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Cargo: Because Impacts, CEO e cofundadora; ministra da Cultura (outubro de 2018 a março de 2022); secretária de Estado da Modernização (de 2015 a 2018); vereadora na Câmara Municipal de Lisboa (de 2009 a 2015)
Formação: Licenciada em Direito, Universidade de Lisboa; Doutorada em Sociologia, ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa
Mudar comportamentos e comunicar para que as pessoas compreendam o que se está a passar com o planeta é o desafio, num quadro em que "o impacto económico das alterações climáticas é gigante". Palavras de Graça Fonseca, convidada das "Conversas com CEO", integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30. Numa entrevista de mais de meia hora, aqui editada e que pode ser ouvida na íntegra em podcast, a CEO da "Because Impacts" fala-nos do seu passado político, das razões que a levaram a escolher a sustentabilidade como área de negócio – sempre quis mudar o mundo e esta é uma área em que é preciso mudar –, dos projetos que tem e do seu festival Boil onde põe cientistas, artistas e humoristas a conversarem. Partilha ainda a experiência num retiro que fez perto do Círculo Polar Ártico, em frente a um dos maiores glaciares na Gronelândia. Era, diz, "estar cara a cara com as alterações climáticas".
Tudo isto numa altura em que está a atravessar o Atlântico "numa espécie de assembleia climática".
A sua vida em cargos políticos foi desafiante. O que é que lhe ficou mais na memória?
Foram quase 25 anos. Gostei muito dos seis anos na Câmara de Lisboa, de 2009 a 2015. Tive a área da economia e inovação e foi quando começámos este lado da cidade empreendedora e de inovação que atrai investidores e startups. A Startup Lisboa começou comigo. É um bom exemplo do que procurei sempre fazer. A Startup Lisboa nasce de uma proposta de um orçamento participativo, numa altura em que a cidade estava parada, numa situação difícil. E em 2015, Lisboa é reconhecida como cidade empreendedora. Foi quando começou a chegar o Web Summit. O trabalho de transformação sempre me motivou.
Mas como ministra da Cultura isso já não foi tão fácil.
Não, também foi. Na cultura, foi um tempo muito desafiante, de que guardo muitas memórias positivas e, acima de tudo, aprendi muito. A resiliência do setor da cultura é uma marca importante. Um dos grandes desafios foi lançar a rede de teatros e cineteatros. Hoje temos cerca de 100 equipamentos em todo o país, que não tinham programação cultural, com um financiamento que julgo que já totalizou cerca de 30 milhões de euros. O país é hoje, apesar de tudo, menos desigual.
A sua paixão pelo trabalho mais próximo dos cidadãos pode levá-la a regressar à política como autarca?
O que me move é a dimensão de como transformar a realidade. Fui para Direito porque queria trabalhar para as Nações Unidas para mudar o mundo. Isto parece um pouco ingénuo. Fui parar à política quase por acaso. Estava a trabalhar em Coimbra, como investigadora, no Observatório Paralelo da Justiça Portuguesa. E o primeiro lugar para onde vou é para uma direção-geral da Ministério da Justiça, para tratar precisamente da área de planeamento. É aí que conheço António Costa, em 1999. E a partir daí esta dimensão de tocar a vida dos outros, o coletivo, que a política nos dá, acompanha-me sempre.
E é por isso que se lança para a "Because Impacts" nesta área da sustentabilidade?
O que sempre quis fazer, e estou a fazer, é converter ideias em projetos que transformem a realidade. E o impacto social e ambiental são os grandes desafios das nossas vidas. O impacto económico das alterações climáticas é gigante. A disrupção económica que as alterações climáticas significam para a agricultura, para aquilo que vestimos, para as infraestruturas, para tudo, é enorme. E a questão é: como é que transformamos a economia com este desafio. Porque a urgência não é em 2050, é hoje.
O que é que muda mais rapidamente os comportamentos, o pau ou a cenoura?
O que fazemos na agência é identificar perspetivas ou espaços não preenchidos para os quais podemos ter ideias e projetos. E a área de mudança de comportamentos é claramente uma delas, a comunicação é outra, na perspetiva de as pessoas perceberem exatamente o que é que está a acontecer. Tenho um protocolo com a Escola Nacional de Saúde Pública, porque desde o início quis trabalhar o tema das ciências comportamentais. Se não conhecemos bem o problema, a eficácia da intervenção ou da comunicação nunca será tão elevada. Por exemplo, o que é que aconteceu para estar a diminuir a taxa de reciclagem em Portugal? Um outro exemplo: nas zonas industriais ou parques industriais, é gigante o potencial de cooperação que existe para soluções de circularidade, de partilha de energia, de recursos, ou de fechar o ciclo entre os resíduos e a sua valorização. E é algo que não é muito praticado.
Mas tem um projeto nessa área?
Sim, estamos a discutir uma possibilidade. Outro exemplo: temos uma produção de vidro que está a fazer um caminho extraordinário de descarbonização, até na desativação dos fornos a gás e transformação por renováveis. No mercado global tem muito impacto dizer que Portugal fabrica vidro com a melhor qualidade e mais sustentável, com a menor pegada carbónica.
No caso dos resíduos, porque é que nos atrasámos tanto?
A primeira solução de separação de embalagens de vidro tem cerca de 40 anos. A campanha do verde, amarelo e azul, deve ter cerca de 30 anos, quando começou a Sociedade Ponto Verde, com outro nome. A comunicação mudou muito nos últimos 30 anos. E continuamos a usar as mesmas ferramentas de comunicação e de envolvimento das pessoas em alguns temas, como as embalagens, o cartão, vidro ou o plástico. Temos um projeto com a Escola de Saúde Pública da Nova para estudar a forma como as pessoas gerem determinados resíduos, com observação comportamental, inquéritos e grupos focais. Se perceber melhor porque é que as pessoas não separam as embalagens, tenho mais informação para definir a infraestrutura que pode facilitar esse comportamento e iniciativas de comunicação ou de envolvimento que sejam mais eficazes. Tenho a convicção, por exemplo, de que o novo sistema de depósito e reembolso pode ter um impacto muito significativo. Começa em janeiro e vou ser recompensada pelo ato de levar a minha embalagem plástica a um determinado local. Do ponto de vista comportamental, sabemos que é um incentivo que tem impacto.
Quando é que esse estudo estará pronto?
Está especificamente relacionado com os chamados resíduos orgânicos, os restos de comida em casa. É um sistema relativamente recente em alguns concelhos. O que estamos a fazer num concelho é observar como é que as pessoas aderiram, o que é que facilita e o que é que dificulta, para ver se é preciso ou não fazer ajustes. O estudo deve estar concluído em meados do próximo ano.
Neste desafio de mudança de comportamentos o ativismo é especialmente importante. O ativismo como o do Climáximo é eficaz?
Tenho imensas dúvidas sobre a eficácia de determinadas formas de ativismo. Acho mais eficaz a litigância ou as ações judiciais climáticas que cresceram muito no Reino Unido, nos Estados Unidos e em inúmeros países. Precisamos que as pessoas estejam do nosso lado, que se relacionem com o tema de uma forma positiva. Mesmo o Climáximo no Reino Unido começou a adotar outro tipo de iniciativas em alternativa a bloqueios de estrada. Perceberam que estavam mais a alienar os cidadãos do que a trazê-los para a sua causa.
Notamos de forma mais clara os efeitos das alterações climáticas quando saímos das cidades. Esteve no Ártico …
Fui uma vez. Foi um desafio de três fundações, duas americanas e o Clube de Roma, que organizam há alguns anos um retiro climático na Gronelândia. Éramos cerca de 20 mulheres, um retiro feminino, de todas as partes do mundo, de diferentes áreas de trabalho. Estávamos próximo do Círculo Polar Ártico, só existiam umas cabanas onde dormíamos e estávamos em frente a um dos maiores glaciares na Gronelândia. E toda a noite ouve-se o gelo a cair. É muito impressionante, como uma trovoada ao longe, muito suave. Às vezes há um bloco maior que cai e pode criar mesmo um tsunami, tal é o impacto. Se a camada de gelo do Ártico derreter toda, que é um dos cenários, o nível do mar pode subir 7,4 metros. O impacto que tem na nossa vida é gigante. É aquela sensação de estar cara a cara com as alterações climáticas. Agora fui convidada para fazer uma viagem pelo Atlântico, de Lisboa até Porto Rico, uma espécie de assembleia climática a bordo, que junta pessoas de todo o mundo, também para conseguirmos ter esta noção da experiência e do que está a acontecer.
E como é que se comunica isso?
É muito difícil. É um dos temas que mais me desafia há muitos anos. A comunicação tornou-se mais difícil. E por isso é que temos primeiro de perceber bem qual é o problema, o que queremos comunicar. Há a tendência de pensar que é um problema dos outros, do vizinho, do Governo, da câmara, ou da empresa. Temos de encontrar formas de que aquilo que estamos a comunicar se relaciona comigo. Tenho de fazer parte da história.
E por isso é que fez o seu festival?
E por isso é que fiz o meu festival, precisamente. Para tentar testar outras linguagens, outras formas de olhar para o mundo. Há um capítulo no último relatório do IPCC, do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, relativo ao lado da procura. E são os próprios cientistas climáticos que pedem ajuda aos criativos, aos artistas, aos humoristas, aos influenciadores, reconhecendo que a ciência climática é difícil de comunicar às pessoas. Porque é complexa e porque, quando uma pessoa começa uma frase com 2050, o cérebro já desligou, já nem está a ouvir. O Festival Boil, que no próximo ano terá a segunda edição, coloca cientistas, artistas e humoristas a conversarem. E isto é importante para as empresas que estão a fazer processos de transformação.
Há riscos de retrocesso na área ambiental e social?
Estamos a fazer um projeto com o "cluster" industrial sobre a pegada social. Com a nova diretiva europeia, o tema social vai passar a ter quase a mesma importância do ambiental. Vai obrigar as empresas a olharem mais para a relação com as comunidades, com os seus trabalhadores, o impacto que têm na diversidade e inclusão. Na verdade, devíamos estar a falar de justiça climática com as duas dimensões, a social e a climática. E se pensarmos de uma forma global, os riscos para a democracia são riscos para a evolução da forma como trabalhamos para travar o processo acelerado de alterações climáticas e de crises sociais. As manifestações dos agricultores na Europa, um dos efeitos que tiveram foi o crescimento de partidos extremistas, que têm uma posição antirregulação ambiental e que rapidamente tiveram uma votação muito expressiva.
O que nos leva de novo para a comunicação.
Exatamente, ou seja, à forma como não se está a olhar para esta evolução. A democracia e a forma como nós olhamos para o planeta estão tão ligadas que precisamos mesmo de perceber que está a haver retrocessos.