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Carla Filipe: Tento sempre criar rupturas para não me acomodar

Até 5 de Novembro, a artista Carla Filipe tem em Serralves parte de uma selecção de peças da Bienal de São Paulo. Trata-se de uma instalação com plantas alimentícias não-convencionais, que convocam perguntas sobre o que é nativo e não é, e o que escolhemos utilizar da paisagem.

Paulo Duarte
06 de Outubro de 2017 às 14:00
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Nasceu e cresceu junto a uma linha de comboio, a ver passar as viagens. A viagem é o sonho, a descoberta e, é claro, pode acontecer sem sairmos do lugar. Carla Filipe trabalha numa rua do Porto, daquelas por onde até há pouco tempo, nenhum viajante passava. O seu atelier está desarrumado, sem ordem aparente, mas é um lugar de disciplina. O lugar onde assume compromissos às vezes com nada nem ninguém a não ser ela própria. Tem trabalhado com arquivos e a ideia de documentar passados, de certa forma reunir objectos mortos. Mas também trabalha com objectos vivos, plantas que crescem e precisam das mãos. Aparentemente, são rupturas, mas também as plantas nos questionam sobre aquilo que conservamos ou queremos conservar. Até 5 de Novembro, tem em Serralves, parte de uma selecção de peças da Bienal de São Paulo, uma instalação com plantas alimentícias não-convencionais, que convocam perguntas sobre o que é nativo e não é, e o que escolhemos utilizar da paisagem. 


Quando o curador da Bienal de São Paulo me pediu para fazer algo com hortas, eu preferi optar por projectos que tinha pendentes. Um deles era sobre produtos que pertencem à paisagem e não sabemos que são comestíveis. Fui depois buscar o termo brasileiro PANC: plantas alimentícias não-convencionais. Aqui usa-se mais o termo "plantas silvestres", mas eu gosto mais de plantas alimentícias não-convencionais, porque inclui tudo: aquilo que não é da região. Tem a ver com a migração. A peça chama-se precisamente "Migração, Exclusão e Resistência". Prefiro o termo PANC, porque não é elitista: não se trata de escolher o que é nativo, antes englobar tudo.

A horta está presente no meu crescimento. Eu ia para a horta ao fim-de-semana. A minha mãe foi guarda de passagem de nível e o posto de trabalho era ao lado de casa. Aí, tínhamos tudo: animais, hortas, e as tarefas do dia-a-dia misturavam-se com o horário laboral.

Quando, mais tarde, resolvi fotografar bairros da CP, especialmente no Entroncamento, onde há um bairro da CP desenhado pelo Cottinelli Telmo, reparei que embora o bairro estivesse abandonado, os terrenos estavam ocupados. As pessoas iam lá fazer as suas hortas.


Em pequena odiava a horta. Tinha que trabalhar nela. Mas depois chega a um ponto em que uma pessoa tem saudades de mexer na terra. 


Sempre achei que era mais interessante produzir hortas do que mostrar registos fotográficos das hortas. Achei que não chegava fotografar.

Talvez seja uma catarse para mim. Porque em pequena odiava a horta. Tinha que trabalhar nela. Mas depois chega a um ponto em que uma pessoa tem saudades de mexer na terra.

Quando trabalho com hortas quero sempre acompanhar tudo durante as instalações. Dizem-me: Carla, podes ficar sentada. Mas eu não quero. Quero mexer na terra, quero aprender. E é um trabalho bonito, porque é um trabalho colectivo.

Nasci numa aldeia - um lugar - do distrito de Aveiro, numa casa na CP. Depois, aos três meses, fui para uma passagem de nível em Vila Nova da Barquinha.

Não é nada estranho viver em frente de uma linha de comboio. Fica-se com vontade de viajar. Sonha-se. Sonha-se muito. Sabemos que aquele comboio vem de Espanha ou vemos passar o comboio especial, da noite: tudo alimenta a imaginação da viagem.

Até há pouco tempo tinha um desconto na CP, uma regalia de ser filha de ferroviários, e viajava muito. Quando fiz a exposição no Museu Berardo [em 2014, centrada numa investigação sobre os caminhos de ferro] grande parte da pesquisa foi suportada por mim, porque pagava muito pouco para viajar de comboio. Então, fotografava tudo. Se me apetecia fazer uma viagem até Espanha para fotografar, fazia.

Gosto muito de viajar. Mesmo no Porto. Viajar pela cidade.

Quando acabei o curso [nas Belas Artes do Porto] juntei-me a algumas pessoas e ocupámos uma cave de um café na Miguel Bombarda: o Salão Olímpico. E começámos a expôr e a programar. Nessa altura, entre 2001 e 2006, apareceram muitos espaços no Porto de pessoas da minha geração ou mais novas. Era tudo muito espontâneo e expunhamos muito nos espaços uns dos outros. Foi uma época boa no Porto. Uma época boa para aprender.

A minha primeira exposição a solo foi no Salão Olímpico em 2004.

Fiz uma exposição só com plantas. Era um sítio escuro e eu criei luz artificial, com espelhos, e ia tomar conta das plantas todos os dias. Registava num mapa a alteração das plantas: havia umas que morriam. Tratava-se também de assumir um compromisso. Na altura tinha ficado desempregada e estava a precisar de ter um compromisso com algo: ir a um sítio todos os dias. Então, ia todos os dias regar as plantas, limpá-las, e fazer o registo no mapa.

A exposição falava de resistência: resistência de uma planta num espaço e resistência de um artista, que está a começar, que tem que arranjar trabalho, que tem que aprender o seu percurso artístico. A exposição durou um mês e eu faltei três vezes ao compromisso.

Tive uma fase em que trabalhei muito sobre a memória. Tem a ver com a história e o passado, mas acho que se trata sobretudo de tentar compreender coisas que não se compreenderam na altura. Não é uma memória nostálgica. Acho que não é tanto compreender de onde vimos, mas compreender aquilo que somos agora. É sempre uma tentativa de compreender o presente.


Basta dez anos para as pessoas perderem memória. A pessoa que está a nascer agora quando for adulta já não vai ter memória disto, se não quiser saber.


Quando comecei a fazer pesquisa sobre a CP, comecei a ver bairros abandonados, a encontrar um desprezo pelo espólio, e a encontrar lacunas nos museus. Quis trabalhar com elementos que normalmente não são contemplados. Por exemplo, no museu da CP não havia qualquer narrativa em relação às guardas das passagens de nível ou das suas hortas. Normalmente, o foco é sempre o objecto: o comboio. Mas eu queria perceber as dinâmicas socias e queria preencher esses vazios com algum conhecimento, embora criado à minha maneira. Há sempre qualquer coisa que eu preencho e se alguém um dia quiser procurar, está ali.

Basta dez anos para as pessoas perderem memória. A pessoa que está a nascer agora quando for adulta já não vai ter memória disto, se não quiser saber.

A memória mexe muito com as pessoas, porque a memória também é feita de sentimentos.

A exposição no Berardo era, no fundo, a construção de um museu: reunir arquivo, colecções privadas. Ainda hoje, de vez em quando, aparece-me um email de alguém que quer fazer uma homenagem ao avô que foi ferroviário e que tem objectos que gostaria de partilhar.

Já pensei fazer um museu das homenagens. As pessoas não querem partir sem essa homenagem.

Se uma pessoa quiser trabalhar o arquivo, trabalha até à morte. Porque aquilo não acaba. O que também não é bom. Agora deixei um bocado o arquivo de lado, por um lado porque se corre o risco de esquecer do presente, por outro para não ficar acomodada.

Tento sempre criar rupturas para não me acomodar. Cada projecto é quase um novo lugar. Ou seja, só dificulto a minha vida, ao tentar encontrar sempre uma forma diferente para continuar a trabalhar.


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