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“Climate quitting”: quando os valores se sobrepõem ao ordenado

Cada vez mais trabalhadores estão a rejeitar trabalhar em organizações com as quais não partilham valores de responsabilidade ambiental e social. O fenómeno representa um desafio para as empresas.

26 de Julho de 2023 às 13:00
Desistência climática está a ganhar dimensão. Movimento tem vindo a ser impulsionado pelas gerações mais novas.
Desistência climática está a ganhar dimensão. Movimento tem vindo a ser impulsionado pelas gerações mais novas. Getty Images
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Um em cada três trabalhadores com idade entre os 18 e os 24 anos já rejeitou uma oferta de emprego tendo em conta os compromissos ambientais e sociais das empresas (ou a falta deles), salientava um relatório realizado pela consultora KPMG no início do ano. A análise mostrou que os fatores ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governação) estão a influenciar as decisões de emprego de quase metade dos trabalhadores de escritório, com os mais jovens a impulsionarem a tendência crescente de procurar um emprego com ação protetora do ambiente e socialmente responsável. Também o “Workmonitor” 2022 da Randstad mostrou que cerca de metade dos trabalhadores recusaria entrar numa organização cuja posição sobre as questões ambientais não correspondesse aos seus próprios valores.

Duas estatísticas que demonstram como o fenómeno “climate quitting”, ou desistência climática, está a ganhar dimensão. “Este movimento tem vindo a ser impulsionado pelo talento mais jovem, especialmente a Geração Z e os Millennials, que tendem a ter uma forte consciência ambiental e social e que estão cada vez mais dispostos a estabelecer limites e a defender a sustentabilidade, mesmo que isso signifique renunciar a um emprego”, explica Filipe Fontes, diretor do Kaize Institute Western Europe.

Mas não é só nas estatísticas que esta tendência começa a emergir. Na prática, essas limitações são impostas pelos próprios candidatos quando andam à procura de emprego. Ao acompanhar candidatos e empresas em processos de seleção, Pedro Amorim, diretor de clientes corporativos do ManpowerGroup, salienta que “as questões ambientais e sociais, a par dos desejos de flexibilidade e de realização individual, estão entre os principais aspetos valorizados pelos candidatos e trabalhadores, razão pela qual têm assumido um protagonismo crescente na corrida em curso por talento. Exemplo disto são os candidatos que nos chegam e demonstram um desinteresse objetivo em setores e empresas específicos, por causa da pegada carbónica e do impacto que geram no planeta e na saúde pública”.

Um fenómeno em crescimento, na medida em que, segundo o estudo “A Nova Era Humana 2023”, realizado por esta consultora de recursos humanos, até 2025, 27% da força de trabalho caberá à Geração Z. E esta geração está a exigir mais dos seus empregadores em temáticas relevantes, que vão das mudanças climáticas ao movimento LGBTQ. “Obviamente que tanto a proposta salarial como os benefícios associados às posições continuam a ter um peso destacado nas decisões das pessoas. Contudo, numa economia global em mudança permanente, as questões ambientais e sociais tornaram-se bastante valorizadas por aqueles que procuram viver alinhados com valores de sustentabilidade e justiça no planeta e que não se reveem em empresas que contrariam as suas convicções e ambições”, salienta o responsável.

O mundo do trabalho mudou muito em poucos anos. A pandemia e a digitalização impulsionaram o teletrabalho e novos fatores começaram a ter mais peso na escolha de uma ocupação profissional. Bem-estar físico e mental, benefícios vários, flexibilidade de horários e de local e os valores praticados pela empresa ganharam peso na equação da contratação. Para Pedro Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas (APG), o fenómeno é recente, mas com “uma evolução muito significativa nos últimos anos”. De facto, são “cada vez mais as pessoas que escolhem as empresas e não o contrário, logo, estes fatores assumem já uma proporção grande na hora de se sentir atraído ou não por uma empresa e seu respetivo propósito”.

Mas quais as principais preocupações que o talento demonstra quando olham para uma empresa? Nos dias de hoje, “as pessoas querem investir o seu tempo e dinheiro em organizações que atuam como cidadãos globais, pilares da comunidade e promotores do cuidado ambiental”, destaca o responsável do ManpowerGroup. Há, inclusivamente, um ativismo crescente que é apoiado por uma vontade dos trabalhadores de terem um trabalho que ajude a sociedade (64%), com sete em cada 10 a procurarem organizações com valores similares aos seus e dois terços a manifestaram mesmo querer trabalhar para empresas que “vivem” o fator ambiental da estratégia ESG, segundo apurou a consultora de RH.

O cuidado social também é notado. Os colaboradores querem ver progressos nas suas organizações ao nível da diversidade e inclusão. De facto, 56% dos trabalhadores da Geração Z não aceitariam um emprego sem uma liderança diversa. “No fundo, as pessoas estão muito mais sensíveis tanto às questões ambientais como aos temas sociais e isso tem vindo a impactar a proposta de valor das empresas e os temas que constam das agendas dos líderes. Para além disso, a ação climática e social passou a ser assumida como algo que deve ser partilhado por todos os níveis da empresa, pelo que também se exige agora que a responsabilidade por estas questões chegue às equipas, além do C-Level e das direções de sustentabilidade”, destaca Pedro Amorim.

Também no Kaizen Institute existe esta perceção. De acordo com o Barómetro de Recursos Humanos conduzido pelo Kaizen Institute e pela Hays, em maio deste ano, no âmbito do eixo social do ESG, 48% dos inquiridos admitiu que implementar práticas de trabalho justas e responsáveis - incluindo condições de trabalho saudáveis e seguras, remuneração justa, direitos do trabalhador e equidade de género -, é uma das principais prioridades. Além disso, os colaboradores também esperam que as suas empresas tenham uma estratégia clara e medidas proativas para reduzir a pegada de carbono, promover a sustentabilidade e contribuir positivamente para a sociedade.

Impacto nas empresas

Esta prática de abandono de um emprego ou rejeição de uma oferta de trabalho por se considerar que a empresa não tem compromissos ESG explícitos representa um desafio crescente para as empresas num cenário de escassez de talento. “Um dos maiores riscos associados ao ‘climate quitting’ é em relação à estratégia de recrutamento das empresas. O talento alimenta a estratégia e, se houver escassez de talento, a empresa poderá ficar mais vulnerável à pressão externa e delicada do ponto de vista dos investidores. Por outro lado, este fenómeno pode afetar a reputação de uma empresa, tornando mais difícil atrair novos colaboradores e afetar as relações com os clientes e os investidores”, destaca Filipe Fontes.

Neste contexto, é notório que as empresas que não adotem práticas ESG estarão em desvantagem competitiva. Pedro Ramos corrobora e diz mesmo que “se uma empresa não consegue trazer os melhores talentos a bordo devido a conflitos ideológicos, ela tem um problema”. Destaca que “já ninguém (ou quase) suporta lideranças tóxicas, os temas do cuidar das pessoas e da sua saúde mental vieram despertar novos olhares quanto ao social nas empresas e, naturalmente, não se quer trabalhar numa empresa que despreza claramente os temas de preocupação ambiental”.

A solução? Para o presidente da APG, “o segredo para prevenir é melhorar a forma como se trabalham as preocupações no ESG de forma integrada e global”. Também para reterem talento as empresas precisam de se tornar sustentáveis. “Os temas do ESG são absolutamente essenciais para a globalidade das partes interessadas, sendo uma prioridade cada vez mais da agenda, especialmente se uma empresa não quiser receber um e-mail do candidato perfeito explicando que decidiu não escolher essa empresa para trabalhar”, acrescenta Pedro Ramos.

Talentos verdes, empresas verdes

Com a imposição do mercado, da regulação, da própria sociedade e também pelo novo posicionamento do talento, a transição para uma atuação mais sustentável é incontornável para as empresas. E estas carecem de talento para promoverem essa transição. Por isso, tal como as competências digitais, o talento com “green skills” está a ser bastante procurado. Em Portugal, 82% das organizações já desenvolveram a sua estratégia ESG ou planeiam fazê-lo. No entanto, 91% das mesmas não têm o talento necessário para implementar esses objetivos. Este valor está em linha com o cenário global, em que 94% dos empregadores afirmam enfrentar a mesma realidade, segundo o estudo “A procura por talentos ESG” do ManpowerGroup que inquiriu mais de 40 mil empresas em 41 países.

O ESG trespassa, assim, toda a organização e requer ação em várias áreas de conhecimento e competência. E a retenção de talento é mais uma dessas variáveis. Neste contexto, “não há dúvidas de que uma proposta ESG sólida pode ajudar a assegurar o sucesso a longo prazo das empresas, transformando-as em agentes de mudança na nova economia sustentável. Empresas que não adotem os princípios do ESG correm o risco de perder valor de diversas formas”, finaliza Filipe Fontes.

 

“Climate quitting” em números:
l Um terço dos trabalhadores com idade entre os 18 e os 24 anos já rejeitou uma oferta de emprego por inconformidade de valores

l Metade dos colaboradores recusaria entrar numa organização sem preocupações ambientais

l Até 2025, 27% da força de trabalho caberá à Geração Z, impulsionadora deste movimento

l Em Portugal, 82% das organizações já desenvolveram a sua estratégia ESG, mas 91% não têm o talento necessário para a implementar

 

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