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Legenda: Gravação do podcast "Sustentabilidade em Ação"
com Marta Neves, Filipa Pantaleão e Ana Isabel Trigo Morais.
O sistema de gestão de resíduos urbanos, como o conhecemos atualmente, tem mais de duas décadas de existência. No entanto, esta é uma área em que persistem desafios importantes que põem em questão a capacidade do país para atingir as metas de reciclagem e os indicadores de sustentabilidade com que se comprometeu, e para fazer avançar a economia circular.
No segundo episódio do podcast "Sustentabilidade em Ação", integrado na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30, Filipa Pantaleão, secretária-geral do BCSD Portugal, conversou com duas responsáveis de organizações com papéis fundamentais nesta área: Ana Isabel Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, entidade que gere a reciclagem de resíduos de embalagens, e Marta Neves, administradora da EGF e presidente da Comissão Executiva da Valorsul, empresa que atua no tratamento e valorização de resíduos em Portugal. Uma conversa que passou pela necessidade de mudança das políticas públicas, de incentivar uma maior consciência cívica, e de apostar na inovação tecnológica e na colaboração entre os atores do sistema.
Ana Isabel Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde.
Na verdade, nunca cumprimos
Na verdade, como se apressou a esclarecer Ana Isabel Trigo Morais, Portugal nunca cumpriu as suas metas globais de reciclagem. No fluxo específico da reciclagem de embalagens, gerido pela Sociedade Ponto Verde, o país conseguiu cumprir as metas europeias nos últimos anos, com a exceção das embalagens de vidro. No entanto, Portugal continua a falhar as metas globais de reciclagem. "O que tem impedido Portugal de cumprir estas metas têm sido todos os outros fluxos, desde logo o fluxo dos resíduos indiferenciados e outros fluxos específicos com taxas de recolha muito reduzidas, que não permitem ao país cumprir as metas globais", explica a CEO da Sociedade Ponto Verde. E mesmo no caso da reciclagem de embalagens, que está atualmente nos 57,8%, dificilmente será alcançada a meta de chegar aos 65% em 2025, refere.
Uma avaliação que merece a concordância de Marta Neves, que salienta que o ponto de partida do país nesta área foi muito baixo e que Portugal já está atrasado para cumprir as metas definidas para 2030. "Para termos uma ideia do desafio: entre 2015 e 2024, a recolha seletiva cresceu 63%, mas, ao mesmo tempo, a produção de resíduos indiferenciados também aumentou, quando devia ter reduzido", explica. Ou seja, "mesmo melhorando a reciclagem, continuamos a produzir mais lixo". E isto demonstra, na sua opinião, "que a mudança não pode ser só técnica ou financeira, tem de ser cultural".
A magia do lixo
Para esta responsável, "há ainda a ideia da ‘magia do lixo’, deixamos o saco na rua à noite e, de manhã, desapareceu. Poucos param para pensar para onde foi ou quanto custou o processo". Em muitas áreas, considera, "só há mudança quando há incentivos ou penalizações. Vimos isso com o uso do cinto de segurança ou com o descartar de beatas para o chão". Ou seja, "temos de ter mecanismos que penalizem e que incentivem a mudança para termos uma evolução muito necessária nos hábitos", defende.
Marta Neves, administradora da EGF e presidente da Comissão Executiva da Valorsul.
Antecipar e não apenas reagir
Para as duas responsáveis, outro grande entrave à transformação da área da gestão de resíduos, para conseguir fazer face aos desafios, é a falta de mediação, articulação e colaboração entre os diferentes agentes do setor. O que não é facilitado por políticas públicas pouco estáveis e por demasiadas mudanças legislativas, que tornam difícil a existência de uma estratégia consistente para o setor. Para Ana Isabel Trigo Morais, "o sistema precisa de mais coordenação e de um compromisso firme com o investimento necessário para transformar o sistema". Ou seja, "não podemos continuar apenas a reagir às insuficiências, mas sim passar a antecipar soluções que criem verdadeiro valor ambiental", conclui.
Modelo carece de reforma
Neste contexto, para estas responsáveis, o setor carece de mudanças urgentes num modelo de sistema de gestão de resíduos que, essencialmente, permanece inalterado desde 1997. Como vetores prioritários de mudança são apontados o modelo de financiamento, as prioridades e as contrapartidas para um setor que, segundo a Associação Nacional de Municípios, irá necessitar de seis mil milhões de euros de investimento nos próximos anos para atingir as metas de tratamento e reciclagem de resíduos. Neste contexto, a falta de financiamento público direcionado para as áreas com maior potencial de evolução, como a Área Metropolitana de Lisboa, é um problema adicional. E a falta de uma estratégia coordenada e de uma visão clara sobre onde investir torna o processo de mudança ainda mais complexo.
Filipa Pantaleão, secretária-geral do BCSD Portugal.
Walk the talk
Para assegurar o futuro, e numa nota mais positiva, a mudança está em curso ao nível das empresas. Quer para Marta Neves, quer para Ana Trigo de Morais, a inovação tecnológica será um fator crucial. Aliás, as parcerias mais recentes entre a Valorsul e a Sociedade Ponto Verde incidem precisamente nesta área, com projetos de robotização e de aplicação de inteligência artificial que prometem melhorar a triagem e o tratamento de resíduos, uma área que depende muito ainda de mão de obra cada vez mais escassa. Para Ana Isabel Trigo Morais, "esta é uma área na qual o setor tem de fazer muito mais, tem de walk the talk, e agir de forma mais concreta e eficaz". E dá como exemplo o Programa Re-source, promovido pela Sociedade Ponto Verde, e dedicado a lançar projetos de inovação na área da gestão de resíduos, nomeadamente com as concessionárias que integram a EGF.
Em conclusão, a mudança de mentalidade dos cidadãos, a inovação tecnológica e a colaboração entre todos os intervenientes serão fundamentais para enfrentar os desafios que o país enfrenta na gestão de resíduos. E o modelo atual de gestão de resíduos precisa de evoluir para garantir que Portugal cumpre as suas metas de sustentabilidade com a participação ativa de cidadãos, empresas e governos.