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Sustentabilidade? Objetivos da ONU ficam para trás

A meta definida era 2030, mas os dados do SDSN indicam que nenhum dos objetivos definidos será atingido.

Negócios 04 de Setembro de 2024 às 12:30
Apenas 16% das metas estão a caminhar no sentido de serem atingidas globalmente, refere a docente Júlia Seixas. Mariline Alves
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As alterações climáticas são uma realidade assim como que o planeta está em risco de rutura. Face a isto foram definidos, em 2015, 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Acontece que o último Relatório sobre o Desenvolvimento Sustentável (RDS), publicado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDSN), revela que nenhum dos 17 ODS está no bom caminho para ser alcançado até 2030. Os dados apontam que apenas 16% das metas dos ODS estejam a progredir.

Para Júlia Seixas, presidente da SDSN Global e professora e pró-reitora da Universidade Nova de Lisboa, os "17 ODS constituem uma referência para o modelo de desenvolvimento a prosseguir se queremos todos viver com qualidade, em equilíbrio razoável com a natureza e os recursos que nos fornece e em paz", que acrescenta que o relatório "passado mostra que apenas 16% das metas estão a evoluir no sentido de serem alcançadas globalmente em 2030, enquanto as restantes 84% mostram um progresso limitado, insuficiente para serem atingidas em 2030, ou mesmo uma reversão".

Pedro Wilson, diretor da Systemic e especialista em ESG Sustainable Finance, por seu lado, aponta que o relatório também refere que "com base no ritmo de progresso desde 2015, nenhum dos ODS será plenamente atingido em 2030". A explicação? "Esta eventual dissonância pode dever-se a algumas metas associadas a cada um dos ODS poderem ser atingidas, mas nenhum ODS ter a totalidade dessas metas atingida em 2030", aponta Pedro Wilson.

Para a responsável do SDSN Global os dados mostram que os países de elevado rendimento estão além de 75 pp no índice SDG (numa escala de 0 a 100, entendido como a percentagem até ao desempenho ótimo nos ODS), enquanto os Brics passam 65 pp, e os países de baixo rendimento ficam ligeiramente acima de 50 pp.

Na opinião de Júlia Seixas há diversas razões para esta situação: falta de compromisso político efetivo, para nortear políticas públicas e alocação de recursos para os ODS, que muitas vezes obrigam à necessidade de alterar o "busines-as-usual"; acesso insuficiente a recursos financeiros, sobretudo pelos países do sul global, nos termos do atual funcionamento do sistema financeiro global; ausência de modelos efetivos e positivos de cooperação multilateral que permita transferência de competências e conhecimento, de tecnologia e outros recursos.

Por outro lado, e como aponta Pedro Wilson, o relatório também refere que o progresso já era lento mesmo antes da pandemia covid-19 e outras crises - e que o ritmo?de progresso se reduziu desde 2020. "Ou seja, essas crises recentes podem ter sido um dos principais travões", explica.

O que está mais atrasado

Apesar de, como refere Júlia Seixas, o relatório fazer uma a análise preferencialmente por país e não por ODS, ambos os especialistas apontam como ODS mais "atrasados" os relacionados com a obesidade (incluída na ODS 2), liberdade?de imprensa (na ODS 16), "lista vermelha" de espécies em extinção (ODS 15), gestão sustentável de azoto (ODS 2) e esperança de vida à nascença (ODS 3). Metas que, inclusive, na opinião de Pedro Wilson, apresentam sinais de retrocesso. A explicação para isto, para Júlia Seixas, deve-se, em grande parte, à pandemia da covid -19, juntamente com outros fatores que variam entre os países - a expectativa de vida ao nascer. "É reconhecido que o controlo da pandemia covid-19 e, mais recentemente, o controlo da inflação e das consequências dos conflitos na Ucrânia e médio oriente, têm feito divergir a agenda política e social, bem como as respetivas prioridades, e os recursos do desenvolvimento sustentável. O investimento em políticas de armamento é incompatível com o investimento numa agenda para o desenvolvimento sustentável", aponta a responsável da SDSN Global.

Mas nem tudo é negativo. Há ODS que apresentam uma tendência positiva. É o caso do uso de banda larga e internet (ODS 9), acesso à eletricidade (ODS 7) e mortalidade até aos 5 anos de idade (ODS 3). A estes, Júlia Seixas acrescenta ainda o saneamento (ODS 6), e o ODS 9 (Indústria, Inovação e Infraestrutura), embora reconheça que "o progresso permaneça muito lento e desigual entre os países".

Tendo em conta este cenário, com os objetivos a avançarem mais lentamente do que o previsto é importante definir prioridades. E aí o relatório é claro: "as metas dos ODS relacionadas com os sistemas alimentares e o uso do solo estão particularmente fora do caminho", reflete Júlia Seixas ainda que o ODS 2 (Fome Zero) enfrenta inúmeros desafios e mostra tendências preocupantes no progresso global: 600 milhões de pessoas ainda sofrerão de fome até 2030, e a prevalência de subnutrição aumentou para 10% da população global em 2021 após anos de declínio.

A questão da alimentação, ou mais precisamente o acesso a, é extremamente importante. Isto apesar de "de uma queda no número de países com preços altos dos alimentos, caindo de 48,1% em 2020 para 21,5% em 2021, acompanhada por um aumento constante na produção de cereais de 3,4 toneladas por hectare em 2000 para 4,4 toneladas por hectare em 2021, a prevalência de nanismo e emagrecimento entre crianças menores de cinco anos permanece alta (20% e 7%, respetivamente, em 2021)". A verdade é que, como aponta Júlia Seixas, muitos países agora enfrentam o duplo desafio da subnutrição e de sobrepeso. A prevalência global da obesidade aumentou de 9% em 2005 para 16% em 2022, indicando uma tendência alarmante alta. Nenhum dos 193 Estados-membros da ONU atingiu o SDG 2.

 

É necessária uma abordagem holística para alavancar potenciais sinergias e compensações associadas à transformação dos sistemas alimentares e fundiários e para ter em conta os efeitos colaterais ambientais e sociais incorporados no comércio de produtos agroalimentares. Júlia Seixas
Presidente da SDSN Global e professora e pró-reitora da Universidade NOVA de Lisboa

A responsável pela SDSN Global lembra o papel da agricultura. Esta "é responsável por mais de metade da superfície terrestre do planeta e 70% do uso de água doce, mas é profundamente afetada pelo agravamento das alterações climáticas e pela crescente escassez de água. Os sistemas alimentares já contribuem para um terço das emissões globais de gases com efeito de estufa antropogénicas e são o principal impulsionador da perda de biodiversidade". Ou seja, "o sistema alimentar tem impacto direto no ODS 2, ODS 6 (Água Limpa e Saneamento), ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis), ODS 13 (Ação Climática), ODS 14 (Vida Abaixo da Água) e ODS 15 (Vida na Terra) e tem um contributo para a realização de todos os outros ODS. O sistema alimentar global deve merecer atenção prioritária".

Então como resolver esta questão? Como atenuar o atraso e mitigar os efeitos? A resposta (imediata) de Júlia Seixas refere que "é necessária uma abordagem holística para alavancar potenciais sinergias e compensações associadas à transformação dos sistemas alimentares e fundiários e para ter em conta os efeitos colaterais ambientais e sociais incorporados no comércio de produtos agroalimentares". A executiva considera que é "essencial alinhar políticas nacionais com os ODS e os limites planetários, tendo em atenção: 1) segurança alimentar e nutrição (ODS 2 e 3); 2) redução de emissões de GEE (ODS 13); 3) conservação de florestas e biodiversidade (ODS 15); e 4) uso sustentável de água, azoto e fósforo (ODS 6, 12 e 14)".

Uma das soluções apontadas pela responsável pela SDSN Global reside na limitação do consumo de proteína aos níveis recomendados e no aumento da parcela de proteínas derivadas de plantas. "Muitos países, como o Brasil, Alemanha e Suécia, aproveitaram a oportunidade de renovar as suas diretrizes dietéticas para promover dietas saudáveis e sustentáveis. Este esforço deve ser acompanhado de fortes incentivos económicos para a indústria alimentar e consumidores", aponta.

Pedro Wilson, por seu lado, lembra as recomendações da SDSN que incidem no financiamento da agenda de desenvolvimento sustentável: "a SDSN frisa que o investimento em educação e capital humano reduz a pobreza e contribui para o progresso; a atual arquitetura financeira tem de ser reformulada para maior apoio dos países em desenvolvimento"; nas medidas de segurança e paz, "incluindo, por exemplo, desarmamento nuclear e reforço do multilateralismo"; e no acesso universal a tecnologia e inovação.

E Portugal?

Questionado sobre o cenário português o executivo da Systemic lembra que os países da OCDE (Europa incluída) são os que estão em melhor situação e que Portugal é o 16.º país com maior "score" totalizando 80,2, ligeiramente acima da média da OCDE. "Na análise da SDSN, mais de 50% das metas dos ODS em Portugal foram atingidas ou estão na trajetória para 2030", refere.

 

Afastarmo-nos do quadro de referência que os ODS nos fornecem, significa um gasto crescente de recursos para nos adaptarmos e sobreviver. Pedro Wilson
Diretor da Systemic e especialista em ESG Sustainable Finance

Júlia Seixas esclarece que o país tem alinhados para atingir as respetivas metas, estão os ODS 1 (Erradicação da Pobreza), ODS 5 (Igualdade de Género), ODS 7 (Energia Limpa e Acessível) e ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis). Já no campo dos desafios consideráveis estão os ODS 2 (Fome Zero), ODS 12 (Produção e Consumo Sustentável), ODS 13 (Ação Climática), ODS 14 (Vida Subaquática) e ODS 17 (Parcerias). "Sobre estes ODS, vale a pena referir as seguintes tendências negativas: prevalência da obesidade e gestão sustentável do azoto (sob ODS 2); as emissões de azoto associadas às importações, a exportação de resíduos de plástico e a baixa taxa de reciclagem de resíduos sólidos urbanos (sob o ODS 12); as emissões de gases com efeito de estufa embebidas nas importações (sob o ODS 13); a percentagem de peixes capturados em "stocks" sobre-explorados, de peixes capturados por arrasto, e de peixes capturados e depois descartados (sob o ODS 14); e uma baixa pontuação sobre o sigilo financeiro (sob ODS 17)", refere Júlia Seixas.

Os dados do relatório têm de ser analisados com cuidado e levados em conta. Porque as consequências do atraso das metas são consideráveis. Como reflete Pedro Wilson, tudo isto leva a biliões de pessoas a viver em condições abaixo do ideal, por vezes abaixo do aceitável, por falta de acesso a condições e a infraestruturas básicas; assimetrias regionais e sociais sem justificação; crescente incidência e severidade de situações de risco climático com impacto nas populações; acima de tudo, desperdício de uma oportunidade crucial de construir um mundo mais equilibrado, justo e resiliente. Mas não só estes. "Afastarmo-nos do quadro de referência que os ODS nos fornecem, significa um gasto crescente de recursos para nos adaptarmos e sobreviver", afirma Júlia Seixas, que acrescenta que o atual exemplo das alterações climáticas deveria bastar para nos fazer parar e refletir sobre o desenho das próximas políticas públicas. As perdas económicas totais resultantes de eventos climáticos e meteorológicos entre 1980 e 2021 ascenderam a mais de 560 mil milhões de euros (com base nos valores do euro em 2021) nos 27 Estados-membros da UE (UE-27), segundo a Agência Europeia do Ambiente (2023) a partir de dados das companhias seguradoras.

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