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Uma revolução tranquila está em marcha em França. Não se sabe ainda o suficiente sobre o seu sentido, mas há sinais positivos para a sobrevivência do projecto europeu. Do outro lado do Atlântico, Trump esforça-se como comediante tão sem graça como perigoso. Falta poesia no mundo.

António José Teixeira 16 de Junho de 2017 às 13:00
maioria. Depois da presidência da República, Emmanuel Macron prepara-se para conquistar uma larga maioria da Assembleia Nacional francesa. Num ano, o seu movimento La République En Marche fez a revolução dentro do sistema. Varreu republicanos e socialistas e preencheu uma vasta zona central do espectro político. Ideologicamente, é um espaço ambíguo que vai ser posto à prova. Boa parte dos novos deputados não tem experiência política. A decadência dos dois detentores habituais do poder foi desafiada pelo reforço da Frente Nacional. A oportunidade de saída de um cenário que arriscava o impasse foi ocupada por Macron. É certo que a elevada abstenção não alimenta grandes convicções, mas apesar de tudo o eleitorado deu um enorme voto de confiança ao novo Presidente. Mérito de Macron. França precisa de um novo alento e a Europa precisa de França para que a União Europeia faça sentido. Uma enorme responsabilidade. 

jihadismo. É aquilo que os muçulmanos consideram como "guerra santa" ou luta armada contra os "infiéis" e inimigos do Islão. O chamado terrorismo "low-cost" que está a acontecer no Reino Unido é a continuação do que já vimos em França e na Alemanha e que alguns classificam como jihadismo de terceira geração. Há poucos dias, dois ilustres estudiosos e narradores do nosso tempo mostraram-se contrários à tolerância que o islamismo radical tem merecido. Gilles Kepel, especialista em Islão e mundo árabe, lembra como em Birmingham, por exemplo, se permitiu a instauração da sharia e a criação de tribunais islâmicos. Religião confundida com ideologia: islamismo como ideologia salafita. O jihadismo faz o seu caminho contra o modo de vida ocidental, sejam os símbolos do iluminismo ou do parlamentarismo (em Nice ou Westminster), sejam símbolos cristãos (o Natal de Berlim) ou de um certo hedonismo (no Bataclan de Paris ou no concerto de Manchester). Não são actos desconexos. Também Salman Rushdie alerta contra uma "cegueira estúpida": o fundamentalismo não está dissociado do Islão. Os xiitas fizeram uma revolução islâmica e os sunitas fanatizaram-se em movimentos terroristas. O jihadismo procede desta radicalização do Islão.  

mentiroso. Há quem se reveja em Donald Trump, faça o que fizer, diga o que disser. Há quem pouco se rale com a irracionalidade das suas atitudes. Basta-lhes a vingança sobre o "establishment". Os que se importam com o sentido do que faz e do que diz defrontam-se desde logo com a mentira compulsiva. A mentira e o poder são velhos conhecidos, mas é tal a escala dos "factos alternativos" que é o próprio Trump a chamar mentirosos aos que o contrariam. Hannah Arendt lembrou há muitas décadas: "Nunca ninguém teve dúvidas de que a verdade e a política estão em bastante más relações, e ninguém, tanto quanto saiba, contou alguma vez a boa-fé no número das virtudes políticas." As expectativas são baixas, até porque a mentira é tolerada e considerada instrumento necessário à acção política dos homens de Estado. Mas a despreocupação com a verdade terá limites. Não sei se são mensuráveis ou inultrapassáveis. Sei que Trump os desafia todos os dias. Mesmo tendo em conta que vivemos na era do "tudo pode acontecer", haverá um momento de confronto com a verdade. Não é só uma questão moral. É uma exigência política. As ligações de Trump e da sua "entourage" à Rússia ditarão o seu destino. Bem pode despedir polícias e procuradores…  

manha. A palavra ainda ecoa de tão sintomática. Manha, disse António Costa, para se referir à EDP e ao modo como contorna regras contratuais e regulatórias. Em vez de manha podia ter dito: habilidade, habilidade de enganar, desenvoltura, destreza, astúcia, ardil, meio oculto… A manha da EDP, que Costa conhece há muito, tem curiosamente um cadastro público e privado. Já assim se comportava quando era pública, assim se comporta privada. Maximizar benefícios será a manha de sempre, seja quando negociou manutenções de "equilíbrio contratual", seja quando se privatizou. Os que se queixam agora, e bem, dos que negociaram os primeiros contratos são os mesmos que os permitiram aos novos donos das energias portuguesas. Manha, afinal, tem um outro significado: captura. É talvez por isso que Eduardo Catroga, um homem que sabe muito, diz que "não se brinca com empresas cotadas"… Um atrevimento, já se vê. Vamos ver agora em quantos milhões se reduz a manha.  

mistura. Manuel Sobrinho Simões é um investigador de grande qualidade. Fundou o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular e Celular da Universidade do Porto. Há dois anos foi considerado o patologista mais influente do mundo. Além de tudo, é um homem de cultura e um cidadão exemplar. Não espanta que tenha sido escolhido para presidir às comemorações do Dia de Portugal. Como não espanta, apesar de inusual, que a genética tenha sido tema forte da sua intervenção. O risco é grande quando se abordam as características genético-culturais de um povo. Foi o que fez com a caracterização da travessia portuguesa. Obviamente, não há genes portugueses. "O que os portugueses têm é uma mistura notável de genes com as mais variadas origens, se há algo único, ou quase único em nós, é essa mistura." Sobrinho Simões sublinhou assim a força da "impureza", da nossa capacidade de relação, de adaptação e aprendizagem. Um contributo lúcido no Dia de Portugal, que outrora quiseram que fosse o dia da raça.  

poesis. É o mais recente título de Maria Teresa Horta. Poesia "ardente e revoltosa", como gosta de dizer. Poesia sem vassalagem, desobediente, resistente. Um livro que é uma viagem de vida, uma "epopeia feita de poesia, perdimentos e palavras". Escritora e jornalista, Teresa Horta publicou mais de duas dezenas de livros, sobretudo poesia. Estreou-se em 1960 com "Espelho Inicial". As "Novas Cartas Portuguesas", no início dos anos 70, escritas com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, correram o mundo. Proibidas e processadas em Portugal porque falavam da guerra, da liberdade, da discriminação, motivaram a solidariedade de grandes figuras como Simone de Beauvoir ou Marguerite Duras. O talento de Maria Teresa Horta não ficou por aqui. A sua poesia límpida, apaixonada, assombra verbos e reinventa metáforas: "Poema a poema a poema/paixão após fulgor após beleza/na sua dimensão mais ávida." A ler. Com prazer. 


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