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Nacionalizações em 1975: A Ferro e Fogo

Em Abril de 1975, chega a nacionalização da Siderurgia. O empresário António Champalimaud perdia, então, a "menina dos seus olhos". Foi há quarenta anos.

30 de Outubro de 2015 às 15:00
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No dia da inauguração da Siderurgia Nacional, a 24 de Agosto de 1961, António Champalimaud era um homem feliz. O empresário estava a realizar um sonho antigo. Na cerimónia, o ministro da Economia, Ferreira Dias, disse com orgulho: "País sem siderurgia não é um país, é uma horta." A frase ficaria na história. Mas em Abril de 1975 chega a nacionalização. Champalimaud perdeu a "menina dos seus olhos". Mas não a quis de volta quando, nos anos 1990, o governo a reprivatizou. O que resta da antiga indústria do aço está agora em mãos estrangeiras.

"O homem de aço fala aos homens do aço." António Champalimaud discursava de uma varanda para a multidão de trabalhadores da Siderurgia Nacional, no Seixal. Os olhos dos operários estavam fixos no patrão que tentava dissuadi-los de fazerem greve. Champalimaud decidiu enfrentar o clima de reivindicação que se instalou na empresa logo a seguir à revolução. "A greve é loucura! A entrada de mais escudos na casa de cada um ao final do mês reside na capacidade de produzirmos mais aço", afirmava o industrial, naquele dia 10 de Maio de 1974. Há mais de dois anos que os trabalhadores andavam a negociar com a administração um novo Acordo Colectivo de Trabalho e melhores condições de trabalho. Mas o acordo parecia impossível de alcançar. Durante parte desse processo negocial, o presidente do grupo Champalimaud esteve fora do país, na sequência do caso da herança Sommer, que se arrastou nos tribunais mais de uma década. Um processo movido pelos irmãos que o acusavam de se ter apropriado indevidamente da herança do tio, Henrique Sommer. Foi emitido um mandado para sua detenção e, em 1969, ele decidiu fugir. Durante os cinco anos que esteve fora do país, conduziu os negócios à distância. Quando se dá a revolução, Champalimaud tinha regressado a Portugal havia sete meses.

O Presidente da República Américo Thomaz esteve ao lado de António Champalimaud na inauguração oficial da Siderurgia Nacional, a 24 de Agosto de 1961. Era o maior investimento industrial do país na altura.

Entre a multidão que ouvia Champalimaud estava José Nunes Maia. O engenheiro, que tinha entrado na empresa em 1972, era o responsável pela aciaria. Recorda que nesse dia o dono da Siderurgia foi recebido pelos trabalhadores com um cartaz que dizia: "Champalimaud estamos contigo. A administração traiu-te." Foi nesse dia que viu o patrão pela primeira vez. No discurso, o empresário colocava-se ao lado dos operários dizendo que também ele tinha sofrido "na carne" o "julgamento sumário" do regime, que o pôs "fora do país durante cinco anos". E apelou a uma "maior colaboração entre todos". Mas a cereja no topo do bolo foi a promessa de aumentos salariais muito acima do que era exigido no caderno reivindicativo. "Se bem me recordo, a questão era 3.300 escudos por mês como ordenado de referência e ele dava 5.100 escudos", diz. No final houve aplausos para o patrão. "Foi uma festa!", recorda o engenheiro.

Mas a agitação social na empresa não acalmou. Pouco tempo depois, os trabalhadores exigiram "a demissão de figuras-chave na administração", escreve Paulo Guimarães, no livro "Memórias da Siderurgia", coordenado por Maria Fernanda Rollo. Tratava-se de Amílcar Marques e Henrique Estácio Marques, que eram acusados de serem "fascistas". Champalimaud não expulsou os dois administradores, apenas os mudou de funções. Deixaram de lidar directamente com os trabalhadores. E a 24 de Maio de 1974 os operários sequestraram os dois elementos da administração na sede da empresa, na Rua Braamcamp, em Lisboa. Conseguiram obter promoções, 30 dias de férias pagas na totalidade e trabalho em feriados e folgas pagos a 300%.

Um sonho antigo
António Champalimaud sonhava ser dono de uma Siderurgia já desde os anos 1940 e não descansou enquanto não conseguiu pôr em marcha esse projecto. "Travei aí a mais persistente e dura batalha da minha vida de industrial", chegou a dizer. A licença só lhe viria parar às mãos já em meados dos anos 1950, depois de um processo longo e atribulado. O Conselho de Ministros aprova, a 1 de Fevereiro de 1955, o alvará n.º13, que concede à Siderurgia Nacional a licença para estabelecer e explorar em exclusivo a indústria siderúrgica em Portugal, durante 10 anos. É fixada uma capacidade mínima de produção de 150 mil toneladas por ano.

"A montagem da planta siderúrgica 'integrada' em Paio Pires, no concelho do Seixal, fez-se numa corrida contra o tempo, sendo notável a capacidade de realização industrial portuguesa e de assimilação de capacidades técnicas avançadas num curto espaço de tempo", escreve o historiador Paulo Guimarães, no texto "Contribuição para a história da Siderurgia Nacional", incluído no livro "Memórias da Siderurgia". A unidade foi construída no sistema "chave na mão" e houve um programa de formação de vários quadros superiores e intermédios em países como a Alemanha, a França e a Bélgica, entre os anos 1958 e 1960.

José Ricardo Marques da Costa
Foi o responsável pela montagem da Siderurgia Nacional entre 1958 e 1964. O engenheiro voltou mais tarde à empresa, quando foi nacionalizada, para assumir o cargo de presidente do primeiro conselho de gestão, em 1975. Ficou seis anos ao leme da empresa. Mais tarde, foi presidente da CP.  
José Ricardo Marques da Costa acompanhou os trabalhos. Foi o responsável pela montagem da Siderurgia. Esteve na empresa entre 1958 e 1964. "Os alemães acharam que foi um arranque belíssimo", recorda. Tão bom que António Champalimaud dispensou os seus serviços de assessoria mais cedo do que o que estava estipulado no contrato. "Para mim, ele teve de fazer uma poupançazinha", diz a rir. Mas sublinha que, de facto, o empresário acreditava que "tinha gente muito boa". Dá-lhe razão. Recorda que à frente da aciaria ficou, naquela altura, "um dos melhores alunos do Técnico de todos os tempos".

Uma festa em grande
É no Verão de 1961 que a Siderurgia é oficialmente inaugurada. A 24 de Agosto, o Presidente Américo Thomaz pisa a passadeira vermelha que está estendida até à tribuna, juntamente com outras altas figuras do Estado. O dia é de festa. Todo o recinto está engalanado e há bandeiras a esvoaçar. Champalimaud era um homem feliz. "Os convidados percorreram as instalações de comboio até ao alto-forno, onde se encontravam já o bispo Mitilene e o arcebispo, que benzeram as instalações", pode ler-se no livro "António Champalimaud - Construtor de Impérios", de Isabel Canha e Filipe S. Fernandes. No discurso proferido pelo então ministro da Economia, Ferreira Dias, um dos grandes impulsionadores do projecto industrial, há uma frase que ficará na história: "País sem siderurgia não é um país, é uma horta."

Três dias depois é feita a festa de inauguração popular que, segundo o relato de um antigo funcionário, transcrito no mesmo livro, foi "uma coisa estrondosa, milhares e milhares de pessoas. Comida e bebida do bom e do melhor para aquela gente toda, os portões estavam abertos para quem quisesse entrar".

A década de ouro
Apesar de todo o entusiasmo em volta do projecto, o negócio da siderurgia arrancou com muita dificuldade. O aço não se vendia e as contas entraram rapidamente no vermelho. Tudo porque, nos meses anteriores ao início da produção, houve uma importação anormal de aço pelos armazenistas. O relatório para o Conselho Económico da Secretaria de Estado do Comércio, em Novembro de 1961, refere que esse aumento dos "stocks" se devia à "expectativa quanto aos futuros preços dos produtos siderúrgicos da indústria nacional".

A Siderurgia estava a tornar-se um enorme falhanço industrial com os prejuízos a acumularem-se a cada dia que passava. "Os primeiros tempos foram difíceis. Muitas vezes tínhamos de restringir, especialmente os produtos laminados. Tínhamos de andar mais devagarinho. Fazer menos coisas porque tivemos problemas de colocação dos nossos materiais", recorda Marques da Costa.

A administração envia uma carta ao Ministério das Finanças, a 16 de Junho de 1962, em que lança o alerta. A "situação económica e financeira desta empresa é grave". Marques da Costa diz que António Champalimaud fez sentir ao governo que "não se faz uma obra destas sem que o país e as suas instituições superiores não a acarinhem". O empresário reclamava alguma protecção do Estado durante o período inicial da actividade da Siderurgia Nacional para se poder afirmar no mercado. O governo estabelece um subsídio à exportação, mas a empresa teria de comprar a matéria-prima às minas de Moncorvo e Cercal.

Em 1963, a Siderurgia registou ainda um prejuízo de 227 mil contos, mas a partir daí as vendas começaram a subir. E em 1965 começa uma década de ouro na empresa. Nesse ano foram vendidas mais de 220 mil toneladas de aço. Um aumento de 22% face ao ano anterior. Mas houve outro dado relevante. Um despacho de 12 de Março de 1965 rectificou as condições e o preço de venda do aço. Algo que a administração reclamava há muito. Nesse ano foram registados lucros de 84 mil contos. A Siderurgia Nacional inicia um período de expansão com investimentos nas minas de Moncorvo e na metalomecânica. No início da década de 1970, as vendas da empresa ascendiam a três milhões de contos ao ano.


Daniel Proença de Carvalho foi advogado do empresário António Champalimaud.  

A Siderurgia era a 'menina dos olhos' dele [António Champalimaud]. Era um projecto pessoal. 
Daniel Proença de Carvalho


E depois da revolução?
António Champalimaud ficou satisfeito com o 25 de Abril. Tinha uma má relação com Marcelo Caetano, o presidente do Conselho de Ministros, que lhe "estragou" vários negócios. E conhecia bem o general António de Spínola. O presidente da Junta de Salvação Nacional tinha sido administrador na Siderurgia. Cinco dias depois da revolução, Champalimaud junta-se a um grupo de banqueiros para um encontro com Spínola. Queriam passar a mensagem de que estavam dispostos a colaborar com a revolução. António Champalimaud foi o porta-voz do grupo. Criticou o regime de condicionamento industrial que vigorou na ditadura e pediu reformas que favorecessem uma maior criatividade por parte da iniciativa privada. Rapidamente percebeu que o rumo do país seria diferente. Em Dezembro de 1974, o Comando Operacional do Continente (COPCON) prende alguns empresários. Entre eles está Fernando Cruz, presidente do conselho de administração da empresa de cimentos de Champalimaud. "A partir daí ele começou a perceber que as coisas se iam encaminhar para uma situação complicada", diz Proença de Carvalho, advogado de António Champalimaud.

Quando, três meses depois, se dá o golpe falhado de 11 de Março de 1975, liderado por António de Spínola, Champalimaud está em Paris. Os administradores do seu banco, o Pinto Sotto Mayor, são detidos e levados para a prisão de Caxias. Até aqui Champalimaud tinha estado nas boas graças dos trabalhadores da Siderurgia. O empresário tinha por hábito visitar a fábrica de aço à noite. Sem ninguém esperar. José Nunes Maia ouviu várias histórias contadas por operários. "Ele entrava nas instalações e dirigia-se a um operário, interessava-se pela história pessoal dele e, se percebia que havia uma dificuldade financeira momentânea, ele tomava nota e depois o operário era chamado e a empresa avançava-lhe o dinheiro", conta. Nunes Maia confirmou a existência de um fundo na Siderurgia para estas situações quando integrou a comissão de fiscalização em representação dos trabalhadores, depois da nacionalização da empresa. "Salvo erro, eram cento e poucos contos", recorda, geridos pela direcção financeira, para "empréstimos que se faziam aos trabalhadores a título pessoal para resolver um problema". Por outro lado, corria o boato entre os operários de que o patrão não era "um querido de Salazar". E não era. Daniel Proença de Carvalho acredita que o presidente do conselho "tinha admiração por ele, na medida em que era um empresário de grande valor", mas ao mesmo tempo "não era propriamente um empresário submisso". A sua visão liberal da economia "criou-lhe alguns problemas", refere. Mas os grandes choques seriam mais tarde com Marcelo Caetano, com quem teve "fortíssimas divergências".


José Nunes Maia entrou para a Siderurgia em 1972. O engenheiro foi, depois da nacionalização, o representante dos trabalhadores na Comissão de Fiscalização da empresa. 

A Siderurgia foi um dos cordeiros que tiveram de ser sacrificados na adesão à CEE. 
José Nunes Maia


Com o 11 de Março surge uma onda de nacionalizações no país. Num curto espaço de tempo, Champalimaud, considerado um dos homens mais ricos da Europa, perde quase todos os seus negócios em Portugal. Primeiro o banco, depois as seguradoras. A Siderurgia Nacional passa para as mãos do Estado a 16 de Abril de 1975 com a publicação do Decreto-lei 205-F/75. Um mês depois seria a vez dos cimentos. O empresário vai acompanhando à distância o que se passa no país. Decide fixar-se no Brasil. É lá que começa um novo império. Estava em construção uma fábrica de cimento em Belo Horizonte. Mais tarde investiu na agro-pecuária.

Marques da Costa será o primeiro presidente do conselho de gestão da empresa nacionalizada. Ficou seis anos ao leme da empresa. Houve necessidade de reduzir pessoal, recorda. "Mas nunca houve problemas internos que motivassem paragens ou quaisquer rebeliões do pessoal", garante. A empresa não dava prejuízo, mas também não tinha "grandes resultados". Um dos problemas, diz, era o transporte de matérias-primas que era caro. "Era um cais muito pequeno e metade dos navios tinham de descarregar para pequenos barcos para levar para a Siderurgia Nacional", explica. E os encargos com pessoal também pesaram nas contas, admite. A empresa chegou a empregar mais de seis mil pessoas. José Nunes Maia refere que a Europa afundou esta indústria em Portugal. "A Siderurgia foi um dos cordeiros que tiveram de ser sacrificados na adesão à CEE", defende. E refere que houve investimentos que se perderam. Como um alto-forno novo, mandado comprar pelo governo liderado por Sá Carneiro, que nunca chegou a ser montado. "Foi já Cavaco Silva, enquanto primeiro-ministro, que mandou vender a uma empresa indiana, a Tata", conta.

Em 1991, a Siderurgia é transformada numa sociedade anónima com capitais maioritariamente públicos. O Executivo liderado por Cavaco Silva tenta vendê-la. Champalimaud não entra na corrida. A Lusosider apresenta uma proposta, mas o valor oferecido é considerado demasiado baixo. O caminho seguido foi dividir a empresa em unidades e vendê-las separadamente. Hoje estão no complexo industrial do Seixal duas empresas estrangeiras, a Megasa produz os produtos longos e a Lusosider, chapa galvanizada. Resta o alto-forno, desactivado desde 2001, a marcar a história de uma empresa que em tempos pertenceu ao "homem de aço".


Fotos: EMS / CDI - Imagem cedida por António Durão

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