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Luís Almeida Capão: “O valor acrescentado da limpeza urbana é de 468 milhões de euros anuais”

Não se dá por ela quando é bem feita, mas causa repulsa e danos à sociedade quando não é bem gerida. Portugal tem um longo caminho a percorrer nesta matéria, com alterações necessárias em toda a cadeia de valor.

03 de Novembro de 2022 às 08:51
Luís Almeida Capão, presidente da Associação de Limpeza Urbana
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 No dia em que arranca o 4º Encontro Nacional de Limpeza Urbana (ENLU), que tem lugar em Loulé a 3 e 4 de novembro, Luís Almeida Capão, presidente da Associação de Limpeza Urbana (ALU), organizadora do evento, e presidente do Conselho de Administração da Cascais Ambiente, dá conta da importância do estado da limpeza urbana como um ativo de desenvolvimento das cidades, com capacidade para atrair negócios, captar turismo e manter os habitantes satisfeitos.

Portugal não está bem no figurino, com a maioria das pessoas a não se sentir responsável pela limpeza pública. Mas o ónus da responsabilidade cai sobre toda a cadeia de valor, que tem de gerir melhor e começar a valorizar os resíduos numa lógica de circularidade.

A limpeza urbana é essencial na cidade. Quais os principais problemas que Portugal enfrenta nesta matéria?

Há vários pontos complementares. A falta de informação sistematizada é provavelmente o principal problema para quem faz a gestão dos serviços de limpeza urbana. Até 2021, não havia nenhuma caracterização do setor, só através do estudo levado a cabo pela ALU tivemos um retrato fidedigno. Sabemos agora que o valor acrescentado destas atividades é de 468 milhões de euros anuais, que os custos por habitante rondam os 30 euros anuais, que existem 11 900 pessoas diretamente empregadas. Sem produção de conhecimento não se podem definir políticas eficazes de limpeza urbana.

A falta de formação específica é outro problema e é por isso que estamos a desenhar a primeira formação nacional dedicada à limpeza urbana. É dirigida a técnicos e responsáveis autárquicos nestas áreas, bem como a outras entidades com interesse na limpeza urbana e resíduos, e terá várias sessões de norte a sul do país, de modo que todas as autarquias e juntas de freguesia tenham a oportunidade de usufruir desta formação que terá lugar já em 2023.

Até à criação da ALU, não havia um fórum dedicado a estas problemáticas, nem um interlocutor representativo deste setor junto da administração central, o que diminuía a capacidade de influenciar as leis que enquadram a atividade. Hoje a ALU é chamada para participar em consultas públicas, na área dos biorresíduos ou das águas residuais, só para dar dois exemplos.

Para além do conhecimento sistematizado dos profissionais, há um problema de perceção de utilização do espaço público. A maioria das pessoas ainda não se sente ator da limpeza urbana. No 4º ENLU vai ser apresentado o "Estudo de caracterização dos resíduos de limpeza urbana", em que ficamos a saber que cerca de metade dos fumadores nas praias não coloca as beatas nos contentores adequados. Nós gostávamos de já estar naquela fase em que quem vai passear à praia e vê um plástico descartado, apanha-o e coloca-o ecoponto. Mas cabe à administração local dar boas razões aos habitantes para cuidarem das suas ruas, dos seus bairros e aqui já estamos a falar de questões de identidade e de retorno para o cidadão. A ALU aparece com o intuito de trabalhar em todos estes desafios e melhorar a salubridade das nossas cidades.

"A maioria das pessoas ainda não se sente ator da limpeza urbana"

Luís Almeida Capão

O país continua a depositar muito em aterro. Segundo o último Relatório do Estado do Ambiente, a deposição de resíduos urbanos biodegradáveis em aterro aumentou para 53%, em vez de descer à meta de 35% prevista no Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos. Porque estamos a ir no sentido contrário às metas?

As estimativas indicam que os resíduos biodegradáveis perfazem cerca de 50% do peso do que pomos no caixote do lixo. Podíamos ser ambiciosos e querer ter todo esse volume fora dos aterros. Mas para isso acontecer temos de ter soluções que sejam práticas para os munícipes e eficazes do ponto de vista económico. É um facto que a recolha dos resíduos biodegradáveis, cuja separação vai ser obrigatória a partir de 2024, é ainda muito incipiente no país.

Um dos grandes problemas é que a solução mais tradicional – a recolha dedicada com contentores e camiões específicos – é muito cara. Algumas autarquias iniciaram a recolha em locais limitados, com recurso a financiamento comunitário, mas quando estes fundos acabarem haverá verbas para continuarem estes projetos e alargá-los?

A crise que já vivemos vai agudizar-se e temos a obrigação de encontrar soluções inovadoras, à prova de orçamentos reduzidos. Em Cascais, Sintra, Oeiras e Mafra a recolha de biorresíduos já começou e não há contentores castanhos na rua, nem camiões exclusivos a fazer a recolha. Cascais liderou a implementação deste modelo, que está já em alargamento de forma a cobrir todo o concelho em 2023, e está a ter bons resultados.

Como funciona o sistema?

É muito simples. Os munícipes recebem um caixote e sacos verdes para colocarem os restos de comida, estes devem ser fechados e colocados nos contentores comuns quando estão cheios, e depois são recolhidos conjuntamente pelo mesmo camião. Na central de tratamento, os sacos verdes são separados através de uma tecnologia de triagem ótica. Os biorresíduos vão produzir energia elétrica e fertilizantes naturais de boa qualidade e com valor comercial.

Não podemos simplesmente achar que a economia circular, com a reutilização e prevenção, vai ser suficiente para cumprir as metas a que estamos sujeitos. Estamos a separar vidro, plástico e papel há anos e também aí estamos aquém da média europeia de reciclagem.

As tecnologias de valorização energética têm evoluído de várias formas nas últimas décadas, há por toda a Europa exemplos de centrais de produção de energia a partir de resíduos que são relativamente inócuas para as populações locais e que, sobretudo, têm um trade off muito interessante. As lixeiras foram encerradas, os sistemas de gestão criados e vários aterros estão a chegar ao fim da sua vida útil. A valorização energética tem de ser incrementada, não pode continuar a ser considerada uma heresia. Cada país tem de ser responsável pelos seus resíduos.

"A recolha dos resíduos biodegradáveis, cuja separação vai ser obrigatória a partir de 2024, é ainda muito incipiente no país"

Luís Almeida Capão

Os resíduos são também um dos handicaps dos portugueses. O REA diz que cada português produz 1,4 kg de lixo por dia. O que é necessário fazer para promover a mudança de comportamentos?

Todos temos de consumir melhor e consumir menos. E temos de trabalhar em conjunto com as indústrias produtoras para reduzir o desperdício e o desnecessário. Não podemos colocar todo o ónus da mudança no consumidor final. Há uma cadeia de valor que tem de mudar. Faz sentido pagar mais pela garrafa de plástico do que pela água que bebemos e de seguida deitar fora a garrafa? Faz sentido comprar cereais dentro de um saco de plástico e de uma caixa de cartão?

O excesso de embalagens tem de ser travado. E vemos a mesma questão noutras áreas, dos têxteis aos brinquedos, onde há um sem número de etiquetas, suportes e caixas – verdadeiras matrioskas – que são desnecessários. Depois temos a problemática das ligas, em que uma parte significativa das peças não é reciclável por causa da mistura de materiais.

A reutilização tem de ser promovida desde o design dos produtos e os fluxos disponíveis para reciclagem têm de corresponder aos produtos existentes – a isto se chama ecodesign, uma disciplina que pensa o produto para lá da sua vida útil e que prevê também o impacto que terá enquanto resíduo. São vertentes que envolvem muito mais a produção, a distribuição e a gestão de resíduos do que o consumidor final.

Mas há também uma sensibilização que é necessário fazer e que deve partir do princípio de que consumir menos não é sinal de ter pouco, que comprar em 2ª mão não é sinal de carência económica, são antes sinais de inteligência.

Advoga que a limpeza urbana tem impacto direto na atração de uma cidade. Qual o seu impacto económico?

A limpeza urbana é um motor para a transformação económica e social positiva das cidades. É uma condição que concorre para o aumento da competitividade, é um fator imediato de valorização, com capacidade para definir a boa ou má reputação de um lugar. Por exemplo, quando temos concelhos próximos com sistemas de limpeza urbana diferentes, fica sempre mais valorizada a cidade ou vila que tem uma gestão de limpeza urbana mais eficaz: é para lá que as pessoas querem ir viver.


É inegável que a atração de talento e a retenção de pessoas qualificadas nas cidades melhora o funcionamento das instituições: cidadãos mais conscientes exigem serviços melhores. E depois é uma bola de neve: onde há talento, há empreendedorismo, há fixação de negócios, o que origina riqueza que faz com que as cidades se desenvolvam ainda mais.

A limpeza urbana abrange varredura de ruas, lavagem, limpeza de dejetos caninos, cortar ervas, limpar grafitis, esvaziar papeleiras, controlo de pragas, etc. A maior parte destas atividades poderiam ser "evitadas" ou reduzidas se os cidadãos fossem mais cuidadosos. Em Portugal, as entidades públicas gastam cerca de 300 milhões de euros/ano para as atividades de limpeza urbana.

"A valorização energética tem de ser incrementada, não pode continuar a ser considerada uma heresia"

Luís Almeida Capão

Que soluções o país deve adotar para resolver os seus problemas de limpeza urbana? 

Formação, inovação, legislação e valorização. O programa de formação que estamos a desenvolver e outras iniciativas que temos em curso na ALU, como as campanhas de sensibilização que disponibilizamos para os nossos associados, os prémios, etc., são ferramentas que vão ajudar os municípios portugueses nesta mudança.

A inovação é igualmente fundamental e também no sentido de fomentar o conhecimento em torno do que existe nos mercados internacionais, quais as performances e desafios operacionais das inovações tecnológicas, estabelecemos parcerias com representantes das principais feiras internacionais de inovação e tecnologia nas áreas da limpeza urbana e recolha de resíduos: Tecma e Ifema (Espanha), Ecomondo (Itália), Pollutec (França) e IFAT (Alemanha).

Ainda no âmbito da inovação, consideramos que as entidades têm de conhecer muito bem o seu sistema, como funciona e custos associados, porque só assim pode implementar medidas de ganho de eficiência. A recolha de dados é essencial para melhorar o desempenho das atividades. No fundo temos que transformar a limpeza urbana num ambiente natural desenvolvimento das smart cities e fazer escolhas que reconheçam o conhecimento dos dados e cruzem com os desenvolvimentos da tecnologia. Há ainda a questão da valorização dos profissionais, que é muito importante.

O que pretendem alcançar neste 4º Encontro Nacional de Limpeza Urbana?

Queremos inspirar e instigar à inovação na gestão destes serviços públicos, através da partilha de boas práticas. Para falar sobre a recolha de dados e a importância da inovação e tecnologia, vamos ter Stephen Goldsmith, professor da Harvard Kennedy School (EUA), que além da vasta experiência académica associada às Smart Cities tem ainda experiência na gestão pública, tendo sido vereador no município de Nova Iorque e presidente da Câmara de Indianopolis.

Vamos ter boas práticas de sensibilização e mobilização social de Roterdão, Barcelona, Paris e Londres, por exemplo. Temos ainda mesas de debate em que apresentamos a tendência internacional de aprender a conviver com ervas nas ruas e a reutilização de águas residuais tratadas, um tema que é fulcral numa altura em que a seca é mais do que conhecida em Portugal e em que as alterações climáticas vão obrigar a revisitar esta tema.

Queremos que este seja mais um foco de aprendizagem, no sentido de os participantes saírem do encontro com a sensação de que estes dois dias de conferência acrescentaram valor à sua atividade. E cremos, cada vez mais, que a limpeza urbana é um fator fundamental do desenvolvimento das cidades.

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