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“Cluster” do calçado quer ser referência internacional

A indústria do calçado nacional quer tirar partido do desafio da sustentabilidade para aumentar o seu peso a nível nacional e internacional. Apoiada num “cluster” e num pacto verde, está a preparar uma nova década de crescimento.

12 de Julho de 2023 às 12:30
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O setor do calçado nacional é constituído por cerca de 1.300 empresas que abarcam 40 mil postos de trabalho. Segundo dados da Associação Portuguesa da Indústria do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Sucedâneos (APICCAPS), o setor exporta anualmente 80 milhões de pares de calçado, no valor de 2.000 milhões de euros, para 172 países, nos cinco continentes. "Todos os anos, o setor do calçado contribui com mais de 1.400 milhões de euros para a balança comercial portuguesa. Esse será sempre um dos seus grandes atributos", começa por referir Luís Onofre, presidente da APICCAPS.

Números que apoiam o próximo salto da indústria, que tem de abraçar os desafios da digitalização e da sustentabilidade com forte aposta na inovação. A indústria portuguesa de calçado vai investir 140 milhões de euros nos próximos três anos, através do "Cluster" do Calçado e Moda, liderado pela APICCAPS e pelo Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP), "com o objetivo de ser a referência internacional no desenvolvimento de soluções sustentáveis", sublinha Luís Onofre. O setor pretende igualmente "reforçar as exportações portuguesas alicerçadas numa base produtiva nacional altamente competitiva, fundada no conhecimento e na inovação", acrescenta o presidente da APICCAPS.

A APICCAPS e o CTCP reuniram mais de 100 entidades, entre universidades, empresas e instituições do sistema científico e tecnológico, e estão a preparar uma nova década de crescimento nos mercados externos em dois projetos distintos enquadrados no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Um desses projetos é o BioShoes4All. Dividido em cinco pilares - biomateriais, calçado ecológico, economia circular, tecnologias avançadas de produção e capacitação e promoção - visa induzir uma mudança radical nos materiais, tecnologias, processos e nos produtos de calçado e marroquinaria, contribuindo para promover a transição do "cluster" para a bioeconomia sustentável e circular. "O setor de calçado tem a ambição de induzir uma mudança radical nos materiais, tecnologias, processos e produto", destaca Luís Onofre.

O outro projeto, denominado FAIST, é uma agenda mobilizadora que atua principalmente no desenvolvimento de tecnologias produtivas com vista à modernização das empresas. "Estes projetos são considerados estratégicos e fundamentais para a modernização do setor e para contribuir para a transição sustentável e digital", destaca Maria Luísa Correia, diretora-geral do CTCP.

Assim, o consórcio do calçado tem vindo a apostar na investigação, desenvolvimento e aplicação de materiais e processos mais sustentáveis para obtenção de produtos de calçado e marroquinaria com melhor desempenho ambiental. Tal passa por materiais de base biológica, como o couro, materiais alternativos e biocompósitos, incorporando biomassas e subprodutos da indústria agroalimentar, biopolímeros de base biológica ou biodegradáveis e materiais isentos de substâncias críticas para a saúde e o ambiente.

Nesta linha, Maria Luísa Correia refere que "a indústria tem trabalhado intensamente em soluções para promover a circularidade, quer pelo desenvolvimento de novas tecnologias de produção, para uma utilização mais eficiente dos recursos, quer pela implementação de soluções e processos para a reciclagem e valorização dos resíduos de manufatura e resíduos pós-consumo".

Uma vez que o mundo enfrenta atualmente duas revoluções, a verde e a digital, a modernização das empresas acontece em paralelo também no setor do calçado. "Estas revoluções ocorrem de forma articulada, não sendo possível dissociar a sustentabilidade da tecnologia, ao longo de toda a cadeia de valor, desde a conceção e desenvolvimento do produto, passando pela produção, até à sua comercialização", destaca a diretora-geral do CTCP.

Para além das dinâmicas operacionais do "cluster", no início deste ano, 140 empresas de calçado nacional assinaram um compromisso verde, onde se vinculam a trabalhar para um planeta com zero emissões de carbono em 2050 e uma redução para metade em 2030.

Estas empresas estão atualmente a ser sujeitas a um diagnóstico que dará lugar a um plano de ação individual com ações a desenvolver em matérias como ecodesign, redução do desperdício, produção e utilização de energias verdes ou implementação de novos modelos de negócios. "Os diagnósticos já se iniciaram e deverão estar concluídos no final do ano", avança Luís Onofre.

Dificuldades num mundo global

Para além das transições que o setor tem de fazer, competir num mundo global acresce dificuldades à indústria, pelo que a sua dimensão tem de ser levada em linha de conta. Por isso, Maria Luísa Correia considera que "dada a natureza do nosso tecido empresarial, principalmente composto por PME, e a capacidade de produção instalada, o "cluster" nacional não deve almejar grandes produções, mas continuar o seu caminho e estratégia distinguindo-se no mercado pela inovação, qualidade e valor acrescentado dos seus produtos e serviços, respondendo de forma rápida, eficaz e flexível". Por isso, acrescenta, "a aposta na sofisticação, na criatividade, na tecnologia, no conhecimento e na inovação são a chave para o sucesso".

A escala é precisamente uma das grandes dificuldades para as empresas nacionais. É o caso da J-UNK, que quer vingar na área do calçado sustentável ao utilizar como material mangueiras danificadas em incêndios, desenvolvendo também um lado de cariz social com donativos às associações humanitárias de bombeiros voluntários.

"Promovemos a sustentabilidade do calçado nacional através dos nossos fornecedores locais, que ficam todos localizados num raio de 10 quilómetros, dos materiais e dos excedentes para criar novos produtos", explica Bárbara Silva, "marketing planner" da J-UNK.

A grande dificuldade que sente para alcançar a sustentabilidade "é arranjar fornecedores que façam pequenas quantidades para as nossas pequenas produções". "Outra dificuldade é a obtenção de materiais sustentáveis, que pode ser desafiadora, pois envolve encontrar fontes de materiais renováveis, biodegradáveis ou reciclados, o que requer muita pesquisa e uma procura constante por materiais inovadores", explica. Outro grande desafio, acrescenta, "é consciencializar os consumidores sobre a importância da sustentabilidade neste setor". A responsável da marca considera que "é necessário voltar a educar os consumidores, para que todos juntos consigamos caminhar para um futuro mais ecológico e sustentável".

Também para Lucie Gomes, diretora-geral da Etikway, encontrar materiais sustentáveis a um custo razoável e garantir a sua disponibilidade no mercado é dos principais desafios, bem como o equilíbrio entre a sustentabilidade e a relação custo-benefício, "pois os materiais e processos de fabricação sustentáveis são muito mais caros", revela.

Esta empresa, que dá nova vida a ténis usados promovendo a economia circular, tem também em linha de conta a sustentabilidade social, "incluindo práticas trabalhistas justas, condições seguras de trabalho e bem-estar do trabalhador, especialmente nas cadeias produtivas globais, o que nos levou - além dos benefícios ecológicos, a optar por uma produção exclusivamente nacional", explica Lucie Gomes. A empresa quer contribuir para a transformação sustentável desta indústria recorrendo a materiais ecologicamente corretos, processos de fabrico responsáveis, promovendo a circularidade e auditando a transparência da cadeia de fornecimento.

A empresária considera, igualmente, que há um grande trabalho a fazer junto dos consumidores, nomeadamente, "educar sobre a importância de escolher calçados duráveis e atender à procura do mercado para se afastar da moda de consumo rápido e produtos descartáveis". Motivo pelo qual está a apostar na internacionalização da marca, de forma a conseguir chegar a um público que valorize mais as questões ambientais e sociais em toda a cadeia de valor.

À procura de talento

Informação, comunicação, divulgação e educação são necessidades que atravessam os diversos "stakeholders" do setor para se fazerem as necessárias transições. Por isso, Luís Onofre recorda que é necessário atrair uma nova geração de talento. Na fileira da moda, dados da Comissão Europeia reportam que até 2030 serão necessários 500 mil novos trabalhadores nos setores têxtil, vestuário e calçado na Europa.

"Temos bem noção dessa realidade. Temos em curso um "Roteiro do Conhecimento", com ações em 86 escolas das zonas de forte concentração da indústria de calçado (Guimarães, Felgueiras, Oliveira de Azeméis, Santa Maria da Feira e São João da Madeira). Trata-se de um projeto que visa desmistificar ideias preconcebidas e atrair os jovens para a indústria", destaca o líder da APICCAPS.

Também Maria Luísa Correia aponta nesse sentido. A transição do "cluster" para a sustentabilidade "requer uma aposta contínua na capacitação dos recursos humanos e na captação de novos talentos altamente qualificados, para responder aos desafios inerentes a esta transição". Requer ainda "uma maior aposta na produção nacional de materiais e produtos inovadores, sustentáveis e comercialmente competitivos, reduzindo a dependência dos mercados externos" e "inovação e novas tecnologias e processos".

A APICCAPS defende que aliar a competitividade à qualidade é o grande desafio da indústria portuguesa de calçado para o século XXI. Num mundo em que 88% da quota de produção de calçado está alocada à Ásia, Luís Onofre recorda que Portugal é um pequeno "player". "Entendemos que há espaço para reforçar o papel de um pequeno produtor europeu, especializado na capacidade de resposta rápida, que desenvolve produtos de excelência a preços justos, respeitando às convenções internacionais e os direitos humanos. Por esse motivo, estamos a fazer os maiores investimentos da nossa história, para reposicionar o setor nos mercados externos", refere.

Os números do calçado nacional  Integra 1.300 empresasAlberga 40 mil postos de trabalhoExporta anualmente 80 milhões de pares de calçado, no valor de 2000 milhões de euros, para 172 paísesSetor contribui anualmente com 1.400 milhões de euros para a balança comercial portuguesa
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