Outros sites Medialivre
Notícia

Construção: começar a descarbonizar pela fábrica

Os edifícios são responsáveis pela emissão de 36% dos gases de efeito de estufa. Um valor elevado que, a par das metas da Comissão Europeia, está a levar o setor a investir na descarbonização. Isso passa pela reutilização de materiais e desperdícios de obra, pelo uso de matérias-primas mais amigas do ambiente e, também, por uma nova conceção das fábricas. A da Secil, que está a nascer em Outão, por exemplo, é considerada a mais sustentável da Europa.

19 de Outubro de 2022 às 14:00
A fábrica da Secil em Outão é considerada a mais sustentável da Europa. Carlos Noronha
  • Partilhar artigo
  • ...
Descarbonizar o setor da construção. Essa foi uma das metas definidas pela Comissão Europeia. E isso implica "atacar" o problema em várias frentes (e em simultâneo). Primeiro de tudo utilizar a estratégia dos 4R: reduzir, reutilizar, recusar e reciclar.

Basicamente tentar otimizar os processos de construção, optar por empresas e materiais sustentáveis, reaproveitar os desperdícios da obra e reciclar tudo o que for possível - são apenas alguns dos exemplos possíveis. Como aponta Rui Barros Garcia, engenheiro civil na Garcia Garcia, entre as boas práticas no que concerne aos edifícios destacam-se a preferência por intervenções de restauro em detrimento da construção nova, a incorporação de material reciclado (mínimo de 10% em linha com o CCP), a prescrição de materiais de construção com declaração ambiental de produto homologada, a monitorização do impacto ambiental do estaleiro (água, energia, emissões de gases de efeito de estufa e produção de RCD), a preferência por soluções de climatização e iluminação natural, e o uso de sistemas de monitorização e atuação integradas do edifício para obtenção de conforto higrotérmico e de eficiência hídrica.

Mas a descarbonização do setor da construção vai para além disso. Passa também pela colaboração entre os vários "players" do mercado, desde os fabricantes - em que se incluem as cimenteiras -, engenheiros, centros de investigação.... tudo com o objetivo de desenvolver novas técnicas e encontrar matérias-primas mais amigas do ambiente. Pelo meio algo extremamente importante. Não basta pensar em como fazer cimento mais sustentável. Há que também olhar para a fábrica que produz esse cimento. E isso é especialmente importante porque se trata de edifícios que embora possa sofrer melhoramentos - que, com certeza recebem - vão estar em funcionamento por vários anos. Décadas até.

A fábrica da Secil em Outão, cuja obra está em fase final, devendo entrar em funcionamento no início do próximo ano, e tendo um investimento de 86 milhões de euros, é considerada como a fábrica mais sustentável da Europa. Um feito que, inclusive, fez com que a empresa lhe alterasse o nome para Clean Cement Line (CCL). Mas qual o interesse desta fábrica? Pois que as técnicas utilizadas e os cuidados na construção possam servir de exemplo para futuras obras. Porque, como referiu Carlos Abreu, administrador da Secil ao Negócios, a previsão é de que a fábrica vai ficar muito abaixo do "benchmark" europeu, que atualmente ronda as 693 emissões de CO2 - a Secil conta registar 630.

Patentes que "nascem" da obra

Além das técnicas mais conhecidas, a Secil está a usar, nesta obra, um conjunto de patentes próprias que, na opinião de Carlos Abreu, fazem a diferença. Mais precisamente oito patentes que "nasceram" no decorrer deste projeto. Uma delas, com o nome de Low Carbon Clinker, foca-se no processo de fabrico do clínquer, promovendo a redução da quantidade de matéria-prima na produção de clínquer através da incorporação de subprodutos de outras indústrias. Trata-se de "adicionar, na parte final do forno, material que não vai ter emissões e que faz com que, efetivamente, a redução de emissões seja maior", explica o administrador da Secil, que acrescenta que em linha foi concebido um novo método de aproveitamento da energia térmica desperdiçada no processo de arrefecimento. Com foco no reaproveitamento energético desenvolveu-se uma tecnologia que consiste num secador híbrido de combustíveis alternativos num betão especial que conserva energia térmica. "É esta patente que faz a grande diferença." Porquê? Porque as outras tecnologias já existem, de alguma forma, numa ou noutra fábrica e o empreendimento de Outão é o primeiro que reúne todas.

A utilização desta técnica não só permite reduzir as emissões como aumentar a capacidade do forno, utilizando, simultaneamente, menos energia. Por outro lado, esclarece Carlos Abreu, a empresa vai usar a tecnologia de pré-calcinação, "onde há uma redução muito grande da eficiência térmica". Que é contrabalançado pelo facto de a Secil produzir energia elétrica através do calor, o que significa que a fábrica vai recorrer menos à "rede tradicional" em cerca de 30%, o que faz aumentar a eficiência energética da fábrica.

Mas como é que se faz eletricidade através do calor? O administrador da Secil explica que aproveitam o calor que é desperdiçado e que, através de permutadores, aquecem o fluido que, ao aquecer vai permitir colocar o motor a rodar e, com isso, fazer com que haja produção de energia elétrica. "É uma tecnologia que já existe. Nós apenas a estamos a usar como forma de recuperação de calor", aponta Carlos Abreu. A diferença é que, em vez de se recorrer a combustível para a produção de calor a fábrica da Secil vai aproveitar o calor desperdiçado, emitido pelo forno.

Além disso a fábrica vai também ser equipada com um campo solar, usado para aumentar o calor disponível e, com isso, ter mais energia elétrica. "Vamos ter uma turbina que vai entregar 7 megawatts", diz, acrescentando que se a empresa conseguir demonstrar que, de um ponto de vista económico, também é eficiente, isso pode significar que a percentagem de energia que não é necessário ir buscar à rede pode ultrapassar os 30% inicialmente previstos.

Vamos substituir os combustíveis fósseis por combustíveis derivados de resíduos ou outros resíduos que existam. Carlos Abreu
Administrador da Secil
Poderá alguma vez uma fábrica ser totalmente autossuficiente? Nessa situação, Carlos Abreu aponta que será necessário o hidrogénio. E referiu a UTIS, empresa fundada pela Secil (através da Semapa) e a startup portuguesa Ultimate Cell, e que tem no seu portefólio unidades de produção de hidrogénio. "Esse hidrogénio, em poucas proporções, sendo adicionado à chama vai permitir uma maior eficiência da chama", explica, acrescentando que o grande salto acontecerá quando se usar o hidrogénio coo combustível.

Adeus aos combustíveis fósseis

"Vamos substituir os combustíveis fósseis por combustíveis derivados de resíduos ou outros resíduos que existam", afirma o administrador da Secil, remetendo para uma outra patente da empresa, denominada de Processo Energreen, já utilizado na fábrica de Pataias e que consiste na conversão de resíduos orgânicos através de um tratamento termoquímico num biocombustível a ser utilizado no aquecimento do forno. Dito de outra forma, transforma uma parte da biomassa num fuel. Trata-se, no fundo, explica Carlos Abreu, de transformar um produto que tem menos calor por unidade/massa num produto que tem mais poder calorífico por unidade/massa. Sendo que esse calor é essencial para mineralizar a pedra. E o recurso a materiais mais pobres (em termos de poder calorífico) põe em causa todo o processo. A ideia da Secil é a de usar um mix de materiais menos pobres e mais ricos para se conseguir chegar aos 100% de substituição (do combustível).

Todas as técnicas utilizadas no desenho e construção da fábrica têm como objetivo a reformulação do processo de fabrico. Este, explica a Secil, passa pela implementação de um conjunto de tecnologias e processos que, conjuntamente, melhoram o desempenho e reduzem consumos. As intervenções visam a eliminação da dependência de combustíveis fósseis e uma redução efetiva dos consumos térmicos específicos, através da otimização da combustão, secagem de matérias-primas e combustíveis alternativos, com inclusão da produção de energia elétrica através do desenvolvimento de sistemas híbridos com concentração solar térmica e processo por ciclo de Rankine. Modificações que, por seu lado, promoverão o desenvolvimento de um clínquer de baixo carbono consequentemente com a criação de uma gama de cimentos de mais baixa pegada ecológica.

O setor da construção está em pleno processo de descarbonização. Todas as iniciativas conjuntas, levadas a cabo pelos vários "players" do mercado, a par de universidades e centros de investigação, são boa prova isso mesmo. Mas só isso não basta. Há que pôr em prática também a sustentabilidade na forma como se fabrica matérias-primas como o cimento e, principalmente, o local onde este é feito. A nova fábrica da Secil é um bom exemplo do que pode (e deve) ser feito. E a prova é que Carlos Abreu referiu que tudo o que foi aprendido vai ser usado em empreendimentos futuros. Sejam construções de raiz ou modificações a edificado já existente.

Mais notícias