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Quando falamos de inovação, tecnologia e inteligência artificial (IA), raramente as associamos à economia social, mas tudo muda quando um advogado, um presidente de uma IPSS e um CEO da área de "venture capital" se juntam.
Foi da necessidade de apoiar instituições particulares de solidariedade social (IPSS) - e não só -, a navegar no complexo universo da legislação portuguesa, que nasceu um "chatbot" inovador. A ferramenta baseia-se num modelo de IA que responde automaticamente - por Whatsapp - a dúvidas relacionadas com requisitos da Segurança Social para este tipo de instituições.
Em conversa com o Negócios, Gonçalo Simões de Almeida, advogado e sócio da KGSA, Tiago Albaroado, presidente da Fundação Unitate, e Ricardo Macedo, "founder" e CEO da Laika Ventures, referem em uníssono que há uma grande falta de inovação e investimento no setor social. O novo projeto, criado em conjunto pelos três, é um exemplo do que pode ser feito.
"Quantos metros quadrados tem de ter um quarto para um idoso?". "Que serviços presta uma creche?". Estes são apenas alguns exemplos de perguntas que podem ser colocadas nesta nova ferramenta. Mas as questões podem tomar formas mais complexas e estar relacionadas, por exemplo, com requisitos legais presentes nos contratos de prestação de serviços.
Advogado e sócio da KGSA
As respostas do "chatbot" são alimentadas por uma obra escrita por Gonçalo Simões de Almeida, lançada antes da pandemia e intitulada "Guia das Exigências em Estabelecimentos de Apoio Social e IPSS". Sem saber, Simões de Almeida tinha dado ao conteúdo do livro a estrutura necessária para criar um "chatbot". Como explica o advogado, "o utilizador pode ser uma pessoa que trabalha numa cantina de uma IPSS, um terapeuta ocupacional ou um administrativo, portanto o modelo tem que ser treinado para conseguir comunicar com essa pessoa".
CEO da Laika Ventures
A ferramenta foi desenvolvida pela Laika Ventures em regime "pro-bono" e o seu uso é totalmente gratuito, estando já a ser testado por dezenas de instituições. Como explica Ricardo Macedo, o projeto é uma oportunidade para "mostrar que a IA pode ter um papel pouco intrusivo e super benéfico para a sociedade". Nesta linha, Tiago Albaroado sublinha que "estamos num ponto em que o setor social representa uma fatia muito significativa da atividade económica" e qualquer investimento canalizado para esta área terá um "impacto muito expressivo".
Setor social multiplica por quatro cada euro investido
Segundo Albaroado, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) fez um estudo que mostra que o setor social consegue multiplicar por quatro cada euro investido, por ser uma área "altamente capilar, com muitos recursos e com uma capacidade de reinventar grande (...)". No entanto, ressalva, é importante que a "sociedade tome consciência das potencialidades que o setor tem", na medida em que esta área "tem os instrumentos e as ferramentas, falta é a capacidade de alavancá-las". "E isso só através da parte financeira é que é possível, de dinheiro investido no setor."
Já para o sócio da KGSA, também a excessiva burocracia e necessidade de um permanente escrutínio por parte da Segurança Social a estas instituições funciona, muitas vezes, como um entrave ao investimento e a novos projetos. "Temos uma burocracia e regulamentação em excesso que estrangula o funcionamento normal das instituições, mas que, em simultâneo, afasta aqueles que seriam bons dirigentes para estas instituições", refere o advogado.
Em jeito de exemplo, Simões de Almeida refere um recente projeto de construção de um lar de idosos - financiado, em parte, pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) - no qual faltava espaço numa das casas de banho. Por esta razão, o projeto não avançou. O advogado destaca que este tipo de consequências é recorrente e preocupante "quando temos notícias todos os dias sobre a falta de vagas nas estruturas residenciais para idosos". "A burocracia entra e estrangula a nossa capacidade de responder a problemas sociais", acrescenta.
Presidente da Fundação Unitate
A pensar numa solução para estes entraves, Ricardo Macedo refere que "tudo o que sejam processos e burocracias, são um desafio que pode ser facilmente resolvido com IA ou com qualquer tecnologia de ‘machine learning’". Para o líder da Laika Ventures, "a burocracia foi criada porque o ser humano é muito mau a seguir processos", sendo esta simplificação e a busca por maior eficiência um dos propósitos por detrás deste "chatbot". Naquele que é o primeiro projeto desenvolvido pela Laika Ventures para o setor social, o CEO fala no "triângulo operacional" que permitiu criar esta ferramenta: entre a economia social, os advogados e a tecnologia.
Tiago Albaroado é responsável por dar a conhecer a ferramenta às instituições do setor social, e recai sobre Gonçalo Simões de Almeida, enquanto advogado, analisar na íntegra as dúvidas das IPSS. Já Ricardo Macedo e a sua equipa são responsáveis por montar o modelo de IA e garantir o seu funcionamento.
Sobre planos daqui para a frente, o presidente da Fundação Unitate defende que o desenvolvimento da ferramenta deve "inspirar projetos futuros". "O setor social tem a ganhar, mas quem tem mais a ganhar são as pessoas que beneficiam" deste tipo de iniciativas, sublinha.
Já Ricardo Macedo desafia "o Governo e as associações a perceberem como é que podem melhorar processos e tomadas de decisões", já que diz ter a certeza de que "o custo de adoção de novas tecnologias é só uma fração do que podem poupar todos os anos". Para o CEO da Laika Ventures é aí que está o verdadeiro potencial da utilização de IA generativa.
Pilar social é muitas vezes esquecido no ESG
As políticas de ESG estão intrinsecamente ligadas ao funcionamento das empresas e aos diversos setores de atividade de uma economia. E o pilar social é muitas vezes esquecido pelas estruturas empresariais, defende o trio. Impõe-se, então, a questão: o que pode ser feito para mudar isto? Pegando no exemplo do "chatbot", Simões de Almeida lembra que "a parte do ‘S’ no ESG para as empresas, tem sobretudo a ver com transferência de conhecimento e recursos".
E foi precisamente isso que fez a Laika Ventures e a KGSA neste projeto. Do lado da "venture capital", foi transferido conhecimento e recursos no âmbito da criação do modelo de IA. No que toca à sociedade de advogados, em vez de continuar a ser cobrado um serviço de consultoria jurídica às IPSS, a informação está agora presente (de forma gratuita) na ferramenta.
Sobre este tema, na ótica do sócio da KGSA, há que ter cuidado com o fenómeno de "social washing". Este conceito envolve a tentativa das empresas de mascarar os impactos sociais negativos, apresentando-se como socialmente responsáveis. É semelhante ao conhecido termo "greenwashing", mas centra-se em informações enganosas sobre a responsabilidade social e não em alegações ambientais. Por esta razão, "a transparência de recursos e de informação" é da maior importância, remata Simões de Almeida.