Notícia
A confiança é um espanta-espíritos a balançar ao vento
Depois de sermos traídos, podemos voltar a confiar? Em "Que boa ideia, virmos para as montanhas", Guilherme Gomes preparou um verdadeiro poema em palco - daqueles onde os silêncios são os verdadeiros protagonistas. Na busca por respostas, o tempo e a dúvida medem forças.
Que boa ideia, virmos para as montanhas
A terceira peça do Teatro da Cidade está em cena até ao próximo domingo, 29 de abril, no CAL - Centro de Artes de Lisboa. Fica no número 12 A da Rua de Santa Engrácia.
Quantas vezes se deixam as relações à beira do precipício? Ali, tão frágeis, sujeitas a qualquer vento mais forte que lhes dite o destino. Porque se poupou nas palavras, se guardou a verdade, se temeu a dimensão do sofrimento.
Volta-se para casa, local de protecção, na esperança de que as coisas voltem a ser como eram. Na expectativa de que essa diferença não seja notória no rosto, por mais que ela grite. Do outro lado, finge-se não ter reparado. Deixa-se a mentira consumir o espírito, até que ela se torne sufocante.
Na sala de Leonor (Nídia Roque) e André (Bernardo Souto), o luar ilumina o chão de madeira. A rádio preenche o vazio do espaço. Ela em pijama, desgrenhada. Ele de camisa, calças e cinto apertado, pronto para fugir para a rua, para escapar aos problemas que antecipa há demasiado tempo. "Que boa ideia, virmos para as montanhas" está a postos para começar.
Alguém bate à porta, carregado de sofrimento. Isabel (Rita Cabaço), vinda do temporal no exterior, traz a tempestade para dentro desta casa - ou, pelo menos, torna notório o que já lá estava. A amiga Leonor sai para preparar um chá. Antes de o aroma a lúcia-lima inundar a sala, o nó começa a desenlaçar-se: há um segredo a ligar Isabel e André. Terá ele sido carnal? Nunca se concretiza. Basta isto: o que escondem é tão forte como uma traição.
O texto de Guilherme Gomes é de uma maturidade assoberbante. Partindo da canção "Famous Blue Raincoat", que Leonard Cohen dedicou a alguém com quem a sua mulher teve um caso, o também encenador constrói não só teatro, mas um autêntico poema. As palavras surgem carregadas de simbologia e intenção, são pensadas para ficar a ressoar. E, prontamente, a ceder lugar ao silêncio. Nesse silêncio em que se diz tanto e as personagens se tornam cada vez mais frágeis.
É essa maturidade nas palavras e nos gestos - que pode parecer precoce para muitos, quando os seus donos estão ainda na casa dos vinte anos - que faz a diferença no terceiro trabalho do Teatro da Cidade, companhia criada em 2015 e que, a cada peça, justifica mais que se continue a segui-los. Desta vez, tocam na riqueza das relações humanas, no sofrimento e no medo da solidão, assentes num trabalho de pesquisa que não só é notório como refinado. Cada palavra é uma pista para um novo silêncio, estrutura a partir da qual "Que boa ideia, virmos para as montanhas" se desenvolve.
Nesta sala, onde o chão range e denuncia cada movimento, estas personagens vão ter de lidar com os fantasmas do passado se quiserem seguir em frente, se quiserem resgatar a relação do precipício onde André a colocou. Ao espectador, inteligentemente, não é pedido que tome um lado: antes que tente compreender cada uma das posições neste triângulo.
Quando se dá por ela, o sol começa a nascer. Já sozinha com André, Leonor decide partilhar uma laranja, como quem aceita voltar a confiar. Por mais que se acredite no tempo, no seu efeito curador, a memória de Isabel ficará lá para sempre. Com a silhueta desenhada a giz na parede.
A terceira peça do Teatro da Cidade está em cena até ao próximo domingo, 29 de abril, no CAL - Centro de Artes de Lisboa. Fica no número 12 A da Rua de Santa Engrácia.
Quantas vezes se deixam as relações à beira do precipício? Ali, tão frágeis, sujeitas a qualquer vento mais forte que lhes dite o destino. Porque se poupou nas palavras, se guardou a verdade, se temeu a dimensão do sofrimento.
Na sala de Leonor (Nídia Roque) e André (Bernardo Souto), o luar ilumina o chão de madeira. A rádio preenche o vazio do espaço. Ela em pijama, desgrenhada. Ele de camisa, calças e cinto apertado, pronto para fugir para a rua, para escapar aos problemas que antecipa há demasiado tempo. "Que boa ideia, virmos para as montanhas" está a postos para começar.
Alguém bate à porta, carregado de sofrimento. Isabel (Rita Cabaço), vinda do temporal no exterior, traz a tempestade para dentro desta casa - ou, pelo menos, torna notório o que já lá estava. A amiga Leonor sai para preparar um chá. Antes de o aroma a lúcia-lima inundar a sala, o nó começa a desenlaçar-se: há um segredo a ligar Isabel e André. Terá ele sido carnal? Nunca se concretiza. Basta isto: o que escondem é tão forte como uma traição.
O texto de Guilherme Gomes é de uma maturidade assoberbante. Partindo da canção "Famous Blue Raincoat", que Leonard Cohen dedicou a alguém com quem a sua mulher teve um caso, o também encenador constrói não só teatro, mas um autêntico poema. As palavras surgem carregadas de simbologia e intenção, são pensadas para ficar a ressoar. E, prontamente, a ceder lugar ao silêncio. Nesse silêncio em que se diz tanto e as personagens se tornam cada vez mais frágeis.
É essa maturidade nas palavras e nos gestos - que pode parecer precoce para muitos, quando os seus donos estão ainda na casa dos vinte anos - que faz a diferença no terceiro trabalho do Teatro da Cidade, companhia criada em 2015 e que, a cada peça, justifica mais que se continue a segui-los. Desta vez, tocam na riqueza das relações humanas, no sofrimento e no medo da solidão, assentes num trabalho de pesquisa que não só é notório como refinado. Cada palavra é uma pista para um novo silêncio, estrutura a partir da qual "Que boa ideia, virmos para as montanhas" se desenvolve.
Nesta sala, onde o chão range e denuncia cada movimento, estas personagens vão ter de lidar com os fantasmas do passado se quiserem seguir em frente, se quiserem resgatar a relação do precipício onde André a colocou. Ao espectador, inteligentemente, não é pedido que tome um lado: antes que tente compreender cada uma das posições neste triângulo.
Quando se dá por ela, o sol começa a nascer. Já sozinha com André, Leonor decide partilhar uma laranja, como quem aceita voltar a confiar. Por mais que se acredite no tempo, no seu efeito curador, a memória de Isabel ficará lá para sempre. Com a silhueta desenhada a giz na parede.