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Bernardo Pires de Lima: Acredito em mais União Europeia para alguns. O caminho é “à la carte”

Cresceu no meio de livros e jornais e, apesar da ter políticos na família, nunca teve o objectivo de exercer política, apenas de a observar criticamente. Mas, afastado o sonho de jogar no Sporting, o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais não afasta a possibilidade de fazer política, porque, como diz, não tem ideia do que o futuro lhe reserva. Aos 38 anos, o seu objectivo passa, para já, por concluir um livro, no início de 2018, no qual analisará o presente para melhor construir o futuro da UE. Bernardo Pires de Lima espera que um "renovado" eixo franco-alemão possa funcionar como motor de uma Europa mais unida.

Miguel Baltazar
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Está a meio do périplo pelas capitais europeias. Sem descortinar o conteúdo do livro, é já possível fazer um balanço das grandes divisões sobre o futuro da União Europeia?

Não lhe chamaria divisões.

 

Prioridades?

Cada Estado-membro vive muitíssimo centrado nos seus assuntos. Achamos que em Portugal só se discute a política interna, mas isso é comum a todos os países. A dimensão comunitária, pelo caudal legislativo, tem uma intromissão nos assuntos internos. Toda a política interna é europeia e toda a política europeia é interna. É o corolário de um sistema mais ou menos federal. A nossa política estadual é altamente influenciada pelas decisões comunitárias. 80% da nossa legislação nacional vem de Bruxelas. Há uma grande relevância das condicionantes internas. Cada país olha para os problemas comuns de forma diferente. A ameaça russa é vista de maneira diferente no Norte e no Sul, a Este e a Oeste. O Brexit é visto como ameaça ou oportunidade de acordo com o grau de dependência económica e laços políticos que existam.

 

E o euro?

A sensibilidade em relação à moeda única e ao espartilho que cria em termos orçamentais e de dinâmica económica também difere de país para país. Noto alguma revolta, sobretudo nos países do Mediterrâneo, contra as regras da Zona Euro. A transformação da arquitectura do euro é prioritária e por isso é que foi importante que o Presidente [Emmanuel] Macron tenha vencido as eleições francesas.

 

A formação de blocos regionais pode promover essas mudanças? Ou ser um factor de desagregação?

Os blocos regionais e a regionalização da política europeia são um facto. Visegrado, Balcãs, eixo franco-alemão, Bálticos, Sul da Europa. Vemos cimeiras constantes, o que a meu ver, se tudo isto for mal gerido, pode representar um factor de desagregação ainda maior na UE. É preciso muito cuidado com estas regionalizações. No caso do Sul da Europa, e porque França está nessas cimeiras, têm sido levantadas várias questões. As cimeiras já têm uma dinâmica, vamos para a terceira. E não têm saído comunicados ou declarações conjuntas contra o Norte, contra a Alemanha ou os países credores. Tem havido uma narrativa de construção de pontes. É evidente que França tem um papel equilibrador. Vamos ver, com a concretização mais aprofundada de um novo ou renovado eixo franco-alemão, se França tem as mesmas condições e vontade para estar nesta plataforma a sul.


 

A Comissão Europeia apresentou cinco cenários para o futuro da União, mas não se vinculou com nenhuma opção. Devia tê-lo feito?

Não se pode vincular porque precisa de perceber como é que os ciclos eleitorais são encerrados. Por isso é que faço este livro este ano. Porque 2017 é particularmente importante, talvez o ano mais decisivo da Europa depois de 1989.

 

Tendo em conta esses cenários, acredita em mais ou menos União para alguns, ou mais ou menos União para todos?

Mais União para alguns. O caminho é "à la carte". Aliás, é um caminho que já está a ser feito.

 

Refere-se à Zona Euro?

À Zona Euro, a Schengen.

 

É a consagração de uma Europa a várias velocidades?

Isso já existe. Quando se faz uma leitura política do mapa da UE, percebe-se que a moeda única está centrada numa determinada zona, liderada pelo eixo franco-alemão. A centralidade da Zona Euro vai ser um factor. Para saber se é reformulada nos termos de Macron, teremos de esperar pelas eleições alemãs e ver como é que a Alemanha se posiciona.

 

Macron tem insistido na necessidade de a Alemanha aceitar corrigir as disfuncionalidades do euro. Berlim vai aceitar, por exemplo, os eurobonds, mesmo que para a dívida futura?

A senhora [Angela] Merkel disse há algumas semanas, no Bundestag, que é possível mutualizar o que é bom, mas que Berlim não irá aceitar mutualizações de questões negativas para os contribuintes alemães.

 

Como é que Portugal deve posicionar-se nesse debate?

Precisa de ler bem o que são e para onde vão as reformas do eixo franco-alemão. Portugal tem sido partidário da união bancária, da mutualização da dívida, dos eurobonds, tem acompanhado esta agenda reformista. Saber se os custos políticos dessa agenda são mais draconianos ou mais flexíveis é o que tem de ser avaliado. De acordo com a tradição da política europeia portuguesa, nós vamos estar no pelotão da frente. Mas, se eu fosse político, não me atravessaria com nenhuma posição sem conhecer os termos das reformas finais.

 

A Alemanha já parece admitir um orçamento comum na Zona Euro.

Angela Merkel. Se a grande coligação se mantiver, o rumo de aproximação às políticas de Macron será mais fácil.

 

A Zona Euro vai ser o motor do sonho federalista dos fundadores?

Quando se passa para uma moeda única, estamos num estado federativo quase puro. Mas é preciso corrigir muita coisa, porque a moeda foi mal desenhada e os Estados não se prepararam. É isso que a presidência Macron quer fazer. Vamos ver se há essa flexibilidade da parte alemã. É evidente que, quando se abdica da moeda, estamos num estado de total simbiose federativa. É a génese da moeda única. A maior parte dos Estados da UE está na Zona Euro e, portanto, é natural que a força dos Estados no seu conjunto também reflicta uma centralidade desse bloco. E no cenário do Brexit é natural que o eixo franco-alemão seja o motor de uma zona e da política comunitária. Depois vai ser pedido aos Estados que acompanhem as reformas que venham a existir. O que tem custos políticos, financeiros e orçamentais.

 

Essa reforma da Zona Euro vai requerer contenção orçamental adicional?

Se houver mais contenção orçamental, mais implacabilidade no cumprimento das regras, os Estados têm de tomar opções. Não podem é dizer que sim, "estamos conscientes disso, vamos assinar essas reformas" e depois, à mínima dificuldade, virem dizer que precisam de mais tempo para as cumprirem.

 

Há alguma consciência de que o discurso político tem de regressar. Os ministros das Finanças não podem ser os ministros principais dos Estados. 

 

O que já foi feito por França, Itália e Alemanha. É preciso impedir que se repitam essas situações?

É preciso encontrar uma arquitectura que preveja momentos de excepção. Isso não foi encontrado. É preciso que haja preparação orçamental comum para colmatar um momento como o da Grécia, sejam quais forem as razões. A Alemanha também já ultrapassou os 3% do défice e nem é o país mais ortodoxo. A Holanda é super-ortodoxa.

 

A Finlândia já foi mais.

Os países, quando enfrentam dificuldades, também percebem os outros lados.

 

Muitas vezes, partidos e políticos são penalizados ao nível interno devido à incapacidade, própria e da UE, de transmitir os méritos e os benefícios da integração europeia. Porque é que isso acontece?

Porque os discursos dos méritos da UE nunca foram trabalhados. Foram esquecidos, despolitizados e alvo de excessiva financeirização. Mais três, menos três. Os líderes políticos não são líderes de bancos, mas de nações e instituições. São líderes políticos e têm de perceber o que é político e têm de ter um discurso coincidente. Felizmente, há alguma consciência de que o discurso político tem de regressar. Os ministros das Finanças não podem ser os ministros principais dos Estados e mandar mais do que os primeiros-ministros. Os protagonistas têm de perceber que precisam passar mensagens entendíveis.

 

Defende a retirada de poder ao Eurogrupo?

O Eurogrupo seria outra entrevista. É o efeito do actual debate. É a oficialização de um órgão que não é uma instituição europeia. Que está vagamente definido e enquadrado no Tratado de Lisboa e que tem uma preponderância brutal na política europeia. Com a agravante de ter como líder alguém que acumula com a pasta das Finanças nacionais.

 

Portugal não deve promover Mário Centeno para esse cargo?

O que Portugal devia dizer é que quer alguém para "chairman" do Eurogrupo que esteja a tempo inteiro e que não tenha uma pasta acumulada. Tem de haver uma revisão cirúrgica do Tratado para enquadrar de outra forma o Eurogrupo. Não podemos ceder ao "nós queremos lá o Centeno".

 

É preciso institucionalizar o Eurogrupo?

O Eurogrupo auto-institucionalizou­-se. Opera numa órbita de excesso de poder sem enquadramento.

 

Depois dos resultados eleitorais na Holanda e em França, a ameaça nacional-populista foi mesmo afastada?

Até agora, as coisas têm corrido bem. Ao contrário do que muita gente dizia, e recorrendo a uma expressão do antigo primeiro­-ministro, de que vinha aí o diabo, no caso europeu esse alarmismo foi muito positivo. Devo dizer que, à minha escala, contribuí muitíssimo para esse alarmismo. Alarmismo nacionalista, proteccionista. O que foi importante para mobilizar o antinacionalismo. Só isso explica que na Holanda 80% das pessoas tenham ido votar e que, em França, a segunda volta tenha tido o resultado que teve.

 

Continua a faltar mobilizar a geração dos dados adquiridos?

Quando estes dados adquiridos são postos em causa e há um projecto para os matar, esse é um combate de uma geração. Sou da geração Erasmus. É uma geração não mobilizada por uma luta geracional. Por isso, o alarmismo, se bem trabalhado politicamente, pode ser um extra de motivação, o comprometimento político com uma luta geracional. Uma luta contra o populismo nacionalista é uma luta pela nossa existência, pelo nosso bem-estar. Temos de estar nessa primeira linha, nós que acreditamos nisto e somos filhos disto.

 

Para já, apenas se ganhou tempo?

Tudo vai depender do curto prazo, três anos. Será muito importante a performance política e económica, sobretudo da Zona Euro, que será o bloco central da UE. É a partir da dinâmica do aproximar ou esbater das desigualdades económicas entre economias como a grega, a francesa, a alemã ou holandesa, que se vai perceber se se combate o desemprego, se se baixam os níveis de intensidade anti-Bruxelas, se os próprios conceitos e acusações extravasam os limites do aceitável do tipo "nós pagamos e vocês gastam". Muitos países contribuíram para esse debate, muitos estão arrependidos, estou convencido de que a senhora Merkel está arrependida de uma série de terminologia que usou ao princípio. Para já, esses níveis de intensidade acalmaram.

 

O que é que podia ter sido feito de forma diferente?

Acho que os EUA, e é a crítica que faço à administração Obama, deviam ter estado no centro da crise da Zona Euro. Não estiveram nem quiseram estar.

 

O Eurogrupo auto-institucionalizou-se. Opera numa órbita de excesso de poder sem enquadramento. Não podemos ceder ao 'nós queremos lá o Centeno'.

 

Estiveram no final do último mandato presidencial, com Obama a corroborar as propostas de Renzi.

E não só. O secretário do Tesouro, Jack Lew, fez inúmeras declarações de solidariedade com o ângulo grego, com a forma como os gregos queriam mais tempo, mais flexibilidade. Era a única forma de lidar com a posição mais dura da Alemanha, da Holanda, da Finlândia. Agora há uma crítica aos excedentes alemães, e a cimeira entre Macron e [Donald] Trump também é por causa disso. A pressão vinda de Washington valerá o que vale, mas permite a Macron dizer "eu não estou sozinho nessa crítica, nem me apoio em pequenos países europeus, tenho aqui os EUA".

 

Macron quer usar Trump para equilibrar a relação entre Paris e Berlim?

É um jogo político porque França quer estabelecer um eixo construtivo com a Alemanha, mas quer também equilibrar esse eixo, sobretudo diminuindo a força comercial alemã, que no caso da Zona Euro se reflecte na política germânica. Este jogo de amores e paixões políticas é um jogo de fachada.

 

Neste momento de estabilização, é necessária alguma contenção nas críticas ou não?

É possível fazer muitas críticas à UE, à gestão da Comissão Europeia, ao perfil dos políticos, às declarações que se fazem de tensão e de acusações mútuas, sem passar o limite do caos, da implosão das instituições, das saídas. Esse foi o limite ultrapassado com o referendo do Brexit.

 

O que é que representa a saída britânica da União?

Havia um equilibrador dos países não­-euro que era o Reino Unido e agora vai deixar de haver. O Reino Unido deu um tiro no pé e vai deixar de ter participação no processo de decisão europeu. Tentará encontrar alianças com os países escandinavos, os Estados Unidos, a Índia. Aquelas ficções britânicas, ou mais particularmente inglesas, de que há uma alternativa à altura. Não há. Além disso, Londres perde influência política numa geografia que lhes diz directamente respeito.

 

A negociação do Brexit está numa espécie de impasse. Muitos países apostam em negociações bilaterais. Não devia ser Bruxelas a coordenar?

Todos os países estão a fazê-lo bilateralmente, e Portugal à cabeça. Antes do referendo, Portugal já tinha feito contactos através da embaixada e da secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. Varsóvia está a tentar posicionar-se como depositária da deslocação de empresas e serviços financeiros. Os países estão a tentar encontrar equilibradores regionais ao centralismo político europeu, comunitário, a antecipar aquilo que pode ser a continentalização da política europeia depois do Brexit, com especial incidência no eixo franco-alemão. E Portugal tem de fazer o mesmo porque há mais além daqueles eixos tradicionais como o Brasil e Angola, que são muito mais empolados do que na realidade valem. O nosso comércio externo com o Brasil vale 1%. Não há relação especial nenhuma com o Brasil, é um mito.

 

A UE alcançou um acordo unânime que é um primeiro passo para a Defesa comum europeia. A inexistência de um exército europeu é crítica para a afirmação da UE enquanto actor verdadeiramente global?

Isso é uma falsa questão. A Defesa comum já existe. Há quatro ou cinco vezes mais missões da UE do que missões da NATO. A Defesa europeia foi descapitalizada politicamente em função da ascensão do debate financeiro. Do debate institucional, à volta do Tratado de Lisboa e da fase dos referendos à Constituição.

 

E regressou à agenda porquê?

Porque a geopolítica retomou o seu centralismo na política internacional. E, como há ameaças que são ameaças de diferentes níveis, terrorista, ameaça russa, a monitorização dos mares e dos oceanos, e porque se percebe que só há força política com força militar credível. Não é preciso ter um exército como o da Coreia do Norte, é preciso é ter apetrechamento militar e que, quando se sentam à mesa, os países sejam identificados com força militar. Isso credibiliza. Falta conotar a UE com esse aspecto. Principalmente desde Maastricht, quando a UE optou por pilares de aprofundamento da integração muito assentes no plano económico-financeiro e institucional. É difícil que qualquer maior autonomia ou mais independência militar ou securitária da UE seja vista com credibilidade. Quando as guerras balcânicas eclodiram, percebemos que sem os EUA não há segurança europeia. E essa é uma premissa válida ainda hoje.

 

Depois dos sinais dados por Trump, Merkel disse que a Europa já não pode dar-se ao luxo de depender dos EUA.

A Europa está a fazer esse debate da capacitação militar. O investimento no sector de Defesa. É um debate que reconhece que a política internacional não é uma política de frases bonitas, de poder normativo, de diplomacia, de bons princípios. É uma política suja, em que a China, a Rússia, a Índia, os EUA ou a Nigéria fazem política clássica de defesa crua dos seus interesses. Com mentira, com intromissão cibernética. No momento em que o maior contribuinte da segurança europeia está de saída, é preciso credibilizar os políticos europeus, a diplomacia e a política externa dos vários Estados e da Europa no seu conjunto.

 

Trump sinalizou, na Polónia, o compromisso americano com a cláusula de salvaguarda mútua da NATO. Esta mudança diminui a necessidade de a Europa avançar com o reforço da sua capacidade militar?

Não, porque não há nenhum debate que faça o raciocínio de mais UE na Segurança e na Defesa e menos NATO. São complementares. O diálogo institucional entre as duas instituições é desejável, como são desejáveis missões complementares, como teria sido bom que tivesse havido boas missões coordenadas da UE e da NATO no caso líbio. Precisamos de credibilizar a UE e, aqui, é evidente que o Brexit tem um contributo destrutivo. Macron tem uma proposta interessante, apostando na indústria de Defesa, aeronáutica, investigação tecnológica.

 

Foi também isso que foi aprovado no acordo.

Isso é muito importante.

 

O acordo passará também pela uniformização da indústria militar? A Rússia tem dois modelos de tanques de guerra, na UE existem mais de 20.

Isso é muito interessante se o fornecedor dos vários exércitos for o mesmo. Mas cada país tem diversos fornecedores para várias coisas. O mercado da Defesa é isso, um mercado de concorrência que vale biliões de dólares. França e Alemanha estão no "top" 5.

 

É possível conciliar as duas coisas?

Não sei. É um caminho desejável desde que não seja antagónico da NATO. Nenhum país do Báltico, do Leste ou da Escandinávia está na disposição de entrar num barco exclusivo da UE contra a NATO. Esse é um debate a que não se deve regressar. A centralidade do eixo franco­-alemão na Zona Euro e na Defesa e Segurança é positivo porque também transforma o debate interno alemão e normaliza a Alemanha. É preciso normalizar a Alemanha no papel de estabilizador, mas isso vai demorar muito tempo. Há uma desigualdade entre França e a Alemanha, e Macron sabe isso. Portanto, quanto mais batalhar na questão da Defesa nas cimeiras bilaterais com Merkel, mais ascendente tem. Até porque sabe que, neste momento, com o Brexit, é ele quem lidera a defesa europeia. Nesta triangulação com Trump e Merkel, Macron faz um jogo muitíssimo interessante e em que sai beneficiado.


 

Escreveu no DN que não deve falar-se em administração, mas em regime Trump. Perante tantos factos contraditórios, quais são os objectivos reais desse regime?

Como analista, devo dizer que estou fascinado com esta administração. Porque todos os dias uma coisa e o seu contrário são possíveis. Do ponto de vista da interpretação, é único. Claro que estou altamente preocupado. O amadorismo revelado pela Casa Branca em tantas matérias não era comum. A delapidação da palavra. A liturgia política nos EUA é uma coisa sagrada, a qualidade, discursiva. Hoje estamos a um nível de jardim-escola. Mas acredito que é algo mais conjuntural do que estrutural. Muitos líderes internacionais podem estar a ler a situação nessa perspectiva: "Temos de lidar com o Presidente dos EUA, seja ele quem for." Os ciclos eleitorais são conhecidos e ninguém nos diz que esta seja uma administração de longa duração, que a dimensão ideológica desta realidade norte-americana seja uma coisa para as próximas décadas. Já perceberam que o multilateralismo, os grandes fóruns internacionais, são altamente desvalorizados pela administração, é a política bilateral que interessa.

 

Ainda agora Trump criticava na Polónia a burocracia da UE.

Disse que era uma ameaça às nações.

 

Um recado claro para Bruxelas. Por outro lado, elogiava o nacionalismo agressivo polaco. Já tinha elogiado o Brexit. Trump tem como objectivo desfazer a UE?

Não há um objectivo estratégico de desfazer. Ele opõe-se à coesão.

 

É só retórica?

Nas suas primeiras declarações em relação ao Brexit, disse que era uma coisa extraordinária. Trump não é um agregador dos países da UE, e a senhora Merkel percebeu isso. Aposta em dividir para reinar. Numa lógica de negociante. Todo o círculo próximo dele é um círculo doutrinado nessa lógica. Foi para isso que ele foi eleito. O grosso do eleitorado do senhor Trump está a borrifar-se para o G 20, para a NATO, para as Nações Unidas, para qualquer fórum multilateral.

 

O nosso comércio externo com o Brasil vale 1%. Não há relação especial com o Brasil, é um mito. 

 

Olhando para as notícias, é crescente a convicção generalizada de que houve conluio entre a campanha de Trump e a Rússia para prejudicar Hillary Clinton. Não são argumentos que podem determinar uma destituição?

Sensações não são factos jurídicos. E os "impeachments", só através de factos jurídicos comprovados, e aprovados pelas duas câmaras do Congresso. E estas duas câmaras não dão sinais de desagregação no apoio ao Presidente.

 

Há senadores que se opõem às políticas de Trump, como se vê em relação à pretendida lei para repelir e substituir o Obamacare.

Mas a destituição exige uma maioria de dois terços no Senado. Há eleições para o ano e um terço do Senado vai a eleições. A maioria pode eventualmente mudar, mas acho que na Câmara dos Representantes não vai mudar. A não ser que a situação, que agora é grave, que as provas, os factos e as investigações concluam, no espaço de dois a três anos, que os factos foram de traição, de mentira em comissão de inquérito, de perjúrio. A História americana teve dois processos de "impeachment", só que não passaram. Estamos num momento excepcional de bizarria política, mas não uma bizarria ideológica ou sociológica. São 60 e tal milhões de eleitores.

 

Essa bizarria não terá efeitos concretos no curto, médio prazo?

O alarmismo e os custos políticos, económicos, orçamentais, de derrapagem, desta administração podem levar a que haja uma grande mobilização para o campo democrata. Acredito mais nisso do que no processo temporal do "impeachment".

 

O Partido Democrata está em condições de fazer essa mobilização? Com quem, Bernie Sanders?

É um político interessante, mas não é um político para o futuro. E o que ficou de lição das primárias foi que os democratas querem sangue novo. E isso precisa de ser trabalhado com tempo. Obama foi preparado durante quatro anos, desde a intervenção de Boston em 2004. Devo dizer que acho Obama muito novo para estar fora da política.

 

Acredita no seu regresso?

Não excluo. É desejável? Altamente desejável. Mas também não há uma grande tradição histórica desses regressos.

 

Olhando agora para o Médio Oriente, a expulsão do Daesh de Mossul pode significar que estamos perante o fim da organização?

Não se destrói o Daesh em termos dos seus corpos militares ou das cidades que ocupam. O Daesh é uma marca ideológica fortíssima que motiva gente atrás de um computador em qualquer parte do mundo.

Um combate não territorial pode agravar a ameaça?

Sim, pode motivar a necessidade de eles dizerem presente. De fazerem ver que não estão aniquilados. Para não perderem o apelo, para continuarem numa dinâmica destrutiva do nosso dia-a-dia. Por cada ataque em Nice, há centenas no Médio Oriente, não podemos fazer a comparação directa, mas do ponto de vista mediático vale muito mais um ataque em Nice do que 100 no Iraque.

 

A Casa Branca está ao nível de jardim-escola. Acho Obama muito novo para estar fora da política. [O seu regresso] é altamente desejável. 

 

A par da luta contra o terrorismo, assiste­-se, no Médio Oriente, a uma decomposição das alianças, com movimentos da Arábia Saudita, do Irão, da Turquia. A perspectiva é de agravamento ou desanuviamento na região?

O cenário é mais de agravamento. Como se prova pela agressividade com que a Arábia Saudita se está a comportar no Golfo. Qualquer pequena monarquia que não seja crítica, ou em último grau que seja de alguma proximidade de interesses do Irão.

 

Fala do Qatar?

Sim. Amigos do Irão, mesmo que sunitas, são inimigos da Arábia Saudita.

 

Apesar de o sunismo-xiismo ser a grande divisão, não é o único eixo que conta.

Os eixos são muito mutáveis. E os eixos de divisão e de conflito são múltiplos. Não são só religiosos, nem só energéticos, são de comunidades, são tribais. De circunstâncias que mudam e que é preciso aproveitar. Há equilibradores externos mais ou menos estáveis e os EUA são, neste momento, um desequilibrador. Alguém terá de ocupar essa posição de equilibrador externo. A UE tem feito algumas tentativas, a China deverá ser obrigada a ser mais interveniente politicamente, porque é o grande importador de energia da região. Os EUA são auto-suficientes energeticamente. A China e a Índia são os grandes importadores de energia, e isso é uma grande vulnerabilidade estratégica. Já no caso da Síria, não vale a pena ter a ilusão de que um cessar-fogo acordado entre os EUA e a Rússia resolve. Já houve vários, sempre circunscritos. Embora seja melhor que existam do que não existam, soluções de estabilidade de médio e longo prazo têm de passar por outros intervenientes muito mais importantes.

 

A Síria tem de ser regionalizada?

Talvez seja bom pensarmos que a Síria não tem solução. Pode é ter uma gestão. A Síria não existe. Há várias Sírias. Pode haver um modelo bósnio para a Síria. Uma federação étnica. Mas é preciso concertar uma solução com a Turquia, a Arábia Saudita e o Irão, o que é muito difícil. 


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