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De pé como as árvores

O que começou por ser a recusa do abate das árvores de um parque é agora muito mais. É a defesa da liberdade de um povo que o primeiro-ministro Erdogan parece ter subestimado

07 de Junho de 2013 às 14:02
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Rui e Kerem continuam a dirigir-se diariamente para o Parque Gezi, em Istambul, onde passam grande parte da noite em protesto contra a "prepotência" do governo de Recep Tayyip Erdogan. Já sabem defender-se melhor do gás lacrimogéneo e levam comida e água para repartirem com outros manifestantes. A eles têm-se juntado, nos últimos oito dias, milhares de pessoas. O que parecia ser "apenas" mais uma contestação, desta vez contra o abate das árvores centenárias do parque Gezi para a construção de um centro comercial, subiu de tom com a violência da carga policial.


Mas o primeiro-ministro turco não dá mostras de querer ceder. Pretende mesmo avançar com a construção do centro comercial. "Vai tornar Istambul mais bonita", disse ontem, citado pelo "The Guardian". Enquanto falava, a bolsa de Istambul afundou e fechou a perder quase 5%. Das 100 cotadas que compõem o índice, 97 encerraram em baixa. Os quatro títulos que mais caíram são todos do sector financeiro. Há relatos de que muitos turcos estão a retirar o seu dinheiro dos bancos pertencentes aos donos dos grupos de media que censuraram os protestos contra o governo. Receoso com as consequências no mercado accionista, o Garanti Bank [detido pelo Dogus Media Group, dono de 25 marcas, entre as quais 8 estações de TV,] tornou ontem público um anúncio em que dizia compreender o protesto. Parece ter funcionado. Estava a cair mais de 8,5% em bolsa, conseguiu recuperar algum fôlego e fechar a descer "apenas" 3,18%.


Praça Taksim: quase na pré-história do conflito
Os manifestantes pedem a demissão de Erdogan e reiteram: "Isto já não tem só a ver com árvores!" De facto, "a questão da urbanização da Praça Taksim está quase na pré-história deste conflito. Funcionou como detonador. E agora alastrou às principais urbes da Turquia", diz ao Negócios, Azeredo Lopes, professor de Direito Internacional na Universidade Católica.


Entre os manifestantes há pessoas de classes sociais diferentes, de ideologias diferentes, de religiões diferentes. "Juntaram-se para evitar a demolição de algo muito mais significativo do que o parque: o direito a viverem como cidadãos honrados deste país", escreveu, no seu blog, a socióloga turca Defne Suman. "Os protestos deixaram de ter a ver apenas com o parque Gezi, passando a estar em causa outras questões em que o primeiro-ministro aliena o povo", diz por sua vez Kerem.


Rui é português e vive em Istambul. É amigo de Kerem, um músico turco de 30 anos que toca numa orquestra local. Desde 22 de Maio - quando foram defender as árvores de Gezi, destinadas ao derrube no dia seguinte - que vivem mais a noite que o dia. Já sentiram os olhos a arder e chegaram a casa encharcados, fruto dos canhões de água e dos gases lançados pela polícia. Mas não desistem de regressar, todos os dias, a Gezi e à praça Taksim, que fica ali a uns poucos passos de distância e que vai enchendo com protestos que ecoam na imprensa internacional. Os media turcos, por sua vez, continuam a passar novelas e programas sobre vida animal, criticam algumas pessoas com quem o Negócios falou. Umas pedem anonimato. "A pressão é muita, já prenderam 38 jovens só pelo que escreveram no Twitter". Outras dizem "podes pôr o meu nome verdadeiro". E agradecem a divulgação. "O mundo tem de saber o que se passa aqui. Os 'social media' têm sido a única fonte de notícias", afirma Ismail (nome fictício). "As redes sociais têm sido muito importantes. Não é estranho que Erdogan as critique e diga que são um factor de grave desestabilização", sublinha Azeredo Lopes.

 

 

O actual conflito acaba por ser "um rebentar da bolha que estava já presente na sociedade turca desde há alguns anos", diz Azeredo Lopes, professor de Direito Internacional.

 


Na opinião do professor, "o poder político turco subestimou grandemente a importância das manifestações e agora tem tentado penitenciar-se da fase inicial de extrema violência. Azeredo Lopes adivinha, contudo, que a situação possa vir a ter "consequências para o partido no poder, nomeadamente nas eleições autárquicas de Outubro". "A tal franja muito significativa da sociedade que sente a morte da secularização da Turquia tem reagido de forma obstinada e determinada", acrescenta, aludindo ao facto de Erdogan, pela maioria absoluta que detém, ter achado que já não precisava de negociar. "Ele acreditou, no início, que estava a falar com meia dúzia de vadios. Vê-se bem a diferença entre o seu primeiro discurso, que foi até um pouco sobranceiro, e agora, em que o governo desculpa à população, dizendo que foi excessivo. Está a tentar descomprimir um pouco a situação."


"A legitimidade política confundida com autoridade moral não dá bom resultado", lembra Azeredo Lopes. Erdogan, que ascendeu ao poder com as características de islâmico moderado, começou entretanto a promover o fim da secularização. "E já vimos o que isso deu noutras paragens", comenta, salientando que o actual conflito acaba por ser "um rebentar da bolha que estava já presente na sociedade turca desde há alguns anos".


"O ditador que não tolera o modo de vida dos laicos"
Ayse Yilmaz vive em Istambul, no lado europeu do estreito do Bósforo. E também quis falar ao Negócios. O nome é fictício. "O povo turco combate, neste momento, o regime autoritário pró-islâmico de Erdogan", já que, acusa Ayse, "o primeiro-ministro não tolera o modo de vida dos laicos, como beber álcool e poder ter sexo sem estar casado; ele pensa que todos os laicos da Turquia são alcoólicos e tendentes à luxúria; acha que ser 'gay' ou lésbica é uma doença; (…) é um grande ditador que silencia todo o tipo de vozes, excepto a sua. É isso que combatemos!", frisa. "Por favor, partilhe isto com o povo português. Mas mantenha o meu nome em segredo."


"RTE [forma abreviada do nome do primeiro-ministro, usada pela maioria dos turcos] tem apenas 50% dos votos. Ele tem de recuar e respeitar os direitos e liberdades individuais, tem de parar de agir como um ditador", defende Halil Sözer, que vive em Siirt, onde também já se fazem sentir os protestos. Ancara (capital), Adana, Hatay, Rize e Izmir contam-se igualmente entre as muitas cidades onde a contestação está a sair para as ruas. Quem "não tem coragem ou forças, fica em casa à janela, a bater em tachos e panelas. E a acender e a apagar as luzes", conta Kerem Oktem.


Entretanto, em Istambul, os ânimos acalmaram na quarta-feira à noite, com a polícia a usar menos violência. Mas esperava-se, ontem à noite, uma intensificação dos protestos, após as palavras de Erdogan, que se mostra inflexível na construção do centro comercial. Em Gezi, as árvores, por enquanto ainda quase todas de pé - os "bulldozers" apenas conseguiram derrubar algumas - continuam a ser protegidas por abraços, música e muitos livros. Uma biblioteca espontânea nasceu há dois dias no parque. E uma jovem vestida de vermelho, que não arredou pé enquanto era atingida por um canhão de água, tornou-se o novo símbolo dos manifestantes. Essa é agora a cor que mais usam. Tal como a bandeira do país.

 

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