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Hortas comunitárias: saber o que se come

As hortas comunitárias são um fenómeno em crescendo. Permite que as pessoas regressem ao contacto com a terra, fomenta a interação social, possibilita a investigação e aumenta a sustentabilidade da região. Mas, para que isso aconteça, é preciso organização, logística e desenho dos terrenos, assim como formação e acompanhamento dos horticultores.

29 de Março de 2023 às 14:15
As hortas comunitárias podem também ser vistas como um regresso ao passado. Mário Cruz/Lusa
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As hortas comunitárias e/ou urbanas estão cada vez mais presentes no panorama português e continuam a ganhar terreno. Por um lado, garantem que as famílias que as trabalham têm acesso a produtos (supostamente) frescos e de boa qualidade e, ao mesmo tempo, asseguram a existência de mais espaço verde nas cidades, o que é benéfico para a qualidade do ara também para a sustentabilidade, no geral.

Veja-se o caso de Cascais, por exemplo. A primeira horta comunitária surgiu em 2019, no âmbito da reabilitação de um espaço municipal, o Bosque dos Gaios. Como explica a Cascais Ambiente, esta reabilitação foi efetuada com o envolvimento da população local, que foi chamada através de sessões de participação a decidir que valências gostaria de ver no espaço. A escolha recaiu na horta e o espaço do Bosque dos Gaios e começou com seis parcelas. Cascais dava o primeiro passo para as Hortas Comunitárias e uma estratégia mais ampla e abrangente.

A agricultura de proximidade faz todo o sentido como potenciação de uma economia mais circular. Pedro Horta
Associação ambientalista Zero
"Em gestão comum ou talões individuais, em espaços periurbanos e urbanos, a agricultura de proximidade faz todo o sentido como potenciação de uma economia mais circular, redução da pegada dos alimentos e promoção da resiliência alimentar e da ligação ao território". É desta forma que Pedro Horta, da Zero, explica o fenómeno, acrescentando que, dado o aumento do preço de vários bens alimentares, o cultivo para alimentação própria é, por vezes, uma atividade de recurso para estabilizar as contas.

Mas essa não é a única razão, embora seja provavelmente a principal. Há uma crescente preocupação por parte do consumidor em querer saber mais sobre os produtos que ingere. Como foi produzido o alimento, se levou químicos e qual a sua pegada associada. "O aumento do número de hortas urbanas e periurbanas é uma oportunidade de reconhecer publicamente a pequena agricultura familiar e comunitária como fundamental, sem com isso deixar de corrigir as pressões socioeconómicas que recaem sobre as famílias e cidades", constata o ambientalista da Zero.

O processo nem sempre é fácil ou isento de desafios. Por um lado, as cidades têm de encontrar um terreno (ou terrenos) onde alojar as horas e, por outro, há que garantir pelo menos alguma formação aos "novos" agricultores por forma a serem utilizadas boas práticas de cultivo. Diga-se, evitar usar químicos e saber escolher as espécies a plantar, entre outras regras.

A melhor forma de perceber quais os principais desafios e a forma como estes foram ultrapassados é olhar para municípios com algum histórico. No caso de Cascais a adesão foi substancial e em menos de um ano o município foi obrigado a criar mais duas hortas. Neste caso específico Cascais optou por hortas comunitárias (e não urbanas) porque consideraram que era essencial a componente de participação e envolvimento.

Segundo a Cascais Ambiente o desenho das hortas foi fundamental nesta dimensão, espaços com grande qualidade paisagística, inseridos no coração dos bairros, muito próximo das habitações, em que todas as estruturas seriam partilhadas: abrigos de ferramentas, espaços de convívio, pontos de água, vedação baixas para a que a populações do bairro pudessem desfrutar visualmente destes novos espaços verdes cuidados por munícipes, inseridos em espaços com múltiplas valências. Esse é o primeiro passo. A escolha do local e a forma como esta se integra na zona.

Mas há também um outro aspeto muito importante, como lembra a Cascais Ambiente: os critérios de atribuição das hortas. No caso de Cascais o município optou por critérios muito simples e abertos a toda a população, privilegiando a facilidade de inscrição. Esta facilidade permitiu que, em pouco menos de dois meses, 400 pessoas ficassem em lista de espera. A adesão registada levou a que o município decidisse avançar com o desenvolvimento do projeto - ou seja, alocasse mais espaço para as hortas.

Hoje Cascais tem 34 hortas comunitárias, com quase 800 parcelas atribuídas. Mas há uma nuance importante a referir. No caso de Cascais as hortas evoluíram para algo mais. Porque o município decidiu, também, ter vinhas comunitárias (4 em 26 lotes), assim como pomares (5 em 35 lotes atribuídos). Uma decisão arrojada do município tendo em conta que o terreno está inserido numa zona privilegiada em termos urbanísticos.

Sustentabilidade: as hortas fazem a diferença?

A crescente adesão às hortas comunitárias pode ser considerada como uma espécie de regresso ao passado, em que as famílias tinham um terreno onde cultivavam produtos para consumo próprio. É claro que hoje é impossível que todas as famílias tenham a sua horta ou que possam sobreviver apenas do que cultivam. No entanto, como lembra Pedro Horta, os vários choques nas cadeias de abastecimento têm vindo a demonstrar que, mesmo na Europa onde a estrutura fundiária está concentrada e a produção agrícola especializada, a pequena agricultura (ou melhor, as diversas formas de pequena agricultura) tem um papel preponderante na garantia de resiliência alimentar. A par disso, acrescenta o ambientalista, o incentivo à pequena agricultura de proximidade é um passo importante para a transição ecológica justa dos sistemas alimentares, com o potencial de corrigir a concentração de valor a jusante das fileiras agroalimentares.

A tudo isto há ainda que contar com o seu impacto direto no ambiente, mais precisamente na sustentabilidade do mesmo. isto porque a criação das hortas pode criar oportunidades para melhorar a circularidade das economias locais (compostagem, uso de águas tratadas, áreas de retenção de águas pluviais).

Mais do que criar laços entre a comunidade e possibilitar que as pessoas saibam o que estão a comer também possibilita "a criação de comunidades de aprendizagem, podendo estar ligadas à investigação - tornando-se autênticos laboratórios vivos com intensa produção de conhecimento através da experimentação e partilha", refere Pedro Horta que, no entanto, alerta que é importante fazer um ordenamento do espaço urbano e periurbano para criar espaços, facilitar o acesso à terra e ordenar devidamente as atividades.

Sem esquecer um outro ponto, mencionado por Helena Real, secretária-geral da Associação Portuguesa de Nutrição: as hortas urbanas permitirem o aumento de produção de alimentos de proximidade e a redução da pegada de carbono associada, uma vez que estas produções pretendem-se mais sustentáveis, na medida em que procuram promover uma agricultura biológica, com recurso a técnicas de economia circular (por via do uso de compositores, por exemplo) e em comunhão com a biodiversidade de espécies vegetais e animais.

A gestão de um talhão numa horta urbana, poderá trazer diversos benefícios para os seus produtores. Helena Real
Secretária-geral da Associação Portuguesa de Nutrição
"A gestão de um talhão numa horta urbana, poderá trazer diversos benefícios para os seus produtores, tendo em conta o convívio com outros produtores, a relação com a natureza, o desenvolvimento de tarefas mentais menos exigentes, o consumo de alimentos mais sustentáveis, de proximidade e sazonais, além do próprio conhecimento do ciclo de produção do alimento", aponta a nutricionista. Factos que levam que Helena Real acredite que a existência destes "produtores urbanos" pode levar a "consumidores mais conscientes, manifestando maior respeito pelos alimentos, a par de uma possível inclusão de mais produtos hortícolas na sua alimentação, estendendo potencialmente estas dinâmicas à sua família".

Todavia, há riscos inerentes. Nomeadamente se não forem acautelados alguns cuidados como a formação e acompanhamento dos "novos" agricultores. Questionado sobre o risco de contaminação dos solos pelo uso, por exemplo, de pesticidas Pedro Horta lembrou que a utilização dos mesmos está regulada através da lei n.º 26/2013 (com alterações: Decreto-Lei n.º 35/2017; Decreto-Lei n.º 169/2019; Decreto-Lei n.º 9/2021), que obriga a aquisição de habilitação para a aplicação dos produtos. A mesma Lei obriga que os princípios da Proteção Integrada sejam considerados (artigo 16º, ponto 1, alínea f), afirma, acrescentando que, infelizmente isto não sucede, pelo que na prática e na generalidade, os pesticidas continuam a ser aplicados de forma sistemática na maior parte das explorações agrícolas, enquanto não existem recursos públicos suficientes para fazer uma efetiva monitorização das práticas. O mesmo acontece com as práticas lesivas do solo, que se multiplicam mesmo em áreas em que supostamente se pratica a mais moderna agricultura - basta ver o ravinamento e perda de solo em vastas áreas de olival e amendoal intensivos.

No entanto o ambientalista também refere que, no caso da agricultura mais próxima dos centros urbanos, ou mesmo dentro dos mesmos, e mais vocacionada para o autoconsumo, "existe uma maior facilidade potencial no acompanhamento das práticas, com níveis de recursos públicos menores do que em áreas dispersas". A informação fornecida pela Cascais Ambiente vai no mesmo sentido. A instituição afiança que todos os horticultores e auxiliares tem formação inicial em Agricultura Biológica. Trata-se de uma formação obrigatória de 12 horas, onde é abordada a teoria, mas, também as práticas. A par disso existe acompanhamento dos horticultores e as parcelas são visitadas e fotografadas uma vez por mês.
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