Outros sites Medialivre
Notícia

Indústria pede alargamento do calendário do PRR

Setores da cerâmica e vidro, cimento e têxtil defendem que são necessários apoios para conseguirem fazer a transição energética e manterem-se competitivos. O PRR é visto como acelerador da descarbonização, mas pode ser necessário estender os prazos.

11 de Setembro de 2024 às 13:30
A Riopele está a dias de arrancar com a nova central fotovoltaica.
A Riopele está a dias de arrancar com a nova central fotovoltaica. DR
  • Partilhar artigo
  • ...

A indústria portuguesa tem dois anos para concluir 810 projetos de descarbonização ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), designadamente até junho de 2026. Segundo a Comissão Especializada em Energia e Clima da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR (CNA-PRR), a dotação inicial foi de 400 milhões de euros, mas à data do quarto relatório, divulgado em julho, ainda estava por apurar a dotação global do investimento e a distribuição entre projetos.

Recorde-se que, globalmente, o PRR tem uma dotação de 22,2 mil milhões de euros para concretizar 44 reformas e 117 investimentos, de forma a colocar Portugal no caminho do crescimento económico e em convergência com a Europa. Mas a dois anos do final do período de execução, o aproveitamento dos fundos europeus está longe do desejável. Este último relatório mostra que 9% dos investimentos estão em estado "crítico", 30% são considerados "preocupantes" e para 23% é "necessário acompanhamento". Ou seja, 62% das verbas disponíveis no PRR estão por concretizar na sua plenitude. Apenas 33% dos investimentos estão "alinhados com o planeamento" e 5% "concluídos".

Neste cenário, surgem críticas de que os apoios não chegam a tempo e horas para se poderem fazer os investimentos na descarbonização, e que tal poderá pôr em causa as metas de algumas indústrias em Portugal.

É o caso da área do cimento. "A promoção da descarbonização, um dos principais desafios da indústria cimenteira, está associada ao sucesso da execução do PRR. As decisões de investimento iniciais e os projetos submetidos ao abrigo de componentes do PRR, como a C11- Descarbonização da Indústria, são críticos para o cumprimento das metas de descarbonização e competitividade nacionais e requerem a atuação urgente das autoridades nacionais no sentido na defesa junto da Comissão Europeia do alargamento do prazo para a prossecução dos projetos, de 31 de dezembro de 2025 para, pelo menos, o 2º trimestre de 2026", defende Otmar Hübscher, presidente da Associação Técnica da Indústria de Cimento (ATIC ).

Na sua perspetiva, "também a C14 - Hidrogénio e Renováveis deverá ser objeto de especial atenção, uma vez que estamos perante uma execução dependente da conclusão das operações, isto é, do estado operacional da instalação beneficiada pelo apoio".

O prazo para a assinatura de contratos que atribuem apoio financeiro previsto no Plano de 2021 para o quarto trimestre 2023 também derrapou. Otmar Hübscher
Associação Técnica da Indústria de Cimento

Otmar Hübscher é crítico também no que respeita aos prazos dos contratos: "O prazo para a assinatura de contratos que atribuem apoio financeiro previsto no Plano de 2021 para o quarto trimestre 2023 também derrapou. Em resultado, somos confrontados por circunstâncias objetivas que podem mesmo pôr em causa a viabilidade dos projetos para descarbonizar a indústria cimenteira, uma vez que é necessário reavaliar os mesmos, reconfirmar os fundamentos económico-financeiros dos projetos, rever com os fornecedores novas condições e só depois será possível reavaliar a montagem e desenvolvimento do projeto".

No caso do setor do vidro, segundo o Portal da Transparência, a Vista Alegre Atlantis (VAA) conta com apoio do PRR para o seu processo de descarbonização, num valor total de 7,2 milhões de euros, tendo sido já pagos 1,66 milhões de euros. "Descarbonizar é urgente, mas é caro e sem apoios adequados torna-se insustentável amortizar o investimento na descarbonização sem ferir a competitividade. Como elemento acelerador destas políticas integradas, o papel dos programas de apoio, tal como o PRR, constituem um elemento dinamizador destes planos, quer do ponto de vista de cofinanciamento e apoio, quer a nível regulatório que estas novas atividades tanto exigem", refere Teodorico Pais, administrador da empresa, ao Negócios.

Quanto aos pagamentos já feitos, Teodorico Pais não aponta atrasos no que toca à Vista Alegre e diz que o montante mencionado como já atribuído pelo PRR "foi pago com relativa celeridade, pouco depois do envio da documentação adjacente ao termo de aceitação". Com data de conclusão do projeto agendada para dezembro de 2025, o administrador indica que "o projeto se encontra com os timings na execução prevista, não se antevendo dificuldades comprometedoras da sua execução em pleno até ao final do ano de 2025".

Também a Riopele, empresa que atua no segmento da indústria têxtil, conta com apoio do PRR para conseguir descarbonizar a sua atividade. "O projeto de descarbonização com o apoio do PRR engloba diversos investimentos, destacando-se a produção de energia renovável solar para autoconsumo, a promoção da eficiência energética na produção e utilização de vapor e ar comprimido. Inclui ainda uma componente de monitorização e otimização dos consumos energéticos, com base em tecnologias digitais", explica Isabel Domingues, diretora de Sustentabilidade da Riopele. Nesta empresa, o fim do projeto de investimento para a descarbonização está contratualizado para o final do mês de fevereiro de 2025. "No entanto, estamos confiantes de que iremos terminar o investimento até final deste ano", conta Isabel Domingues.

Recorde-se que, após a publicação do relatório da CNA-PRR, o próprio Presidente da República veio apelar para que se acelere a aplicação dos fundos do PRR. Marcelo Rebelo de Sousa espera que o atraso na sua execução seja recuperado até ao ano que vem. Em resposta, o Governo prometeu uma execução de 40% já no final deste ano.

Como estão a descarbonizar as empresas

Entre 75% e 85% das emissões de carbono do fabrico de vidro são produzidas pelo aquecimento dos fornos a 1.500°c, sobretudo devido à utilização de gás natural, segundo o Centro Tecnológico da Cerâmica e do Vidro (CTCV). Da mesma forma, o setor da cerâmica também utiliza uma elevada intensidade energética, dependendo substancialmente de combustíveis fósseis. Com necessidades intensivas de energia, estes setores estão a implementar soluções para poderem corresponder às metas de descarbonização traçadas em Portugal e na União Europeia.

A Vista Alegre, por exemplo, tem em marcha a descarbonização de processo produtivos nas suas três fábricas: na de porcelanas em Ílhavo, na de grés em Aveiro e na de cristal e vidro em Alcobaça. O projeto assenta numa redução das emissões de CO2 em 15% em relação a 2020.

"Para concretizar estas soluções serão realizados um conjunto de investimentos diversificados - como por exemplo reconversão de equipamentos nas secções de conformação, fornos, reconversão da central de ar comprimido, aquisição de forno híbrido [gás/ eletricidade], aquisição de centrais de produção de energia fotovoltaicas, substituição de iluminação por LED, entre muitos outros, que permitam alterar a matriz energética e perfil de consumo da empresa, visando a sua progressão para uma produção tendencialmente neutra de carbono, de forma transversal a todas as fábricas da Vista Alegre Atlantis", explica Teodorico Pais.

No caso da indústria do vidro, a descarbonização é essencial. Eu diria que é uma questão de sobrevivência, porque as exigências a nível europeu são muito significativa. Pedro Dominguinhos
Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR

A intensidade carbónica e consequente necessidade de descarbonização destes dois setores coloca metas exigentes para o horizonte de 2030, 2040 e 2050. "No caso da indústria do vidro, a descarbonização é essencial. Eu diria que é uma questão de sobrevivência, porque as exigências a nível europeu são muito significativas. Mas há vários investimentos que já estão em curso, mesmo nessa indústria", assinala Pedro Dominguinhos, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR (CNA-PRR), ao Negócios.

"Há várias formas de descarbonizar. No caso desta indústria, muitos deles passam por substituição de fornos, fundamental para diminuir a dependência do gás. E, portanto, isso exige outro tipo de investimentos, também muito relacionados com o hidrogénio e com toda a parte do pipeline para fazer chegar o hidrogénio, porque está tudo interligado, e com aumento da capacidade da rede, que é particularmente significativo. Portanto, há várias coisas a fazer", acrescenta Dominguinhos.

Do lado da indústria têxtil, a Riopele diz-se comprometida com os objetivos do Acordo de Paris e com as diversas metas de neutralidade carbónica assumidas por Portugal e entidades internacionais. "Em 2023, iniciámos uma jornada com o objetivo de sermos uma das primeiras empresas do setor, a nível europeu, operacionalmente neutra em carbono até 2027, alargando o âmbito de atuação à cadeia de valor, sendo Net-Zero até 2040. Esta é uma meta ambiciosa, mas estamos confiantes de que, com a implementação de medidas e projetos cuidadosamente planeados, alcançaremos o primeiro objetivo no centenário da Riopele, em 2027", conta Isabel Domingues.

A Riopele está a poucos dias de arrancar com a nova central fotovoltaica instalada numa das unidades produtivas, que permitirá suprir cerca de 20% do atual consumo de energia elétrica da rede. O investimento total do projeto da Riopele é de 7,7 milhões de euros, sendo que o investimento elegível em termos de candidatura queda-se pelos 5,6 milhões de euros, ao qual corresponde um incentivo de 2,9 milhões de euros.

Em nome da indústria cimenteira, Otmar Hübscher salienta a complexidade da descarbonização do setor, que, até 2030, terá de reduzir das emissões de CO2, face a 1990, em cerca de 48% ao longo de toda a cadeia de valor e de 65% até 2050. Para Hübscher, "o processo de descarbonização da indústria cimenteira requer a colaboração e investimentos relevantes dos setores público e privado, ao longo de 10 ou mais anos". Na sua perspetiva, é necessário "dotar Portugal com as infraestruturas necessárias para transportar e armazenar o CO2 capturado, de forma transitória ou permanente. As redes de transporte e os locais de armazenagem permanente têm de ser promovidos pelo próprio Estado e são fundamentais para a viabilidade económica e financeira dos avultados investimentos em captura de CO2.".

Entre 2030 e 2050, dar-se-á a entrada progressiva e acelerada de tecnologias de rutura que já existem hoje em pilotos industriais, mas que "ainda não são economicamente viáveis à escala comercial como as tecnologias de captura, utilização e armazenamento de CO2, a eletrificação parcial do processo e o uso massivo do hidrogénio", conta o presidente da ATIC.

Há, assim, desafios estruturais a superar, tecnologias a testar e maturar e colaborações a fazer. Pedro Dominguinhos assinala que, no caso do hidrogénio, "as tecnologias ainda não têm o mesmo grau de maturidade que outras, como o fotovoltaico ou como a eficiência energética" e, como tal, "esse é um aspeto que tem que se ir testando e experimentando". Por isso, na sua perspetiva, "muitas vezes os fundos públicos acabam por ter um bocadinho esse sentido, pois permitem diminuir o risco para que se testem várias tecnologias. É algo que vamos ter que ir monitorizando à medida que as coisas vão sendo implementadas. É importante medir resultados para perceber exatamente o que é mais viável ou não em cada uma das situações".

Entretanto, as empresas mostram-se positivas relativamente aos ganhos que os investimentos que estão a fazer na descarbonização irão trazer. No caso da Vista Alegre, a empresa diz ainda ser cedo para aferir ganhos com o processo apoiado pelo PRR, porém, "as perspetivas são bastante positivas quanto aos resultados que se espera alcançar com o projeto através dos equipamentos previstos, levando as fábricas da Vista Alegre Atlantis a níveis de descarbonização bastante elevados para o setor", assinala Teodorico Pais.

A Riopele destaca também os ganhos na fatura energética, mas não só. Para Isabel Domingues, "a descarbonização em termos competitivos é um fator diferenciador perante os diversos "stakeholders", não só pelos clientes que se preocupam cada vez mais em trabalhar com fornecedores comprometidos na redução das emissões, mas também pelas entidades estatais, certificadoras, banca, seguradoras, entre outros".

Mais notícias