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Luísa Ribeiro Lopes: “A utilização do telemóvel pode ter um impacto ambiental tão grande como viajar de carro”

Um dos sonhos de Luísa Ribeiro Lopes é ver a ‘.PT’ a liderar uma plataforma que reunisse todos os números do digital. Porque, diz, sem dados não conseguimos ter políticas públicas e mudar o país.

18 de Dezembro de 2024 às 12:30
Pedro Catarino
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    Bilhete de identidade

    Idade: 58 anos 
    Cargo: .PT, Presidente (desde 2013) DECO, membro da Direção Nacional (desde 2022) Conselho Consultivo do CDAP - Conselho para o Digital na Administração Pública (desde 2024) INCoDe.2030, Coordenadora-Geral (2021-2023)
    Formação: Licenciada em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    As engenharias eletrotécnicas, de informática, inteligência artificial e de dados estão com 18% de raparigas, valores equivalentes aos que se registavam há duas décadas. O mercado das designadas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) tem 21% de mulheres, mas apenas 8% estão na liderança. Dados partilhados pela presidente da ‘.PT’, entidade que gere o domínio .pt. Luísa Ribeiro Lopes é a convidada desta semana das "Conversas com CEO" integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30, projeto do qual faz também parte enquanto júri do Prémio. Numa conversa de mais de meia hora, aqui editada e que pode ser ouvida na íntegra em podcast, falamos ainda dos desafios do mundo digital em matéria ambiental e no combate à desigualdade gerada pela falta de competências. A educação, defende, é a chave, quer para um consumo ambientalmente mais responsável do digital como para uma maior inclusão.

    Como é que uma jurista se interessa por tecnologia?
    Tirei o curso de Direito, fiz o estágio, exerci advocacia e, um dia, a ler o Expresso Emprego vi que havia uma vaga na empresa de eletricidade nos Açores. Era nova, podia fazer essa aventura e fui. Estávamos no advento da Internet, mais precisamente da intranet, e a ideia era desmaterializar o trabalho que se fazia. Os Açores, como todos sabemos, é um arquipélago com nove ilhas e era importante desmaterializar. O Conselho de Administração perguntou-me se queria fazer parte desse grupo de trabalho, tive de estudar e fiquei completamente fascinada com o que o digital podia fazer para tornar a vida muito mais simples para quem trabalhava numa empresa com tantos escritórios tão dispersos geograficamente. Fiz parte desse grupo de trabalho e a partir daí fui sempre chamada por isso.

    Está a doutorar-se em igualdade de género, com o tema da sub-representação das mulheres nas profissões tecnológicas. Nessa sua investigação já chegou a alguma conclusão?
    É ainda muitas vezes a única mulher na sala.

    Sou, muitas vezes. Esta é uma realidade inquietante e não estamos a ver muitos progressos. Já tenho algumas conclusões. O que acontece é que existem estereótipos de género desde a infância, que nos são incutidos de forma inconsciente pela família e educadores, e nos levam a pensar que existem áreas de mulheres e de homens. Isto faz com que as raparigas considerem que a área tecnológica não é para elas, é para eles. O estudo que tenho feito já me demonstrou que as raparigas que optam por estas áreas têm pais ou mães na área. Mas são muito poucas. Temos neste momento cerca de 18% de raparigas nas engenharias eletrotécnicas, de informática, inteligência artificial e dados, valores muito comparáveis com os de há 20 anos. Houve algum progresso entre 2007 e 2009, mas voltámos outra vez aos mesmos números. Não estamos a conseguir descolar. Também está a acontecer nos outros países. Aliás, Portugal até está ligeiramente acima da média europeia.

    E existem políticas públicas para corrigir essa situação?
    Temos um quadro legislativo que até é feminista, promovendo a igualdade de género nas suas várias dimensões. Mas se não começarmos a ter mais mulheres a optarem pela formação nas áreas tecnológicas, não vamos conseguir. Foi já anunciado pela ministra da Juventude e Modernização, que tem a área do digital, um grande programa de mulheres nas TIC a ser lançado a partir de janeiro de 2025, de que também faço parte enquanto embaixadora. A ideia é começar desde o pré-escolar a trabalhar estas matérias. Temos também de desconstruir, de mostrar que é possível chegar lá, de desmistificar a síndrome do impostor típico das mulheres. Temos 21% de mercado TIC no feminino, mas as lideranças são 8%. Precisamos urgentemente de ter mais pessoas no mercado TIC e estamos a desperdiçar metade da população.

    Explique-nos o que faz o ".PT"?
    Cada país, cada território tem o seu domínio de topo. Portugal tem o ".PT". Nós fazemos o registo, gestão e manutenção de todos os domínios que estão sob o ccTLD, o Country Code Top-Level Domain (ccTLD), do nosso país, que é Portugal, que é o ponto PT.

    E que desafios têm?
    Há 10 anos qualquer empresa, entidade ou projeto queria ter o seu domínio na internet. Hoje está muito vulgarizada a utilização dos ‘marketplaces’ e das redes sociais. O nosso desafio é explicar que é completamente diferente ter um domínio em ‘.pt’  ou um genérico como ‘.com’.

    Mas qual é o principal desafio que tem pela frente?
    O primeiro é termos uma infraestrutura técnica resiliente e cibersegura. Todos os dias existem ataques diferentes e a inteligência artificial veio trazer novos ataques. Temos um centro de operações de segurança do Ponto PT dotado de meios técnicos e humanos. Temos de ter um ecossistema que trabalhe em rede, nomeadamente com o Centro Nacional de Cibersegurança, com as polícias, com os nossos agentes de registo, para podermos detetar rapidamente qualquer situação que possa pôr em causa o sistema. E se tivermos uma catástrofe natural em Lisboa e o nosso data center em Lisboa desaparecer, a maneira como está distribuído os secundários do ‘.pt’ pelo mundo inteiro faz com que todos os domínios continuem a funcionar. Um outro desafio é o da sustentabilidade.

    Aquilo que o ‘.PT’ faz é privilegiar os data centers que usam energia sustentável.
    E um dos maiores problemas é o consumo de energia. Que planos existem para mitigar esse problema que se agrava com a IA?
    Os planos têm de ser feitos e pensados em termos globais e depois europeus, com a criação de data centers mais sustentáveis. O consumo energético mundial do digital é brutal e tende a duplicar ou mesmo a triplicar até 2030 com a utilização da inteligência artificial.  A computação avançada e a quântica vão utilizar um nível de energia incomparável. Aquilo que o ‘.PT’ faz é privilegiar os data centers que usam energia sustentável.

    Havia o grande exemplo da StartCampus que agora está envolvida num processo judicial...
    E vai avançar. Poderá estar a acontecer, no norte do país, um data center com recurso a energia sustentável. E a ideia é fazer uma educação para uma utilização mais sustentável da tecnologia. Há projetos nesse sentido.  Sei que se fizer 5 pesquisas em vez de 10, estou a ser mais sustentável.

    Já alguma vez perguntou às pessoas se sabem quanto estão a consumir de energia cada vez que enviam um mail?
    Já. Fazemos estas perguntas e não têm consciência. Provavelmente para a maior parte das pessoas vai ser uma surpresa pensar que a utilização do telemóvel pode ter um impacto ambiental tão grande como viajar de carro. Mas o digital pode também ser a forma de sermos mais sustentáveis. Aliás, um projeto que o ano passado ganhou um dos prémios da sustentabilidade usa a inteligência artificial para a rega.  A IA, os territórios inteligentes, tudo o que é digital ao serviço da mobilidade faz com que sejamos mais sustentáveis. Hoje, por exemplo, podemos trabalhar em casa.

    Não é só dar acesso [ao digital] É preciso dar as competências e, no caso delas não existirem, ter quem possa, junto das populações, ajudá-las (…).
    Qual é que é o estado da transição digital em Portugal?
    Há uma avaliação europeia desde 2017 agrupada em quatro áreas: as competências digitais, ou seja, as pessoas, a administração pública, as empresas e as infraestruturas. Portugal tem comparado muito bem em termos de infraestruturas e nos serviços que a administração pública disponibiliza. Nas empresas, temos pequenas e microempresas com muita dificuldade. Mas a área que mais me interessa porque é a mais difícil e aquela que vai fazer a diferença são as pessoas. Partimos em 22º lugar em 2017 e neste momento estamos em 14º lugar na União Europeia. Fez-se um progresso muito grande, mas ainda há muito para fazer. Temos cerca de 56% de pessoas com competências digitais básicas. Mas, dados do INE, há perto dos 88% de pessoas que nos últimos três meses utilizaram a internet.

    Não se está a exagerar a impor o digital, na banca, nos serviços públicos? Não há aqui também um trabalho de combate à desigualdade?
    Sem dúvida. Não é só dar acesso. É preciso dar as competências e, no caso delas não existirem, ter quem possa, junto das populações, ajudá-las a ter a mesma qualidade de vida e o mesmo acesso aos serviços, mesmo que não sejam públicos. Temos um país muito envelhecido e temos de apoiar os mais velhos que estão longe das grandes cidades e aqueles que vivem de forma isolada. E temos de apoiar incluindo digitalmente, mas sobretudo incluindo socialmente.

    Identifica projetos inovadores nesta área m Portugal?
    Sem dúvida. Um é o projeto "Eu Sou Digital", em que formamos voluntários jovens para ensinar os mais velhos a dar os primeiros passos no digital. É do MUDA (Movimento para uma Utilização Digital Ativa) que tem muitos parceiros, um dos quais nós. Outro é o Upskill liderado pela APDC que junta o IEFP com as grandes empresas. É dirigido a pessoas em subemprego ou desempregadas com qualificações digitais avançadas, que possam ir para os institutos politécnicos ou para universidades tendo depois a garantia de emprego nestas grandes empresas. Já formou algumas centenas de pessoas, hoje estão empregadas a trabalhar nestas áreas. E depois temos o programa "Engenheiras por um Dia", que trabalha basicamente na desconstrução dos estereótipos de género nas áreas das engenharias. É um programa altamente inovador e que já ganhou alguns prémios lá fora.

    Terminaríamos com o exercício ‘eu tenho um sonho’. Se tivesse uma varinha mágica o que é mudaria?
    Eu tenho dois sonhos. Um, em que era mesmo necessária uma varinha mágica, era fazer com que mulheres e homens pudessem ter as mesmas oportunidades. Os números dizem-nos que vamos levar qualquer coisa como 130 anos para conseguir. As guerras e as situações disruptivas fazem com que retrocedamos. E vemos hoje alguns líderes mundiais, nomeadamente nos Estados Unidos, que vão fazer com que esse retrocesso ainda seja maior. Depois tenho outro sonho, que não é necessária uma varinha mágica. Era conseguir liderar um observatório para o digital, onde qualquer um de nós, a qualquer altura, pudesse entrar numa plataforma e saber quantas pessoas trabalham no digital em Portugal, quantas empresas têm um domínio, estão no digital a vender e quanto vendem, enfim termos dados. Existem muitos dados, mas distribuídos por várias entidades. Deixo aqui esta ideia quase louca, mas possível, que é o ‘.PT’, enquanto entidade transparente, independente, que lidera o ecossistema digital em Portugal, poder juntar tudo numa plataforma única. Sem dados e sem o conhecimento, não conseguimos ter políticas públicas e mudar o país. Estamos cá todos para fazer a nossa parte, ainda que pequenina, para mudar o país.
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