Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque

António Costa Pinto: Nenhum país está imune a regimes autoritários

Em “O Regresso das Ditaduras?”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o politólogo António Costa Pinto faz uma viagem pelas diversas vagas de ditaduras entre os séculos XX e XXI, revelando as várias faces do autoritarismo contemporâneo. Para o professor e investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, a grande incerteza que vivemos é: até que ponto os partidos populistas vão introduzir uma dinâmica de erosão nos sistemas democráticos.
Filipa Lino e Vítor Mota - Fotografia 12 de Fevereiro de 2021 às 11:00

Depois de quase 50 anos de salazarismo, os portugueses ficaram imunizados contra as ditaduras?

Nenhum país está imunizado contra regimes autoritários, porque muitas vezes esses regimes não são um produto de grandes mobilizações da sociedade civil, mas sim de crises em que elites e instituições, por exemplo, fazem golpes de Estado, como estamos a ver agora em Myanmar, com o golpe militar. Podemos dizer que existem países, áreas do globo, culturas, que têm menos propensão para crises e regimes ditatoriais do que outras. Mas nenhum país está imune a regimes autoritários.

 

Olhando para a História, percebemos que o discurso antissistema é bem acolhido nas grandes crises económicas. A pandemia criou um contexto propício à subida ao poder de líderes autoritários?

A pandemia propriamente dita, não. Aliás, quando observamos as respostas dos regimes democráticos e autoritários à pandemia, reparamos que muitas democracias e muitas ditaduras tiveram, no fundamental, o mesmo tipo de resposta. As ditaduras, claro, controlando a informação. Mas com uma resposta baseada na evidência científica e na perceção do risco. O interessante é que foi nas democracias com líderes populistas que as atitudes foram diferentes. Veja-se o caso de Trump, nos Estados Unidos, que negou a importância da pandemia ou de Bolsonaro, no Brasil, que a subestimou e inventou medicamentos mais ou menos "milagrosos". Dito isto, evidentemente a crise económica e social, associada à pandemia, é um fator de crise de representação.

Em que sentido?

As ditaduras, perante crises económicas, têm inicialmente maior capacidade de resposta, porque têm um grande controlo sobre as elites económicas e sobre a população em geral. Podem errar, mas inicialmente têm uma maior capacidade de implementar respostas a dinâmicas de crise. Já as democracias têm mais dificuldade em implementar políticas de austeridade, porque sofrem crises de desafeição profunda da sociedade perante as elites.

 

A China teve uma capacidade de reação rápida, por ser uma ditadura?

Exato. Claro que as crises económicas também têm por vezes impacto em processos de mudança de regime. As chamadas revoluções do Norte de África foram uma resposta de segmentos sociais fortemente atingidos por crises económicas, como é o caso dos jovens, que lideraram a contestação social a esses regimes e provocaram o seu derrube. Isso aconteceu, por exemplo, com o regime de Ben Ali, na Tunísia. Mas temos de reconhecer que as ditaduras – veja-se os casos da Rússia, da China e de outros países – têm uma capacidade de resistência maior, na medida em que quase que eliminam a capacidade de resistência social.

Estamos a ver isso na Bielorrússia.

Bielorrússia e Myanmar são casos bastante interessantes de como algumas ditaduras foram abrindo espaços de pluralismo limitado. Passaram de regimes de partido único a regimes de partido dominante e permitiram uma maior liberdade de expressão e informação, apesar de tudo. São regimes que introduzem uma grande incerteza. Muitas vezes utilizam dinâmicas de repressão, porque reagem de forma diferente à desafeição da sociedade civil.

 

Na região das repúblicas que pertenceram à União Soviética, não existiu um verdadeiro "banho de democracia".

A maior parte destes regimes políticos transitaram de ditaduras socialistas, no espaço da antiga União Soviética, para regimes autoritários com uma grande continuidade de elites e com uma dinâmica de privatização económica, na maior parte dos casos associada à elite dominante. Passaram a ser, como a politóloga norte-americana Jennifer Gandhi lhes chamou, "regimes autoritários que se vestem como democracias". Têm eleições e pluralismo partidário, mas na prática são dominados por uma elite que associa poder económico ao controlo do aparelho de Estado e da elite política. O grande objetivo estratégico da Rússia é obviamente reconquistar o controlo político da antiga União Soviética, de forma indireta.

Hoje é mais difícil estabelecer a fronteira entre regimes democráticos e regimes autoritários.

Devemos olhar para o aumento de votos em partidos populistas na Europa como uma ameaça à democracia?

O crescimento dos partidos populistas está diretamente associado a uma crise de representação das democracias liberais e, muitas vezes, até das democracias liberais mais consolidadas e mais antigas. É uma vaga que caracteriza a Suécia, que caracterizou até há pouco tempo a Grã-Bretanha, com os partidos populistas eurocéticos, que envolve França, Itália, Bélgica, Holanda, Áustria… Ou seja, há de facto uma dinâmica de crise da democracia representativa, sobretudo manifestada por uma desafeição entre os partidos políticos que têm governado as democracias europeias e os setores sociais ideológicos da sociedade. Não é ainda o caso português, mas estes partidos populistas cresceram eleitoralmente com base justamente nessa crise de desafeição em relação à classe política tradicional, em relação a dinâmicas de clientelismo e de corrupção, em relação a muitos outros fatores de crise. A dúvida que temos é até que ponto estes partidos populistas vão introduzir uma dinâmica de erosão das instituições e da democracia liberal, porque as suas experiências de chegada ao poder são poucas. Que têm programas políticos que estão no limite e que muitas vezes são até antidemocráticos, não temos dúvidas. Até agora só temos duas experiências na União Europeia próximas dessa dinâmica: a Hungria e a Polónia. A Hungria representa o caso mais claro de um regime político que, passados 20 anos, não podemos classificar como democrático. É baseado numa oligarquia no poder, tem um partido dominante que perverteu alguma dinâmica interna da democracia liberal, limita a liberdade de expressão, expulsa e coarta a autonomia das universidades e das instituições de investigação. Isto leva muitos politólogos a falar em regimes "híbridos", em democracias iliberais.

Como é possível construir um projeto europeu com líderes autoritários como Orbán, na Hungria, que acabam sempre por criar entraves aos processos?

No caso da União Europeia, diria que é formalmente mais fácil, ainda que politicamente difícil. A União Europeia é formalmente uma união de regimes democráticos e tem instrumentos para condicionar ou bloquear a Hungria. É uma questão de ter capacidade política para tal. Isso exige reformas para dinâmicas maioritárias e não de unanimidade, que limitam muitas vezes a capacidade de atuação da União Europeia. Veja-se o que aconteceu em relação às medidas de apoio à crise económica [provocada pela pandemia]. O mesmo problema se tem colocado em relação à Polónia que, sendo um regime democrático, tem uma dinâmica iliberal, que pode levar a um caminho mais autoritário. Estes regimes não são regimes políticos ditatoriais clássicos. Mantêm algumas componentes democráticas, mas são fundamentalmente regimes autoritários. Hoje é mais difícil estabelecer a fronteira entre regimes democráticos e regimes autoritários.

A existência de uma comunidade internacional pró-democracia diminuiu muito significativamente.

A presidência de Trump legitimou o autoritarismo. Com Biden na Casa Branca, os líderes autoritários podem perder força?

O que observámos no início do século XXI e, sobretudo com Trump, é que os EUA deixaram de ser uma potência democratizadora. Ou seja, uma potência que defende e tenta condicionar a natureza dos regimes políticos do mundo. Por isso, a existência de uma comunidade internacional pró-democracia diminuiu muito significativamente. Com o regresso de Biden à política externa normal dos Estados Unidos, e com algumas alianças com a União Europeia, é provável que regresse à cena internacional alguma dimensão pró-democratizadora. Mas tanto os Estados Unidos como a Europa sempre coabitaram com a sobrevivência de regimes autoritários, muitos dos quais são aliados do bloco ocidental. É o caso das monarquias do Golfo, etc. Nunca existiu uma tentativa de abalo desses regimes ou mesmo de pressão democratizadora sobre esses regimes.

 

Diz no seu ensaio que as ditaduras dominam hoje mais de um terço do mundo. A tendência é para aumentarem?

A questão mais saliente não é tanto o número, mas a importância política e económica. O aumento de regimes ditatoriais em África, por hipótese, não tem o mesmo peso que a reconsolidação autoritária na China ou sobretudo que a reconsolidação autoritária na Rússia de Putin. Eu diria que o mais importante é termos hoje uma potência – a China – que tem no fundamental uma política externa que não promove o autoritarismo, porque depende muitíssimo do mercado económico global. A Rússia, que teve um processo de democratização falhado, é hoje um regime autoritário consolidado, que procura na sua área de influência a expansão de regimes autoritários e não propriamente de regimes democráticos. Portanto, mais importante do que o número é a importância estratégica deste regresso autoritário, também associado ao falhanço das dinâmicas de democratização no Médio Oriente, nas áreas da antiga Síria e mesmo do Norte de África.

Que fatores podem espoletar uma ditadura nos dias de hoje?

Quando olhamos para os novos processos de criação de regimes autoritários, a primeira incerteza está associada mais uma vez ao fenómeno populista. É aí que está a novidade. Os regimes autoritários da época contemporânea foram instaurados por segmentos das elites com o apoio, fundamentalmente, da instituição militar. Foi assim nas vagas de golpes de Estado militares na América Latina e na Europa, com dinâmicas de elites autoritárias conservadoras. O ponto de interrogação hoje remete para a vaga populista. Quando olhamos para as primeiras vagas populistas da América Latina, vemos que são vagas que associam grande capacidade de mobilização eleitoral popular à construção de regimes autoritários. Lembremo-nos de Chávez e de Maduro na Venezuela. São regimes políticos populistas que conciliam mobilização eleitoral de grandes segmentos da população. O mesmo acontece com Erdogan na Turquia e com Orbán na Hungria. Têm um apoio eleitoral inicial muito significativo. Uma parte dos novos autoritarismos ainda incertos remetem para esta dinâmica. Se eles se vão expandir ou não, isso ainda é bastante incerto.

 

Habitualmente, as ditaduras centravam-se na figura de um líder carismático. Isso está a mudar?

Não, antes pelo contrário. As ditaduras tendem para a personalização do poder. Quase 80% das ditaduras do mundo desde o início do século XX até hoje tendem para a personalização – em média, três anos após a tomada do poder. O outro dado universal das ditaduras é que têm partidos únicos ou partidos dominantes. É muito difícil sobreviver e legitimar um regime político sem um partido. Às vezes, é um partido único, outras vezes é um partido dominante, que faz a ligação entre as elites no poder e a sociedade. As ditaduras precisam não de pluralismo partidário, mas de máquinas políticas.

É muito importante para os ditadores a cooptação de elites.

Escreve no ensaio que "as ameaças ao ditador tanto podem vir ‘de baixo’ como, sobretudo, de outros elementos da elite governante". Esta definição pode ser aplicada a Putin? Há quem diga que é um prisioneiro no Kremlin.

Tenho dúvidas de que Putin seja um prisioneiro no Kremlin. Putin vem do aparelho repressivo. E, portanto, o controlo de um sistema de informações e um controlo do aparelho militar foram mais importantes inicialmente para a consolidação do seu poder. A seguir foi evidentemente o controlo dos oligarcas, de um poder económico autónomo, que poderia pôr em causa o seu domínio sobre o sistema político. Com estas duas variantes, a económica e a militar repressiva, Putin conseguiu efetivamente um controlo significativo. É muito importante para os ditadores a cooptação de elites. Quanto maior for a sua capacidade de criar instituições de cooptação, maior a sua taxa de sobrevivência. O exemplo eventualmente mais impressionante no mundo contemporâneo dessa capacidade de cooptação de elites é a China – ao assegurar uma transição ao capitalismo de Estado com um forte setor privado e uma enorme capacidade de controlo do mesmo, o Partido Comunista Chinês dirige uma gigantesca elite política e burocrática, que tanto forma quadros tecnocráticos e de empresas públicas, com as suas escolas de elites, como dirige quadros de controlo e enquadramento político da sociedade. A China contemporânea é a prova de que os regimes autoritários têm uma enorme capacidade de mudança, de cooptação e muitas vezes de sobrevivência.

 

Qual o papel das redes sociais nestas novas ditaduras?

As redes sociais constituíram um enorme desafio aos regimes autoritários. Os regimes autoritários clássicos, fossem ditaduras socialistas, associadas ao fascismo ou militares, tinham sempre os mesmos mecanismos clássicos de censura. Viviam de um mecanismo de censura prévia e do controlo da informação. A globalização e as redes sociais foram um instrumento de subversão informativo muito significativo. Mas também têm alguma propensão para aquilo a que se poderia chamar de compartimentação, ou seja, para a constituição de redes sociais mais fechadas, que muitas vezes são polos de difusão, por exemplo, de radicalismo político nas democracias. Mas a resposta das ditaduras às redes sociais, no fundamental, tem um ponto comum: o seu controlo e muitas vezes o seu encerramento. A cada golpe de Estado, como por exemplo em Myanmar, os regimes autoritários bloqueiam imediatamente as redes sociais. Em grande parte porque a própria dinâmica de mobilização política antiautoritária se faz muito a partir das redes sociais. Muitas vezes, mesmo em democracia, é nas redes sociais que são organizadas as chamadas ações disruptivas, as manifestações políticas violentas ou de grupos radicais.

Ver comentários
Saber mais António Costa Pinto O Regresso das Ditaduras? Fundação Francisco Manuel dos Santos ensaio política ditaduras democracias autoritarismo
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio