas pelo Estado russo não passam de uma conspiração, liderada por Washington, em que o desporto é utilizado como "instrumento de pressão geopolítica".
"Há uma propaganda brutal que garante existir uma cabala contra a Rússia", resume Milhazes. Aleksei Pushkov, alto oficial do Kremlin, sugeriu mesmo que a punição dos atletas russos representa uma "vingança contra a política externa independente" da Rússia. Para Milhazes, "Putin não sairá minimamente beliscado ao nível interno". Já Loureiro dos Santos considera que "a Rússia sai fragilizada" deste processo porque "não tem o número de atletas equivalente à sua grandeza e posicionamento geopolítico mundial".
No livro "Russia: The Once and Future Empire From Pre-History to Putin", Philip Longworth recorda que, "apesar de o seu império ter acabado, a Rússia e os russos subsistem", bem como a propensão da Rússia para um imperialismo centralizado. Para Loureiro dos Santos, ainda que o escândalo de doping possa "dificultar" o caminho russo na recuperação de estatuto de superpotência, "não retira o lugar geopolítico reforçado que o país alcançou nos últimos anos". O também ex-ministro da Defesa sublinha que "a Rússia pretende recolocar-se no patamar de superpotência, embora permaneça ainda uma potência regional". A intenção do regime autoritário de Moscovo parece ser clara. Utilizar o desporto como instrumento imperialista. "O que falhou foi a Rússia ter-se deixado apanhar nas malhas do 'doping'", nota José Milhazes.
Para o general Loureiro dos Santos, as prestações nos Jogos Olímpicos "normalmente correspondem ao poder geopolítico dos países. E os Estados Unidos são exemplo disso." O fim da história previsto por Francis Fukuyama após a queda do Muro não se confirmou. Pelo contrário, vingou a tese do choque de civilizações de Samuel Huntington. Nos Jogos, esse choque é, acima de tudo, um confronto entre distintos modelos sociopolíticos. José Milhazes, ex-correspondente na Rússia, explica que "a política russa no desporto passa por mostrar que eles são os melhores".
As conclusões da WADA foram reforçadas pela confissão do ex-director do laboratório russo antidoping. Grigory Rodchenkov admitiu ter colaborado num programa estatal secreto de dopagem de atletas que participaram nos Jogos de Inverno de 2014 em Sochi. Nesse evento, os atletas russos foram os primeiros tanto em total de medalhas conquistadas (33) como em medalhas de ouro (13).
Num mundo cada vez mais polarizado, fará sentido continuar a utilizar as Olimpíadas como palco de afirmação de poder? "Faz todo o sentido. É típico dos regimes autoritários. O regime russo é cada vez mais autoritário. Já durante a Guerra Fria era assim", responde o também historiador Milhazes. Com 1.528 medalhas conquistadas em Jogos Olímpicos de Verão, a Rússia é a segunda grande potência olímpica (se aqui estiver incluída a ex-União Soviética), mas tem a posição ameaçada pela Alemanha e por uma China em crescendo.
Se os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna (1896), realizados em Atenas, preconizavam um certo idealismo, assente no amor pelo desporto em contraposição à prossecução de interesses próprios ou nacionais, rapidamente o cenário mudou. Apesar de o capítulo 5 da Carta Olímpica estabelecer a proibição de todo o tipo de propaganda política, religiosa ou racial, a era olímpica moderna foi campo de guerras, protestos, boicotes e até de terrorismo.
A mudança de paradigma ficou notoriamente patente nos Jogos de 1936, em Berlim. Num contexto de plena afirmação da ideologia nazi, Adolf Hitler viu nas Olimpíadas uma oportunidade para afirmar a supremacia da raça ariana. As suas contas foram furadas de forma espectacular pelo norte-americano Jesse Owens. Este velocista e saltador negro acabou por se tornar, ironicamente, no herói dos Jogos de Berlim, ficando gravadas na pedra as quatro medalhas de ouro conquistadas na capital alemã.
Mas seria o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria a atribuírem um novo significado às Olimpíadas, de então em diante realizadas sob o binómio capitalismo "versus" comunismo. A disputa entre os blocos soviético e ocidental, separados pela Cortina de Ferro, foi transposta para o campo dos Jogos. Sete anos depois do fim da Segunda Guerra, a União Soviética regressou às Olimpíadas, em Helsínquia, após 40 anos de ausência. Logo aí Moscovo exigiu que os seus atletas ficassem em instalações separadas. O auge da tensão entre blocos foi atingido nas edições de 1980 (Moscovo) e 1984 (Los Angeles).
Em 1979, o Presidente norte-americano, Jimmy Carter, apresentava um ultimato a Moscovo, dizendo que se o exército soviético não retirasse do Afeganistão, os Estados Unidos iriam boicotar os Jogos Olímpicos do ano seguinte, na Rússia. A invasão russa do Afeganistão só terminaria em 1989 (com derrota soviética) e os Jogos de 80 não contaram com a participação de mais de 60 países, entre eles os Estados Unidos, o Japão, o Canadá e a República Federal da Alemanha (RFA).
Acto quase contínuo, a União Soviética lideraria em 1984 um boicote aos Jogos de Los Angeles, argumentando que o Comité Organizador não respeitara o espírito olímpico ao apostar na obtenção de lucros. Estados socialistas como Angola, República Democrática Alemã (RDA) e Cuba não foram à Califórnia. A era pós-moderna dos Jogos acabaria por consagrar o fim do ideal que fez renascer as Olimpíadas.
A Guerra Fria não acabou
O actual golpe sofrido pela Rússia neste escândalo de doping surge após anos de vitórias na política externa por parte de Putin. À anexação da península da Crimeia, em 2014, seguiu-se um conflito armado no Leste da Ucrânia, que permitiu a Moscovo reiterar a sua tradicional área de influência. Depois de negociações e processos de paz falhados, a Ucrânia continua dependente de Moscovo e a anexação da Crimeia é um facto consumado. Na Síria, a intervenção russa revelou-se decisiva para o volte-face que permitiu ao Presidente Bashar al-Assad recuperar a dianteira numa guerra civil que parecia perdida para os rebeldes apoiados pelas monarquias sunitas da região.
Putin capitaliza internamente, recuperando a ideia da Grande Rússia. No fundo, defende José Milhazes, "a Guerra Fria nunca acabou. Abrandou em determinado momento e está agora a recrudescer". A própria defesa do Kremlin no caso de doping em grande escala recupera uma narrativa própria da Guerra da Fria. Além de não demitir o seu ministro do Desporto, Putin afirmou que as alegações sobre práticas de doping patrocinadas pelo Estado russo não passam de uma conspiração, liderada por Washington, em que o desporto é utilizado como "instrumento de pressão geopolítica".
"Há uma propaganda brutal que garante existir uma cabala contra a Rússia", resume Milhazes. Aleksei Pushkov, alto oficial do Kremlin, sugeriu mesmo que a punição dos atletas russos representa uma "vingança contra a política externa independente" da Rússia. Para Milhazes, "Putin não sairá minimamente beliscado ao nível interno". Já Loureiro dos Santos considera que "a Rússia sai fragilizada" deste processo porque "não tem o número de atletas equivalente à sua grandeza e posicionamento geopolítico mundial".
No livro "Russia: The Once and Future Empire From Pre-History to Putin", Philip Longworth recorda que, "apesar de o seu império ter acabado, a Rússia e os russos subsistem", bem como a propensão da Rússia para um imperialismo centralizado. Para Loureiro dos Santos, ainda que o escândalo de doping possa "dificultar" o caminho russo na recuperação de estatuto de superpotência, "não retira o lugar geopolítico reforçado que o país alcançou nos últimos anos". O também ex-ministro da Defesa sublinha que "a Rússia pretende recolocar-se no patamar de superpotência, embora permaneça ainda uma potência regional". A intenção do regime autoritário de Moscovo parece ser clara. Utilizar o desporto como instrumento imperialista. "O que falhou foi a Rússia ter-se deixado apanhar nas malhas do 'doping'", nota José Milhazes.