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Todos os anos há incêndios. E todos os anos (ou quase todos) a área ardida é superior à do ano anterior. Isto acontece há décadas e parece não haver solução à vista.
Segundo o “Spreading like Wildfire: The Rising Threat of Extraordinary Landscape Fires”, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) e GRID-Arendal - a previsão é de que as alterações climáticas e a alteração do uso do solo tornem os incêndios mais frequentes e intensos, com um aumento global dos fogos extremos de até 14% até 2030, 30% até ao final de 2050 e 50% até ao final do século.
No caso específico de Portugal a opinião de Nuno Forner, da Zero, é de que “teremos de nos lembrar das características da floresta portuguesa e das especificidades de ordenamento do território”.
Para o ambientalista, os riscos que foram identificados com os grandes incêndios em 2017 continuam hoje a ser uma realidade, até porque 95% da floresta portuguesa está na mão de privados, muita da qual se desconhece quem é o proprietário por ausência de um cadastro e, no caso em concreto das regiões Centro e Norte, predomina o minifúndio, em que a propriedade é constituída por parcelas que, em média, não ultrapassam o meio hectare”.
Além disto, acrescenta, não nos podemos esquecer de que há todo um abandono e desertificação da paisagem. A estes “desafios” junta-se ainda “a reduzida capacidade de gestão por parte dos proprietários, porque em grande medida a pequena propriedade não dá retorno suficiente para fazer face aos custos com a gestão de combustíveis que se acumulam de ano para ano”, sublinha.
Acresce ainda toda uma desorganização da floresta portuguesa. Ou mais precisamente, descreve Nuno Forner, de “uma aposta na produção florestal de uma forma algo desordenada que resultou na instalação de grandes contínuos com espécies de rápido crescimento, sem a adequada manutenção do mosaico agroflorestal, colocando-nos em dificuldades em cenários de fogos rurais”.
E depois... bem, depois há a própria crise climática. E sobre esta o ambientalista da Zero lembra que a localização de Portugal leva a que, num cenário de alterações climáticas, a frequência com que o território nacional é e será afetado por vagas de calor e períodos de seca extrema potenciem os riscos de fenómenos com consequências dramáticas ao nível da área afetada pelos incêndios.
O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) tem uma outra visão da questão. Fonte oficial do ICNF refere que, desde 2018, foram desenvolvidas ou apoiadas ações de gestão de combustível em cerca de 85.000 hectares, incluindo rede primária, mosaicos de gestão de combustível, fogo controlado e queimadas, silvopastorícia, projetos-piloto em áreas protegidas ou nos agrupamentos de baldios, trabalhos imprescindíveis à prevenção de incêndios rurais.
Feitas as contas, e segundo o ICNF, a gestão de combustível desenvolvida por todas as entidades envolvidas no sistema de gestão integrada de fogos rurais, em que se incluem os municípios, ultrapassa já os 250.000 hectares. Em termos de rede viária florestal foram construídos ou beneficiados perto de 8.000 quilómetros.
Mas será que isso é suficiente? O ICNF diz que o Ministério do Ambiente e da Ação Climática tem dado grande relevância ao eixo da gestão de fogos rurais. E que isso tem sido demonstrado pelos investimentos e pelo “desenvolvimento e concretização de políticas, como o Programa da Transformação da Paisagem, essenciais para uma nova economia dos territórios de floresta, que valoriza o capital natural e a aptidão do solo, que promove a resiliência ao fogo e que assegura mais rendimentos aos proprietários”.
Para a Zero não é suficiente. Isto porque Portugal tem um problema de ignições, defende. Basta olhar para o número registado no ano passado: 82. 23. É certo que, reconhece o ambientalista da Zero, houve um recuo em relação a anos anteriores, principalmente em dias de maior perigosidade. Mas a questão, a verdadeira questão, é que “continuamos a ter demasiadas ignições, com uma percentagem muito significativa a resultar do mau uso do fogo”.
“O que é facto é que, depois de milhões de euros gastos com campanhas de sensibilização, não se compreende que persistam comportamentos negligentes dos cidadãos, pelo que é necessário olhar para este assunto com muito mais detalhe”, constata Nuno Forner.
Investir para alterar a floresta portuguesa
Por seu lado, o ICNF aponta para um outro caminho. O caminho onde se tem feito investimento em maquinaria, destacando-se a aquisição de 124 tratores e máquinas para trabalhos de prevenção e/ou de apoio ao combate, num investimento de global que já ascende aos 22,5 milhões de euros.
Como explica o instituto, o ICNF opera atualmente 32 máquinas e três camiões de transporte. Com a operacionalização das máquinas relativas ao ano de 2022, o ICNF passará a operar mais 18 máquinas e dará continuidade à cedência de máquinas às organizações de produtores florestais ou aos resineiros, parceiros fundamentais na prossecução dos objetivos de prevenção nos territórios florestais.
Mas esses não são os únicos investimentos. Foram também feitos, nomeadamente em termos da Componente 8 e da Componente 12 do Plano de Recuperação e Resiliência, investimentos superiores a 415 milhões de euros e para potenciar o desenvolvimento das medidas programáticas do programa de transformação da paisagem, a execução da rede primária de faixas de gestão de combustível, o reforço da atuação das Organizações de Produtores Florestais, a beneficiação de povoamentos de pinheiro bravo com potencial para a resinagem ou o programa “Resineiros Vigilantes”.
Feitas as contas, e segundo fonte do ICNF, “a prevenção envolve investimentos suplementares na gestão florestal em áreas públicas e comunitárias submetidas ao regime florestal, que serão na ordem dos 30 milhões de euros até 2025”.
Já a avaliação que Nuno Forner faz dos últimos anos não é tão positiva. O ambientalista diz que ao longo das últimas décadas, e embora os problemas estejam diagnosticados, verificou-se um problema de operacionalização.
“Existe hoje um conjunto de políticas públicas que pretendem alterar o paradigma da paisagem, com uma utilização multifuncional, potenciando a diversidade de usos do solo, onde há espaço para produção florestal, a floresta de conservação, agricultura e muitos outras atividades que compartimentam e tornam a floresta mais resiliente aos incêndios. Mas, para que tal seja uma realidade, é necessária uma intervenção por investimento público, onde não sejam esquecidos o minifúndio e a remuneração dos serviços de ecossistema. No entanto, tudo isto é um remédio que vai demorar várias décadas a implementar. Não se mudam paisagens de um dia para o outro”, refere.
Sobre o investimento já realizado, Nuno Forner reconhece a sua existência e evolução. Aponta que este terá de ser realizado a montante. “É necessário investir na prevenção, não só na gestão de combustíveis, mas acima de tudo no ordenamento do território, um outro aspeto fundamental”, acrescenta.
Consequências para o país, a economia e a sociedade
Quando uma floresta arde desaparecem mais do que “apenas” árvores. É toda uma biodiversidade que fica em risco. Como lembra Nuno Forner, a frequência com que os fogos rurais vão fustigando o território coloca em causa a efetiva recuperação dos valores naturais das áreas, em especial quando se trata de territórios que fazem parte de áreas que foram classificadas devido à sua importância para a conservação de espécies da fauna e da flora.
Já ao nível da economia, o ambientalista aponta que cada incêndio tem como consequência a perda efetiva de matéria-prima que faz falta à indústria nacional da madeira e derivados, ou da pasta de papel, assim como uma perda direta de rendimento por parte dos proprietários afetados. E, à medida que os mesmos territórios vão sendo fustigados, isso traz uma consequência extra: o desincentivo ao investimento.
A agricultura é simultaneamente uma vítima – na maioria das vezes ignorada – e a solução. Vítima no sentido em que, em situações de risco de incêndio, as atividades ficam suspensas. Como lembra José Maria Guedes, administrador da Companhia Agrícola da Apariça, em situações de seca basta uma pequena faísca para iniciar um fogo. Ainda assim, destaca, a percentagem dos fogos agrícolas tem pouco impacto, até porque são mais facilmente controláveis. Ou seja, na maioria dos casos s terrenos estão tratados, há mais acessos e pessoas por perto.
Depois, há as situações em que os terrenos ardem. José Maria Guedes lembra que em 2003 cerca de 3.500 hectares da empresa arderam na zona do Gavião. No mesmo ano, na Bemposta, arderam mais cerca de 600 hectares de montado de cortiça. Uma perda que vai para além do próprio ano e dos prejuízos financeiros. “É irrecuperável”, afirma José Maria Guedes. Mais recentemente, há quatro anos, novamente no Gavião, um raio levou a um novo incêndio, desta vez, cerca de 250 hectares.
Na maioria das vezes a ignição é a negligência. Porque, por exemplo, houve alguém que considerou que não havia problema em transportar, numa carrinha de caixa aberta, um fogareiro aceso. O problema, diz o administrador da Companhia Agrícola da Apariça, “é que ninguém é responsabilizado”. Quando muito paga uma multa. Uma quantia irrisória face ao avultar do prejuízo causado. Basta pensar no caso em que a empresa ficou sem 3.500 hectares de montado de sobro. Trata-se de uma propriedade que durante 30 ou 40 anos vai estar sem rendimento. Se for a única fonte de rendimento do proprietário (seja empresa ou indivíduo) isso significa a sua insolvência.