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Desculpe, estou "offline"

Em França, há uma nova lei que dá aos trabalhadores o direito de "desligar" do trabalho quando terminam o seu horário laboral. O tema não é consensual. Psicólogos e psiquiatras avisam que a saúde das pessoas está em risco. Os gestores de recursos humanos consideram que a era digital trouxe muitas vantagens para todos.

Kiyoshi Ota/Bloomberg
13 de Janeiro de 2017 às 14:00
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Até que ponto deve haver uma linha clara que separe o tempo que dedicamos ao trabalho daquele que temos para a vida privada? Deve ser uma questão de bom senso ou estar escrito na lei? O Governo francês entendeu que a resposta a estas perguntas tem de ser clara, inequívoca, e decidiu publicar uma lei, que entrou em vigor no início do ano, onde consagra aos trabalhadores o "direito de desligar". A nova legislação, que regula a utilização de ferramentas digitais, aplica-se a empresas com mais de 50 colaboradores. Os franceses deixaram assim de ser forçados a estar disponíveis para responder a e-mails profissionais quando estão fora do seu horário de trabalho. As empresas são obrigadas a definir regras claras, negociadas com os trabalhadores, que respeitem o tempo de repouso e a tomar medidas para que o acordo seja cumprido. Caso as partes não cheguem a acordo, as entidades empregadoras têm de estabelecer um código de conduta para que os trabalhadores conheçam as regras.

França não foi pioneira nesta matéria. Em 2014, a Alemanha aprovou uma legislação que impede as chefias de contactarem os seus subordinados via telefone ou correio electrónico fora do seu horário de trabalho, excepto em situações de emergência. Esta lei foi aplicada depois de ter surgido um movimento nas empresas, entre elas a Volkswagen e a Daimler, no sentido de fazer uma divisão clara entre trabalho e tempo de descanso dos colaboradores. No caso da Volkswagen, foi criado um sistema informático que bloqueia o envio de e-mails profissionais para os telefones dos empregados, nos dias úteis entre as 18h15 e as 7h e aos fins-de-semana, excepto no caso dos gestores. E a Daimler desenvolveu o programa "Correio nas férias", que permite a destruição automática de e-mails nas férias, se o trabalhador assim o entender.

Em França também há companhias que adoptaram sistemas semelhantes, como o grupo bancário BPCE, a seguradora Axa ou a fabricante de pneus Michelin. Mas os casos ainda são residuais, diz o Le Monde, citando fontes sindicais francesas. De acordo com o jornal, apenas 1% das empresas recorreram a este tipo de soluções tecnológicas. O Governo francês justificou a nova lei com a necessidade de combater os impactos na saúde e na vida privada das pessoas que estão permanentemente "ligadas" ao trabalho. Um dos estudos que terá servido de base à decisão do executivo francês foi o da consultora Eléas, especialista na administração da qualidade de vida e na prevenção de riscos psicossociais, que revelou que 37% dos inquiridos se ligavam às contas profissionais fora de horas e a maioria (62%) desejava uma lei que controlasse as ligações a aparelhos digitais fora das horas de trabalho. Espanha já admitiu querer seguir o exemplo francês. Por cá, o Ministério de Vieira da Silva prefere que esta questão seja definida por acordo entre patrões e empregados no âmbito da negociação colectiva.

Deve ou não legislar-se?

Os vários especialistas em direito laboral contactados pelo Negócios foram unânimes - a lei em Portugal já regula de forma clara os tempos de descanso dos trabalhadores. Para Luís Gonçalves da Silva, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o país não deve andar "a reboque" das iniciativas legislativas de outros. "Não podemos continuar apenas preocupados com a lei substantiva e ignorar o que se passa no acesso à justiça. Muitos direitos que já temos não passam do papel por não termos meios para os tornar efectivos", defende. Já a jurista Andreia Ferreira Dias, da Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados, admite que este é um problema real no mercado de trabalho, mas sublinha que, em parte, esta é uma questão "cultural", fruto da "falta de capacidade, quer dos empregadores, quer dos trabalhadores, de verdadeiro aproveitamento do tempo de trabalho, tornando tantas vezes comum a realização das chamadas horas extraordinárias, que nem sempre seriam verdadeiramente necessárias". Luís Gonçalves da Silva levanta ainda uma outra questão. Os dispositivos electrónicos também trouxeram aspectos positivos porque "dão mais flexibilidade ao trabalhador para, por exemplo, trabalhar em casa". Por outro lado, questiona, "uma pessoa que gere uma carteira de clientes e recebe uma encomenda importante, já tarde, ignora até ao dia seguinte, quando sabe que vai receber uma boa comissão?"

Este é um tema "muito controverso", considera Mário Ceitil, presidente da Associação Portuguesa de Gestão de Pessoas. Em Portugal, o equilíbrio entre a vida pessoal e familiar já está a ser discutido há muito nas empresas e algumas já adoptaram medidas nesse sentido, refere, mas em concreto o uso de dispositivos móveis para poder trabalhar em casa já faz parte da cultura de muitas organizações. A chamada era digital "permite às pessoas fazer a gestão dos seus tempos e ter uma maior flexibilidade", diz este especialista. Nesse sentido, esta legislação, "embora seja claramente orientada para o direito das pessoas à sua vida privada" e para "limitar abusos", pode, no entanto, constituir uma limitação à flexibilização na organização do trabalho. "As pessoas hoje já não funcionam por horários de trabalho rígidos", afirma, dando como exemplo os chamados "millennials", pessoas nascidas depois de 1980, que "valorizam extraordinariamente a autonomia". O assunto deve ser discutido dentro das empresas, defende, e deve ser dada ao trabalhador "a possibilidade de se ligar quando entender". Maurício Korbivcher, director-geral do Instituto Great Place to Work, que todos os anos distingue as melhores empresas para trabalhar em Portugal, diz que ainda são poucas as companhias que têm regras para a utilização dos dispositivos electrónicos. As poucas que existem, "fazem marketing interno" com a intenção de apostar na "retenção de talentos". Mas são poucos os trabalhadores que valorizam isso, afirma.

Pedro Afonso, psiquiatra e professor na AESE - Business School, considera que uma legislação é "necessária" porque "perdeu-se a noção do limite" e "há uma certa coacção para não desligar". Já "é uma prática generalizada levar trabalho para casa e muitas vezes as férias são interrompidas por questões profissionais". O clínico alerta que esta pressão para estar sempre "ligado" está a deixar marcas na saúde física e mental das pessoas. "As novas tecnologias acabam por transformar a casa num lugar de trabalho. Perante esta nova realidade, tem de se criar novas regras", diz. Para este clínico, "os nossos sindicatos e partidos estão desfasados desta realidade" e, "em vez de estarem tão focados nos 25 dias de férias, deviam estar mais atentos a este assunto." A pressão para obter resultados e para "continuar a produzir o mesmo com menos recursos humanos" está também a ter impacto na vida pessoal.

O excesso de trabalho é uma das causas de divórcio, sendo que Portugal tem neste momento a taxa mais alta da Europa. Em cada 100 casamentos, 70 acabam em divórcio. Paralelamente, há também um consumo "per capita" elevado de antidepressivos e ansiolíticos. "O excesso de carga horária pode causar perturbações de sono, ansiedade e depressões, explica. Mas este não é apenas um problema de saúde pública. Se for aplicada uma lei em Portugal semelhante à francesa, isso trará benefícios para a economia, sublinha o psiquiatra. "A motivação não se alcança apenas com uma melhor remuneração." Afinal de contas, "para ter qualidade de vida, as pessoas precisam de tempo disponível para fazer outras coisas".
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