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Transição verde: pode a Europa perder empresas para os EUA?

A Lei de Redução da Inflação dos EUA está a despertar o interesse de empresas de todo o mundo com incentivos mais atrativos para investir na transição verde. Depois das crises causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, a União Europeia enfrenta um novo teste à sua resiliência.

24 de Maio de 2023 às 11:23
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Como resposta à inflação e à crise climática, o Presidente dos Estados Unidos promulgou, no verão passado, a Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), um plano no valor de 430 mil milhões de dólares (cerca de 422 mil milhões de euros) para a saúde e clima e que inclui 369 mil milhões de dólares em créditos fiscais, deduções fiscais e subsídios para ajudar as empresas a investir e a produzir tecnologia verde, incluindo turbinas eólicas, painéis solares, bombas de calor e veículos elétricos. Considerada por muitos como a maior peça de legislação climática do mundo até agora, esta lei pretende fortalecer os EUA em termos de segurança energética e impulsionar o país para a linha da frente da transição verde.

Mas a verba, prevista para ser distribuída nos próximos 10 anos, só será disponibilizada se esses produtos forem predominantemente processados e montados na América do Norte. A medida faz tremer as instâncias europeias, pelo risco de fuga de muitas empresas da União Europeia (UE) para os EUA, de forma a beneficiarem das condições mais favoráveis para os investimentos verdes.

E este movimento já está a acontecer. Segundo a Bloomberg, o maior fabricante de rolamentos do mundo, a sueca SKF AB, decidiu localizar as suas novas instalações na América do Norte. Também o gigante alemão de produtos químicos BASF e o fabricante de aço ArcelorMittal ameaçaram reduzir a sua presença na Europa, onde se debatem com a subida dos preços da energia, para se instalarem nos Estados Unidos e beneficiarem dos incentivos do IRA.

Ainda segundo a Bloomberg, o fabricante sueco de baterias Northvolt estimou em 8 mil milhões de dólares o total de créditos fiscais que obteria até ao final da década com a transferência da produção para os EUA.

Alguns exemplos que, no entanto, não alarmam Mário João Fernandes, consultor da Abreu Advogados. "Não acredito numa fuga de muitas empresas da UE para os EUA. O mercado interno é suficientemente grande para ser apetecível para as empresas que já oferecem bens e serviços na Europa, e nem todas essas empresas que atuam na UE são europeias. O que já está a acontecer é um reforço do investimento de empresas estrangeiras nos EUA, porque os incentivos diretos à produção de tecnologia de descarbonização e de energias renováveis e os incentivos indiretos (a subsidiação do consumo de tecnologia e de energias renováveis) são mais competitivos do que noutras geografias", explica.

Ainda assim, a concorrência musculada dos EUA está a obrigar a Europa a repensar a estratégia de forma a não deixar nenhuma empresa para trás. Pedro Amaral Jorge, presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), reconhece que, após a publicação do IRA, uma das preocupações da UE foi "a possível falta de competitividade para manter os fabricantes de tecnologia de emissões nulas na UE, devido às vantagens financeiras nos outros continentes". "O processo legislativo na UE não era mais simples do que na América do Norte e, com o incentivo financeiro do IRA, a UE corria o risco de ficar, mais uma vez, dependente da produção externa de componentes, como aconteceu no caso da produção de painéis fotovoltaicos (maioritariamente importados da China). Assim, o IRA contribuiu para que a UE avançasse com a legislação, e com os apoios à fabricação de componentes para produção de energéticos de fonte renovável", sublinha.

Com este impulso, acrescenta, "a legislação para a fabricação de eletrolisadores e para produção de hidrogénio verde acelerou, após dois anos de estagnação." "Foi anunciada a reformulação do desenho de mercado europeu da eletricidade, tendo já sido realizada uma consulta pública para reforçar o papel das renováveis no mercado energético europeu. E o Net-Zero Industry Act (NZIA) irá simplificar os processos de licenciamento e promover a sustentabilidade e resiliência no acesso aos mercados."

Recorde-se que a Europa já havia assinado o Pacto Ecológico Europeu em dezembro de 2019, onde se comprometeu a atingir a neutralidade carbónica em 2050, num compromisso que visa reconciliar a economia com o planeta, de onde decorrem inúmeras estratégias e planos de ação. Uma série de medidas que fazem com que a Europa se considere líder na transição.

Esta situação de concorrência entre regimes de incentivos faz com que noutras geografias, como na UE, sejam reforçados os incentivos. As grandes empresas operam à escala planetária e decidem os investimentos de acordo com a avaliação que fazem da importância dos incentivos oferecidos em cada Estado. Mário João Fernandes
Consultor da Abreu Advogados
O NZIA visa simplificar a regulamentação, acelerar o acesso ao financiamento e desenvolver competências para as indústrias verdes. Pretende ainda colmatar lacunas, incentivar a indústria europeia à descarbonização e impedir que as empresas deixem a UE e rumem a outros mercados. Até porque a Europa pretende, até ao final da década, estar a produzir no seu espaço grande parte dos componentes necessários à descarbonização.

Nesta "grande corrida", é também a lei do mercado a funcionar. "A concorrência entre regimes de incentivos faz com que noutras geografias, como na UE, sejam reforçados os incentivos. As grandes empresas operam à escala planetária e decidem os investimentos de acordo com a avaliação que fazem da importância dos incentivos oferecidos em cada Estado", sublinha Mário João Fernandes.

Burocracia vs. simplicidade

Quando se olha para as vantagens e desvantagens, neste cenário da descarbonização, a burocracia europeia é sempre apontada como um entrave que muitas vezes obriga as empresas a canalizarem recursos para esses trâmites. Já os EUA são vistos como mais expeditos e práticos, produtores de legislação mais simples e direta. Porém, é preciso salientar que se está a comparar um país com um conjunto de países, que tem de lidar com legislação comunitária e legislação nacional. "Uma comparação entre a solução federal dos EUA e a solução da UE obriga a somar todas as medidas dos 27 Estados-membros relativas a medidas de descarbonização, com destaque para as que impliquem despesa fiscal, comummente identificadas como benefícios fiscais e que serão decididas por cada Estado-membro", frisa o consultor da Abreu Advogados.

Assim, "a decisão de cada Estado-membro da UE em matéria de benefícios fiscais à produção e consumo de energia renovável depende, em grande medida, do respetivo músculo orçamental". "Os Estados com maiores recursos irão conceder maiores apoios, o que terá um efeito pernicioso em termos de integridade do mercado interno, de coerência da concretização a nível nacional das políticas da UE para a descarbonização e de agravamento das diferenças de desenvolvimento económico e tecnológico entre os diversos Estados-membros."

Por outro lado, enquanto que o IRA visa atrair fabricantes que possam gerar empregos nos Estados Unidos, as políticas da UE concentram-se em conceder subsídios para impulsionar a adoção de produtos e tecnologias verdes. O IRA, explica Pedro Amaral Jorge, "incide maioritariamente na componente financeira dos projetos de produção de energia renovável, hidrogénio verde e armazenamento, com a apresentação de apoios aos projetos através de créditos e taxas, e de investimento para melhorar os processos de licenciamento". "Já o NZIA estabelece procedimentos e metas importantes para cumprir os objetivos de produção de tecnologia de emissões nulas na UE. O documento apresenta medidas para a aceleração do licenciamento dos projetos para produção da tecnologia necessária à produção de energia renovável e hidrogénio verde. Aqui inclui-se, por exemplo, a centralização de informação e do processo numa só entidade, a definição de projetos estratégicos com processos de licenciamento simplificados, entre outros."

Neste caso, podem ser considerados projetos estratégicos a fabricação de painéis solares fotovoltaicos e térmicos; turbinas eólicas offshore e onshore; equipamentos com tecnologias de armazenamento de energia; bombas de calor e tecnologias para aproveitamento de energia geotérmica; eletrolisadores e células de combustível; tecnologias para produção sustentável de biogás e biometano; tecnologias para captura e armazenamento de carbono e tecnologias para reforço da rede elétrica e de hidrogénio.

No que toca ao financiamento, a UE tem apostado em vários mecanismos. Para além do grande chapéu que é o Pacto Ecológico Europeu e o mais global plano de recuperação e resiliência (PRR), também o plano RePowerEU, que surgiu como resposta à crise energética provocada pela Rússia, ou a criação de fundos específicos para impulsionar o mercado de hidrogénio, contribuem para financiar a transição das empresas.

Um puzzle de incentivos que firma a diferença entre a simplicidade norte-americana e a complexidade europeia. Ainda assim, em perspetiva, o montante de financiamento público disponibilizado pelo Pacto Ecológico Europeu é muito superior ao do IRA, totalizando 1,8 bilião de euros de financiamento.

E a China?

Mas, para lá deste embate mais direto entre EUA e UE, é a China que "silenciosamente" se vai impondo nesta corrida. Numa transição que já não volta para trás, a China assume a liderança, pois supera os Estados Unidos e a Europa quando se trata de investimentos em tecnologia limpa. Por exemplo, a Agência Internacional de Energia prevê que cerca de 95% da indústria solar poderá ficar concentrada na China até 2025. E a capacidade de produção de componentes eólicos offshore e de baterias elétricas andam na mesma ordem de grandeza. Tal deve-se à abundância de recursos naturais, mão de obra e ao maior ao subsídio governamental para as renováveis divulgado em 2022 (497 mil milhões de euros).

Não é seguro estar dependente maioritariamente de um só mercado para suportar as necessidades energéticas, o que acontece atualmente na UE na produção de alguns equipamentos fundamentais da cadeia de valor do setor renovável. Pedro Amaral Jorge
Presidente da direção da APREN
Por isso, "é difícil para as empresas estrangeiras concorrerem com as empresas públicas chinesas que beneficiam do patrocínio estatal para a obtenção de crédito, mão de obra, matérias-primas, energia, tecnologia e acesso à exportação não tendo de cumprir a regulamentação europeia em matéria de ambiente, proteção social e condições de trabalho", sublinha Mário João Fernandes, consultor da Abreu Advogados. Acresce que muitas destas tecnologias verdes necessitam de elevadas quantidades de elementos químicos (terras raras) cuja produção, extração e comercialização é em grande medida controlada pela China.

Mas esta lição já foi aprendida com a pandemia e com a guerra na Ucrânia. Ou seja, "não é seguro estar dependente maioritariamente de um só mercado para suportar as necessidades energéticas, o que acontece atualmente na Europa na produção de alguns equipamentos fundamentais da cadeia de valor do setor renovável", defende Pedro Amaral Jorge.

Por esse motivo, o NZIA estabelece que, em 2030, 40% da tecnologia de emissões nulas instalada na UE seja fabricada ou produzida por empresas localizadas nos Estados-membros, "diminuindo assim a dependência de outros países no setor da energia", finaliza o presidente da APREN.
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