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Augusto Abelaira o Elogio da Integridade

"Ainda não há muitos anos, a cultura possuía um poder marcado pela integridade e pelas recusas morais dos autores. Confundiu-se tudo agora…".

07 de Dezembro de 2012 às 12:12
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"Ainda não há muitos anos, a cultura possuía um poder marcado pela integridade e pelas recusas morais dos autores. Confundiu-se tudo agora…". Ele dizia isto sem acrimónia mas, também, sem indulgência para com os tempos. Encontrávamo-nos, ocasionalmente, numa pequena pastelaria, a Guadalupe, à Estrada da Luz; ele mantinha o hábito de escrever nos cafés, como o fizera, décadas a fio. Era um homem cansado pela doença e, talvez, por uma dissimulada solidão. Não perdera, porém, o sorriso discreto, o olhar vivíssimo, a elegância no trato. Éramos amigos desde 1955, fôramos apresentados pelo Jacinto Baptista, grande jornalista e probo historiador da República, eu escrevera, n'"O Século Ilustrado", um balanço do ano cinematográfico, "54 Semanas de Cinema", tinha 20 anos, andava cheio de mim porque o texto fora muito elogiado, e transcrito nos boletins dos cineclubes.

Lembro-me muito bem dessa época e dos seus mais importantes protagonistas. O que havia de melhor entre nós reunia-se nos cafés, em tertúlias hoje lendárias. Café Chiado, Martinho do Rossio, Portugal, Chave d'Oiro; depois, Café Bocage, Monte Carlo, Tony dos Bifes, ei-los. E os mesários desses convívios eram Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Lopes-Graça, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, o poeta, claro!; Manuel da Fonseca, Nikias Skapinakis, João José Cochofel, por vezes o matemático Gustavo de Castro, inúmeros mais. O homem que sou devo-o à construção firme e fraterna desses, os inigualáveis.

O Abelaira era frequente em todos os grupos. Invulgarmente culto, nunca impôs os formidáveis conhecimentos que possuía, desde a literatura à física, da pintura à música, da filosofia ao cinema e ao teatro. Era, além disso, um melómano distintíssimo, de apurado ouvido, fino gosto e extraordinário sentido crítico. Ouvi-lo era um prazer sem igual, tanto mais que ele não fazia alarde da sua imensa cultura, pelo contrário: ocultava-se numa modéstia impressionante.

Os seus romances, as suas peças de teatro eram manifestações de criatividade, de brilhantismo e de inteligência. Um livro do Abelaira, ao ser publicado, recebia o entusiasmo da crítica e do leitor. E estão aí, nas estantes mais selectas, para nos fornecer um retrato da sociedade portuguesa e, sobretudo, dos meios académicos e culturais.
Há tempos, um pobre sujeito, escreveu umas escorrências sobre a reedição de "Bolor", sem perceber nada do texto nem do que queria dizer. Percebe-se: Abelaira escreveu sempre para adultos, com uma elegância e uma sabedoria muito direccionadas. Nunca quis ser um autor "popular"; quis, tão-somente, ser lido e entendido pelos melhores da sua época. E foi-o.

Quando o jornal "O Século" foi vendido ao banqueiro Jorge de Brito, e dirigido por Manuel Figueira, este convidou o Abelaira a escrever, diariamente, um comentário de vinte linhas, à maneira do que fazia Jacques Fauvet no "Le Monde." Foi um êxito. As "Entrelinhas" tornaram-se referência obrigatória. Foi essa presença como jornalista que lhe permitiu a magríssima reforma com que subsistiu até ao fim da vida (1926-2003), com dificuldades e uma frugalidade correspondentes à sua configuração moral.

Estivemos ambos envolvidos em conspirações contra o regime. Distribuímos panfletos, assinámos documentos a favor da liberdade; trabalhámos na revista "Almanaque", na qual, certo dia, teve um desaguisado com um tal Vasco "Pulido Valente", arriscando-se este a uma reprimenda mais coerciva do que as palavras. Corajoso e resoluto, convicto e de uma lealdade a toda a prova, Augusto Abelaira foi preso pela PIDE, por ter atribuído, como membro de júri, o Prémio de Novelística da então Sociedade Portuguesa de Escritores, a "Luuanda", de Luandino Vieira, na altura preso no campo de concentração do Tarrafal.

A obra ímpar e a vida exemplar deste português maior parecem estar esquecidas. Confunde-se tudo, como ele tristemente me disse. A mediocridade circundante promove a miuçalha, que assim se promove e protege. Chega a ser penoso ver-se o que os jornais admitem como genuíno aquilo que não passa de aldrabice. Ao assistir, com melancolia, à baixeza a que a sociedade chegou, faz-me bem recordar gente desta estirpe. E para vos dizer que nem sempre, mesmo nos períodos mais ominosos, as coisas e as pessoas chegaram a patamares tão abjectamente baixos.

 

b.bastos@netcabo.pt

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