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Clarice não inventada

"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento." Clarice, "A Hora da Estrela", na Gulbenkian a partir de hoje

05 de Abril de 2013 às 14:01
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Como se expõem palavras? Escrevendo palavras, falando palavras. Como se expõe Clarice Lispector? Por exemplo: assim. Escrevendo palavras, falando palavras - em Clarice, as palavras são a própria sensorialidade. A sua, a nossa. "Sabe", ri-se a curadoura Júlia Peregrino, "tem muita gente que vê a exposição e diz assim: 'ela escreveu isso p'ra mim!'. E depois sai correndo comprar seus livros".


"A Hora da Estrela", título do último livro de Clarice Lispector (1920-1977), é o nome da exposição que hoje abre em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, sobre a escritora brasileira que nasceu na Ucrânia e queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo pelas suas mãos. É a primeira coisa que se lê, ainda na antecâmara: "Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter subtilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor." A língua. Foi no Museu da Língua Portuguesa de São Paulo que a exposição estreou, museu de língua viva, esta língua portuguesa. "Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la - como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope".


Júlia Peregrino declara: o objectivo é dar a conhecer Clarice Lispector ao público português, o que pressupõe que ela é ainda uma desconhecida para muitos dos seus futuros leitores. No Brasil, a cada nova geração cresce o número de leitores, de seguidores, de uma escritora mítica - estatuto que não lhe agradava, mesmo nas entrevistas que não gostava de dar: "As entrevistas que eu dou são para explicar que não sou um mito", afirmou ao jornal "Pasquim" em 1974. Se não era (e já era), ficou. Os visitantes virgens poderão sentir o reconhecimento anunciado por Júlia Peregrino, como Lóri em "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres": "Você é a mesma de sempre. Só que desabrochou em rosa vermelho-sangue." Mas também leitores já treinados, como o autor da sua aclamada biografia, Benjamim Moser, que nunca conheceu Clarice, confessa que não teria muita vontade de conversar com ela porque não a imagina exterior a si mesmo: "Ler Clarice é, mais que nada, uma conversa com o mais íntimo de nós mesmos. (…) Trata-se, para muitos, de um verdadeiro amor". Era onde íamos: na declaração de amor. Entremos na exposição. Voltemos às palavras.

 

"Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam."
Fotografias, à esquerda e à direita, de uma mulher muito bonita sobre frases, frases suas. "Ver é a pura loucura do corpo". É a primeira sala das seis (e um anexo) da exposição. Uma imersão súbita. E a primeira sensação, ou mesmo medo, de que a exposição seja, afinal, "best of" de citações de uma autora de grande "citabilidade", como se lhe referiu Machado de Assis. Mentira, meus senhores, a exposição não é isso, mas já lá vamos. Até porque é impossível fazer um "best of" de citações de Clarice. Abre-se um livro em páginas ao calhas e não se sai de lá. Qualquer livro. Quaisquer páginas. "A exposição não é biográfica", explica a curadora, "queremos mostrar flashes da obra dela. Frases que fazem sentido mesmo fora da obra em que se inserem". Flash é um bom termo. E as frases, aqui escritas como borboletas incapturáveis, puxam-nos para o extraordinário universo de Clarice Lispector. O universo-eu. "Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa em entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto, não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome". Assim pensa Joana, em "Perto do Coração Selvagem", o romance inaugural de uma escritora então com 19 anos, que arrebatou a crítica. O seu trabalho quintessencial? "Que nada!" Quintessenciais são todos. Clarice é quintessencial.


"Eu sou mais forte do que eu"
Não é a exposição em si mesma que é maravilhosa, maravilhosa obviamente é Clarice, a exposição tem a elegância de o conceder. Clarice é maior que a exposição da mesma maneira que o livro "Uma Aprendizagem…" "está muito acima de mim", escreveu Clarice. "Eu sou mais forte do que eu". A exposição é então o quê? Uma evocação? Uma apresentação? Uma casa, a casa de Clarice? Sim, é isso, é uma visita a uma casa com Clarice lá dentro. É uma construção de pecinhas de texto, frases, livros, folhas, farrapos; um cubo mágico que está sempre solucionado porque a sua combinação está sempre certa, todas as peças são Clarice; é uma geometria quieta para a impossivelmente geométrica Clarice, que é só núcleo, viajante no espaço até ao seu próprio Big Bang, o universo numa casca de noz. "Quando eu me comunico com criança, é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil, né?". A cenografia é aliás muito respeitadora dessa força de Clarice, despojada e íntima, muita-luz e pouca-luz, que apresenta mais do que revela, traz mais do que transporta, embora não resista (quem resistiria?) à encenação do quarto de criada de "A Paixão Segundo G.H.", o seu mais popular romance. É na segunda sala, depois de um corredor falso e antes de um anexo que representa o armário de onde, no livro, sai uma barata, morta entalada na porta num momento que dura quase todo o romance, até ao apogeu que é uma mulher, G.H., comê-la. Nesse momento "a mulher vai até aos rincões da loucura", o que os encenadores mostram pelas frases, que agora estão escavadas na parede como se tivessem sido esgravatadas com as unhas de G.H. No meio, o colchão velho da criada. "A única salvação do ser humano é a alegria".


"A palavra é o meu domínio sobre o mundo"
Sala seguinte, mais citações, agora, encaixilhadas em vidro, sobre polaroids, incluindo de cães, cães como Ulisses, o cão de Clarice "que ficou só sendo". Na parede, frente a um sofá e a uma máquina de escrever, a projecção da última entrevista de Clarice Lispector, única concedida a uma televisão, com a condição de ser difundida apenas após a sua morte. A entrevista, muito conhecida, é aqui suprimida da voz do entrevistador: Clarice fala connosco. "Bem agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo". Clarice acredita em Deus? "A resposta seria longa demais", dissera ao Jornal do Brasil em 1963. Em 1974, ao "Pasquim", conta: "Outro dia eu anotei uma frase assim: 'Deus é tão ilógico que eu acredito nele'".


Passando um cubo caleidoscópico de luz, chega-se à última sala. Um achado. Mil achados. Uma sala revestida com 1089 gavetas, das quais 35 abrem, revelando espólio da escritora, manuscritos, fotografias, anotações em qualquer pedaço de papel, cartas a Lúcio Cardoso ("Lúcio, é esquisito escrever uma carta de tão longe, parece que se fica com a obrigação de dizer coisas formidáveis"), a Fernando Sabino ("a solidão de que sempre precisei é ao mesmo tempo inteiramente insuportável"), uma entrevista incrível que Clarice faz a Nelson Rodrigues ("Nelson, como consequência de meu incêndio, passei quase três meses no hospital. E recebia visitas até de estranhos. Eu não sou simpática. Mas o que é que eu dei aos outros para que viessem me fazer companhia? Não acredito que não se tenha amigos. É que são raros.")


O último terminará com um bang ou com um soluço? "Segundo minha experiência, com um silêncio", respondera ao Jornal do Brasil, em 1963. Há poucas entrevistas de Clarice, mesmo em jornais. Elas foram compiladas no Brasil em 2011, num livro da Azougue Editorial organizado por Evelyn Rocha, de onde são retiradas várias frases usadas neste texto. E que inclui uma entrevista de 1941 recém-descoberta, em que se refere a Machado de Assis: "seria mais fácil superá-lo do que igualá-lo." Como Clarice, né?


Sai-se por onde se entra, regressando à sala das citações-borboleta. Uma delas é famosa e muitas vezes adulterada, num equívoco em que dois pontos invertem totalmente o sentido. A citação é aliás glosada na versão verdadeira como na contrária. "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não quero uma verdade inventada". É isso que Clarice escreve? Ou antes "Eu não: quero uma verdade inventada"? O equívoco é divertido até pela uso heterodoxo que Clarice faz da pontuação ("Uma Aprendizagem…", por exemplo, começa com uma vírgula e termina com dois pontos, pressupondo continuidade). Então, caro leitor, se quer saber qual é a frase correcta, leia "Um Sopro de Vida" ou leia-a na exposição, está logo à esquerda de quem entra. Ou então, aceite que Clarice "escreveu para si", mergulhe no seu núcleo e pergunte-se qual a frase em que se revê, se se revê: quer uma verdade inventada? Não quer uma verdade inventada? O que está disposto a sofrer por uma alegria? Saia porventura assim. Passe de novo pela declaração de amor. E lembre-se que daqui a um ano ninguém se lembra de Miguel Relvas, caso do dia. Já Clarice, olhos eternos.


Qual é mais preciosa, a pérola ou a concha que a protegeu? A exposição na Gulbenkian é como a concha, abrimo-la, observamos o seu interior e descartamo-la trazendo a pérola que é Clarice connosco. Foi para isso que houve a concha. E foi exactamente assim que a concha se cumpriu.

 

"Clarice: Nelson, qual é a coisa mais importante do mundo?
Nelson: É o amor.
Clarice: Qual a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?
Nelson: É a solidão.
Clarice: O que é o amor, Nelson?
Nelson: Eu sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da vida e além da morte. Digo isso e sinto que se insinua nas minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas." 

 

 

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