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O aquecimento global está a ser mais acelerado do que mostraram os modelos e temos de reduzir as nossas emissões de dióxido de carbono a uma velocidade sem precedentes. Para isso temos de mudar comportamentos e apostar seriamente na reflorestação para conseguirmos o que tecnicamente ainda é possível: limitar o aumento da temperatura da terra em 1,5 graus centígrados relativamente à era pré-industrial. Assim o diz Joana Portugal Pereira, especialista em alterações climáticas. Convidada das "Conversas com CEO" antes do início da COP28 que termina agora a 12 de Dezembro, a entrevista de mais de meia hora, integrada na iniciativa Negócios Sustentabilidade, pode ser ouvida na íntegra em podcast. Coautora de documentos das Nações Unidas, entre eles o recentemente divulgado ‘Emissions Gap Report’, alerta para os riscos que enfrentamos e para o que temos de fazer, considerando que é arriscado depositarmos esperanças em saídas como a remoção de carbono.
Tem uma história académica e profissional muito rica. Porque se interessou por estas áreas das alterações climáticas?
A questão do ambiente sempre me interessou muito e despertou uma imensa curiosidade. Trabalhamos temas muito transversais em diferentes áreas de conhecimento e procuramos compatibilizar diferentes interesses para um bem comum. Desde que era aluna do liceu sempre me interessei muito por estas temáticas e problemáticas.
E o que a levou até Tóquio para fazer o doutoramento?
Primeiro, um grande e generoso programa de financiamento para fazer o meu doutoramento, com uma bolsa que me permitia ter uma grande segurança para estar focada a debruçar-me sobre o meu trabalho de investigação. Isso acrescido ao facto de a Universidade de Tóquio ser líder mundial na área de engenharia do ambiente.
Quais os principais impactos das alterações climáticas?
Nós estamos na verdade a brincar com o fogo, não é? Estamos a mexer com o sistema regulatório planetário de aquecimento global. Vivemos já um aquecimento global com níveis de atualidade superiores a 1,1º centígrados, comparativamente com níveis pré-industriais. O aquecimento global leva-nos a uma maior frequência e intensidade de eventos extremos. Os eventos extremos são uma das principais fontes de preocupação no presente. Vamos ter de nos adaptar a viver com ondas de calor mais intensas e mais longas. Vamos ter de nos adaptar a viver com regimes de pluviosidade muito mais variáveis: períodos de seca extrema versus grandes tempestades e enchentes. E temos de nos preparar do ponto de vista de saúde pública e também de infraestruturas que permitam manter o nosso bem-estar, qualidade de vida e menos impactos económicos.
Acabou por falar em ‘adaptar’. E ainda vamos a tempo de, por via da mitigação, evitar um colapso climático e a subida para além de 1,5°?
Sem dúvida. Tecnicamente é possível e muito desejável. Institucionalmente é um grande desafio. Mas, enfim, eu sou técnica. Temos, na verdade, uma probabilidade de 50%, talvez menos ainda, de atingirmos o grande marco de 1,5° de aquecimento global nesta década. Os últimos 8 anos foram os mais quentes desde que há registos e notícias recentes mostram que no mês de setembro, globalmente, atingimos o marco de um grau Celsius. Portanto, o aquecimento global está a ser mais acelerado do que mostraram os modelos climáticos mais cautelosos do IPCC ao longo destes últimos seis ciclos de avaliação. Os nossos estudos mostram todos, inequivocamente, que é muito menos dispendioso mitigarmos hoje, reduzindo as nossas emissões e alterando os nossos padrões de consumo, do que nos adaptarmos mais tarde, inclusive para possíveis graus de aquecimento global para os quais a ciência ainda hoje não tem respostas quanto aos impactos.
Ou seja, é mais barato mitigar do que adaptar. O que é que transformava imediatamente para moderar esta subida na temperatura?
O Relatório Especial do IPCC sobre 1,5° foi categórico ao indicar que precisamos de implementar todas as estratégias de mitigação a uma grande escala e também acelerá-las muito rapidamente. Falamos de descarbonizar a geração de energia elétrica, reduzir para os mínimos residuais a combustão de combustíveis fósseis, alterar o nosso método de produção e de consumo de alimentos e, a nível individual, alterar os nossos padrões de mobilidade. Na verdade, não nos podemos dar ao luxo de escolher. Simultaneamente é também essencial reduzir as taxas de desflorestação, sobretudo no sul global. E aumentar o potencial de sumidouro das nossas florestas, o que também se torna cada vez um desafio maior, devido ao elevado risco de incêndios florestais.
Não é suficiente a velocidade à qual estamos a mitigar?
Não, claramente não é suficiente. Um relatório recente avalia 42 indicadores de ação climática e apenas um mostra que estamos no caminho certo e à velocidade necessária: a venda de veículos elétricos está par com o necessário para reduzirmos as nossas emissões de dióxido de carbono compatíveis com 1,5°. Mas, por exemplo, a taxa de redução da queima de carvão, uma das principais fontes de dióxido de carbono, tem de ser acelerada em sete vezes ainda esta década. No controlo de desflorestação e perda de ecossistemas naturais, temos de acelerar a nossa taxa quatro vezes mais. Temos também de alterar as nossas práticas de produção agrícola para termos menos área impactada e aumentarmos a eficiência do uso de fertilizantes. É de facto um grande desafio e em todas as metas e indicadores estamos muito fora da rota.
O que é considera mais importante, a regulação ou a sinalização, através dos preços, com o princípio do poluidor pagador?
As duas coisas têm de andar passo a passo. No fundo, o chicote e a cenoura. Temos de ter um sistema regulatório muito claro para que grandes poluidores tenham limites de emissão e metas. É necessário termos também sistemas de mercado, porque o mercado não se autorregula. Por exemplo, mercados de carbono que já são vigentes em algumas regiões do planeta. Talvez a prioridade e um desafio é uma grande revisão fiscal para internalizarmos as externalidades ambientais. Na maioria das vezes, o preço final do consumidor não reflete o custo ambiental dos produtos que consumimos.
Uma das áreas que estuda é a captura de carbono. Pode ser uma das soluções?
Se queremos levar a sério a importância e necessidade de reduzir o aquecimento global em níveis bem abaixo de 2° ou 1,5°, as estratégias de remoção de dióxido de carbono são essenciais, pelo menos do ponto de vista teórico dos nossos modelos de otimização a menor custo. Estamos neste momento com 57 giga toneladas de CO2 equivalentes anuais. Necessitamos de reduzir as nossas emissões em 40% nesta década para atingirmos uma neutralidade de emissões até meio do século, e temos sinais muito contrários da economia. As nossas emissões de 2021 para 2022 aumentaram mais de 1%. Neste momento já temos estratégias de remoção do dióxido de carbono implementadas com base no sumidouro biológico, o aumento da área florestal.
Esse seria um caminho, os sumidouros de carbono através da reflorestação?
Anualmente, capturamos dióxido de carbono por volta de 2 giga toneladas ao ano. Temos de aumentar essa área e esses programas. E, caso não consigamos reduzir as emissões, temos também de promover práticas de remoção de dióxido de carbono, por exemplo, com captura direta em sistemas de bioenergia. O grande desafio é que estamos a falar de custos de abatimento de dióxido de carbono que rondam milhares de dólares, entre 700 a 1000 dólares a tonelada. O que é muito mais dispendioso do que, por exemplo, alterarmos as nossas práticas de mobilidade urbana e implementarmos práticas mais eficientes nas nossas indústrias. Estamos a adiar um problema e a pensar em soluções muito futuristas, muito incertas, com desafios tecnológicos e custos muito superiores a outras práticas mais conhecidas, com menos desafios de inovação. Por outro lado, estamos também a ver sinais muito contraditórios, porque não vemos financiamento nem políticas públicas focadas nessas práticas de remoção de dióxido de carbono.
E o que se vai fazer a esse carbono?
Estudos preliminares mostram que o planeta tem reservas geológicas onde esse dióxido de carbono pode ser capturado de forma permanente e durável, mas nada é livre de riscos. Na verdade, estamos a falar da necessidade de uma nova arquitetura institucional e global, porque muitas vezes as reservas geológicas disponíveis não são onde há potencial de captura, maior financiamento e até maior responsabilidade histórica para tal. Colocarmos todas as nossas esperanças nestas estratégias que são tão futurísticas e têm tantos desafios parece-me muitíssimo arriscado.
Tem participado no relatório das Nações Unidas, o ‘Emissions Gap Report’. Quais são as principais conclusões?
O relatório mostra que estamos no mau caminho crescente de atingirmos um aquecimento global, próximo de 3°C, entre 2,5°C. a 2,9 °C. Mostra-nos que temos de reduzir as nossas emissões a uma velocidade sem precedentes, a uma escala nunca implementada, pelo menos na história moderna, desde que há registos. Esta COP é muito importante para que todas as partes cheguem a um consenso para aumentar a ambição de redução de emissões de gases de efeito de estufa.
Quando olha para as COP, e sobretudo para esta última, tem expectativas de mudanças, quando é realizada num país que obviamente não quer acabar com a energia fóssil?
Este ano vivemos um desafio acrescido, exatamente por esse motivo. Falamos de um problema global com impactos locais. Se não tivermos uma orquestra global a caminhar e a debater na mesma mesa de negociações, o hemisfério norte e sul, com grandes desafios distintos de desenvolvimento, não é possível chegarmos a um consenso. Nesta COP não há grandes expectativas, mas estaríamos bem pior sem ela. É importante termos instituições internacionais fortes que consigam criar consensos à escala global.
Se tivesse poder para mudar, o que é que mudava? Provavelmente obrigava todos a andar de bicicleta?
Sim. Se mandasse, na verdade, criaria oportunidades para todos de forma inclusiva. O meu modelo de mobilidade é à base de bicicleta, mas tenho saúde e idade para tal. Temos de criar oportunidades para todos, a nível urbano. Se mandasse, promovia uma mobilidade sustentável à base de transportes públicos eficientes e de baixo custo para todos, criaria mais infraestruturas para fomentar modos suaves dentro da cidade. Também colocaria etiquetas de informação de impacto ambiental em todos os alimentos que consumimos. Acho que seriam estas duas medidas.