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Tempestade Martinho, que afetou Portugal e Espanha nas últimas semanas, gerou mais de 14 mil sinistros no país.
Em cinco décadas, entre 1970 e 2019, o número de catástrofes meteorológicas e climáticas quintuplicou em todo o mundo. Nesse período, registaram-se mais de 11 mil desastres naturais que originaram mais de dois milhões de mortes e perdas económicas superiores a 3,64 biliões de dólares - é o equivalente a 202 milhões de dólares de prejuízos diários. E quem os paga? Em parte, as seguradoras e os Estados, mas também os cidadãos e os negócios.
Se o retrato não parece animador, é porque, de facto, não o é. A frequência e severidade dos fenómenos climáticos extremos está a aumentar em todo o globo, em grande medida à boleia das alterações climáticas. Um relatório da Agência Europeia do Ambiente aponta que as temperaturas médias na Europa deverão continuar a aumentar e que os extremos de calor cresçam a uma velocidade ainda maior - o Sul, de que faz parte Portugal, deverá ter períodos de seca cada vez mais frequentes e prolongados, enquanto o Norte do continente deverá assistir a um aumento da pluviosidade.
As alterações climáticas não são, porém, uma realidade regional, mas antes global e com efeitos cada vez mais difíceis de prever. Nos Estados Unidos, tempestades, furacões e incêndios de grandes dimensões têm, ao longo das últimas décadas, batido recordes em termos de impacto e, sobretudo, em termos de prejuízos causados.
"Made in USA": uma indústria em risco?
Se um cidadão ou pequeno negócio pretende salvaguardar o seu património e os seus investimentos, a solução costuma passar pela subscrição de um seguro. Quando o sinistro acontece, as seguradoras respondem com o pagamento de indemnizações, mas quando os prejuízos são muito elevados e abrangem milhares ou milhões de apólices, as empresas podem ficar em apuros financeiros. É aqui que entram os chamados seguros das seguradoras, ou seja, os resseguros - instrumentos que permitem partilhar responsabilidades com outras seguradoras.
"Se pensarmos naqueles furacões que passam na zona da Flórida, tipicamente vários por ano, deixam um rasgo de destruição brutal", assinala José Galamba de Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Seguradores (APS). O responsável aponta que, pelo nível elevado de risco, "há hoje zonas dos Estados Unidos em que os seguros são muito caros" e regiões em que é quase impossível conseguir subscrever um seguro. "Na Califórnia, existe neste momento um mecanismo público para ajudar nestas zonas de maior risco, de forma que as pessoas possam comprar um seguro", explica, detalhando que se trata de uma parceria público-privada para diminuir o peso sobre seguradoras e sobre o Estado.
E porque as seguradoras não são sacos de dinheiro sem fundo, o equilíbrio das contas tem ditado a saída de alguns mercados, como foi o caso de algumas zonas da Califórnia em resultado dos grandes incêndios. No verão do ano passado, a maior seguradora daquele Estado não renovou as apólices de 70% dos clientes. "Quando temos isto à escala global, é, de facto, um desafio brutal perceber como é que se constroem respostas que continuem a ser acessíveis às pessoas", reflete Galamba de Oliveira.
No entanto, o presidente da APS foca a sua preocupação num dado que considera particularmente relevante: a penetração de seguros nos Estados Unidos é maior do que a registada na Europa. "As estatísticas mostram que, na Europa, a parte segura das perdas económicas nunca ultrapassa os 25%. Portanto, isso significa que 75% são perdas assumidas pela sociedade e pelo Estado, mas não pelo seguro", diz.
Portugueses pouco protegidos
Portugal é um dos países europeus com maior risco climático, em grande medida pela sua localização geográfica que pode torná-lo, em parte, num deserto. Nos piores cenários climáticos para este século, as previsões indicam que o país poderá perder até 40% da precipitação e poderá sofrer ondas de calor mais frequentes e mais prolongadas, com as temperaturas na ordem dos 45 graus a tornarem-se mais habituais.
Margarida Corrêa de Aguiar, presidente da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), considerou, numa entrevista recente ao Negócios, que "temos um problema de ‘protection gap’" em Portugal - ou seja, "não temos suficiente oferta de cobertura seguradora para fazer face aos riscos ambientais". Para a líder do supervisor do setor, há "margem" para que as seguradoras nacionais possam oferecer novos produtos, embora haja "um problema de acesso ao produto em termos de preço e de gestão de risco".
José Galamba de Oliveira defende que "há uma capacidade que o setor ainda tem de poder assumir mais risco na Europa quando comparado com outros mercados", mas não tem dúvidas sobre o papel essencial que mecanismos de cooperação podem ter na resposta a eventos climáticos extremos.
"Estamos a falar de um sistema em que o setor segurador em Portugal, em conjunto com o Estado, assumiria um conjunto de responsabilidades para eventos extremos", diz. O instrumento é semelhante ao Consórcio de Compensação de Seguros, em Espanha, e a tantos outros em vários mercados europeus. "O que tem sido seguido em muitos países é a criação de instrumentos coletivos de proteção financeira, fundos financiados para segurar riscos catastróficos", confirma Margarida Corrêa de Aguiar. Há vários anos que Portugal discute a criação de um fundo sísmico para fazer face ao risco que o país enfrenta, mas que tem ficado em "standby".
A ASF entregou, nos últimos meses, uma proposta ao Ministério das Finanças para a criação do tal fundo sísmico que cubra riscos para as habitações, bem como para os setores da indústria e comércio. A ideia passa por tornar obrigatória a subscrição de seguros com cobertura sísmica, pelo menos em zonas consideradas mais vulneráveis.
"Essa deve ser a primeira fase [a criação do fundo sísmico], que deve ser, numa segunda fase, alargado o âmbito às catástrofes naturais", sugere a APS, que confirma ter propostas nesse sentido. Depois de cobertos sinistros como tempestades e inundações, o presidente da associação levanta a hipótese de criar mecanismos específicos para lidar com os prejuízos causados pelos fogos de verão. "Entendemos que isto está na agenda política, embora com esta mudança e indefinição sobre qual será o próximo Governo, tudo isto para um bocadinho. Andamos a falar nisto há 15 anos e neste momento somos dos poucos países europeus que não tem resposta", lamenta.
Na década de 1980, as perdas económicas na Europa relacionadas com tempestades e inundações somaram 8,5 mil milhões de euros - o valor subiu para 14 mil milhões na década seguinte, 15,8 até 2009 e 44 mil milhões até 2023. Na última década, em Portugal, as seguradoras pagaram cerca de 650 milhões em sinistros relacionados com fenómenos extremos. "É claramente uma situação que se tem vindo a agravar", remata José Galamba de Oliveira.
Se não fosse o Consórcio de Compensação de Seguros (CCS), que recebeu milhares de participações em poucos dias, o prejuízo para particulares e empresas poderia ter sido muito mais elevado por não ser coberto por qualquer seguro. Este sistema público-privado entra em ação apenas em última instância, quando as seguradoras não têm oferta ou quando essa oferta tem um prémio muito elevado. Só em infraestruturas municipais, de abastecimento de água e saneamento básico, as inundações provocaram estragos no valor de 2,2 mil milhões de euros, montante assumido pelo Estado central.
O CCS, criado em 1954, cobre danos materiais e pessoais em eventos extraordinários, como sejam catástrofes naturais ou atos de violência civil. Para que seja possível receber indemnização, é necessário que os danos registados estejam cobertos por uma apólice de seguro válida que inclua a sobretaxa da CCS - entre 0,009% e 0,012% nos seguros de propriedade (habitação e comércio), cerca de 3,5% nos seguros de automóvel e entre 0,005% e 0,01% em seguro de vida e de acidentes.