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Reaproveitar materiais usados na construção é a chave

Transformar o “lixo” em novas matérias-primas. De uma forma muito simplista, a economia circular na construção quer reaproveitar os materiais utilizados por forma a dar-lhes uma nova vida. Na prática, significa retirar menos recursos ao planeta.

01 de Fevereiro de 2023 às 13:30
Setor da construção é responsável por cerca de metade do consumo de recursos naturais na Europa. Leonhard Foeger/Reuters
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Quando a Europa assume que quer descarbonizar a economia automaticamente tem de definir metas para a construção civil. Não só porque o edificado é responsável por 40% do consumo europeu de energia, mas, como refere João Pereira Teixeira, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT), no "Economia Circular no Setor da Construção Civil I - Ciclo dos materiais", "em termos globais, as obras de construção civil consomem cerca de 75% dos recursos naturais extraídos da natureza, sendo que a construção de edifícios, em particular, usa 40% dos recursos minerais, 40% da energia e 16% da água consumidos anualmente".

Não é, por isso, de admirar que uma das apostas da Comissão Europeia passe pelo incentivo à economia circular na construção. Em que consiste? Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), explica que esta pode ser definida como um sistema regenerativo em que a entrada de recursos, a produção de resíduos e emissões e as perdas de energia são minimizadas pela desaceleração, redução e fecho dos ciclos de materiais e energia. "Baseia-se, por isso, no conceito "return-(re)make-(re)use / (re)fazer-(re)utilizar-restituir", em que os produtos são sustentados em materiais reprocessados, reutilizando materiais e outros produtos, ao mesmo tempo que se estende o seu período de vida útil e restituindo os mesmos no final", acrescenta. Na prática, é apostar em três princípios: eliminar resíduos e poluentes, promover a circularidade de produtos e materiais e regenerar a natureza.

Já Marco Frazão Pedroso, Head of Sustainability no departamento de Sustentabilidade e Economia Circular do BUILT CoLAB, explica que quando se considera a adoção de um modelo de economia circular no setor da arquitetura, engenharia e construção - à semelhança de outros setores -, referimo-nos à transição para um sistema que pretende reduzir (e idealmente eliminar) resíduos e emissões, através da (re)circulação de produtos e materiais, diminuindo a pressão sobre a natureza e promovendo até a sua regeneração. "Na Europa, o setor da construção e ambiente construído é responsável por aproximadamente 50% do consumo de recursos naturais, 30% dos resíduos gerados (denominados por resíduos da construção e demolição - RCD, sendo este um dos mais significativos fluxos de resíduos) e cerca de 15% das emissões de gases com efeito de estufa, maioritariamente resultantes do consumo de energia."

A taxa de circularidade média na União Europeia era, em 2019, superior a 12%, valor que apesar de apresentar uma tendência crescente determina que ainda existe um longo caminho a percorrer. Manuel Reis Campos
Presidente da AICCOPN

Adotar a economia circular na construção tem como principal objetivo o minimizar o consumo de matérias-primas, a geração de resíduos e de emissões ao mesmo tempo que se promove a reutilização e reciclagem de materiais e produtos, idealmente, num ciclo fechado. O especialista acrescenta que com esta transição - de uma economia linear baseada no "extrair, produzir, descartar" para uma economia circular baseada no "reutilizar, refazer, restituir" - pretende-se promover uma utilização mais sustentável e eficiente dos recursos, reduzindo o impacto ambiental associado ao setor sem pôr em causa o crescimento económico. Isso pode ser alcançado através do uso de materiais reutilizáveis, recicláveis e renováveis, projetando edifícios para a adaptabilidade, flexibilidade, desmontagem e reutilização e incorporando sistemas para recolha, gestão, reutilização e reciclagem de resíduos. "O objetivo máximo é que os materiais que seriam usualmente considerados como resíduo passem a ser encarados como recursos e nada se desperdice", afirma.

Portugal na linha da frente?

"A taxa de circularidade média na União Europeia era, em 2019, superior a 12%, valor que apesar de apresentar uma tendência crescente determina que ainda existe um longo caminho a percorrer na adoção, por parte de todos os países europeus, de princípios de economia circular", aponta Manuel Reis Campos, que dá os Países Baixos e a Dinamarca como exemplos de dois países com taxas de circularidade superiores a esta média.

Quanto a Portugal, Vanessa Tavares, especialista em sustentabilidade no departamento de Sustentabilidade e Economia Circular do BUILT CoLAB, afirma que Portugal tem tentado ser um pioneiro na área da economia circular com a publicação do Plano de Ação para a Economia Circular (PAEC), em 2017, e integrando critérios de sustentabilidade através da promoção das Compras Públicas Ecológicas. E lembra que, no caso específico da construção foi "recentemente lançado o Plano de Ação para a Circularidade na Construção (PACCO) que necessitará ainda de ser implementado".

Manuel Reis Campos destaca o Acordo Circular com a Indústria da Construção - "Acordo Circular IC" -, protocolo de colaboração técnica e financeira entre o Fundo Ambiental e várias entidades relacionadas com o setor, nomeadamente com a AICCOPN. Foi subscrito em outubro de 2021 e tem como objetivo o desenvolvimento de ações que "visam apoiar as empresas na transição para a nova regulamentação dos Resíduos de Construção e Demolição (RCD), bem como contribuir para uma maior incorporação de materiais reciclados nas empreitadas de obras públicas e particulares e fomentar a circularidade na construção desde a conceção até à desconstrução em nova construção ou reabilitação, e apoiar as empresas e as entidades da Administração Pública com competências no setor da Construção e da Gestão de Resíduos, a promoverem a descarbonização e uso eficiente de recursos visando a neutralidade carbónica em 2050 e a cumprirem o princípio de "não prejudicar significativamente o ambiente".

Isto demonstra que o país está a dar os passos certos e que agora há que operacionalizar o que já está definido. Algo que não pode esperar, com o risco de se conseguir cumprir as metas no prazo estabelecido. Porque, como aponta Vanessa Tavares, especialista do BUILT CoLAB, apoiando-se em dados do Eurostat para 2021 e para todos os setores, a taxa de utilização de materiais circulares apresenta 11,7% para a média dos países europeus, sendo 33,8% nos Países Baixos, 20,5% na Bélgica e em Portugal apenas de 2,5%. Vanessa Tavares refere ainda, a nível europeu, a publicação da metodologia Level(s) - um enquadramento voluntário para avaliar e melhorar a sustentabilidade dos edifícios - e que a sua integração na revisão das Compras Públicas Ecológicas poderá ser um passo importante no alinhamento das abordagens sustentáveis e circulares ao setor da construção.

A verdade é que, na opinião de João Moutinho, diretor do BUILT CoLAB, o Governo tem demonstrado preocupações crescentes nos últimos anos quanto a uma maior sustentabilidade e também circularidade dos vários setores do tecido empresarial nacional. E lembra que, desde 2017 com a publicação do Plano de Ação para a Economia Circular (PAEC) e atualmente na sua revisão, o setor da construção foi identificado como sendo prioritário. A prova está no facto de, com a publicação do PACCO "Portugal, se ter tornado um dos primeiros parceiros europeus a apresentar medidas setoriais dedicadas ao setor AEC".

Significa isto que o trabalho do Governo está feito? O presidente da AICCOPN, Manuel Reis Campos, discorda e frisa que o Executivo deve agora potenciar este esforço efetuado pelas empresas do setor da construção e do imobiliário atuando em vários níveis, designadamente na criação de normas e regulamentos de simples implementação e na valorização no âmbito dos concursos públicos das propostas com soluções ambientalmente mais eficientes.

Portugal está no bom caminho ao seguir as boas práticas dos parceiros europeus que primeiramente adotaram a mudança para um modelo circular no setor da construção. João Moutinho
Diretor do BUILT CoLAB

João Moutinho vai mais longe e afirma que, para que esses planos possam servir o seu propósito, necessitam de incentivo, um suporte legal, normativo e regulamentar para impulsionar a mudança, à semelhança do que se verificou nos parceiros europeus mais avançados nesta temática. "Muito embora ainda haja um longo caminho a percorrer para que ocorra esta mudança de paradigma, por exemplo no que concerne à adoção de metodologias BIM ou de avaliação de ciclo de vida, absolutamente fundamentais para a dupla transição (ecológica e digital), Portugal está no bom caminho ao seguir as boas práticas dos parceiros europeus que primeiramente adotaram a mudança para um modelo circular no setor da construção", conclui.

Apostar na economia circular na construção é não só investir no futuro do planeta, dado que se utilizam menos matérias-primas e diminui-se o desperdício, mas é também, como aponta Manuel Reis Campos, uma importante oportunidade para o setor da construção e do imobiliário, nomeadamente no que respeita à cultura empresarial de inovação e sustentabilidade em que muitas das empresas deste setor já se reveem, na aplicação de novos produtos e processos construtivos, na formação e capacitação de "novos" profissionais, na participação e colaboração em projetos de I&D, na otimização da gestão de recursos, e consequentemente na concretização das metas de desenvolvimento sustentável e numa redução da "pressão" sobre o meio ambiente.

A visão de uma cimenteira

Esta não é uma visão apenas de governos, associações e centros de investigação. Os vários players do setor estão a trabalhar ativamente no assunto. A Secil é um bom exemplo disso mesmo. A empresa assumiu junto da Science Based Target Initiative (SBTi) o compromisso de alinhamento com a trajetória definida pela ciência de limitar, até 2030, o aumento da temperatura média global a 1,5 ºC, com metas muito ambiciosas. Para tal redirecionou a sua inovação. O Betão Verdi Zero - o primeiro betão neutro em carbono de Portugal - é exemplo desse compromisso.

Como explica a cimenteira, a conceção deste produto passou por duas etapas: a primeira ao nível da inovação no desenvolvimento do produto, que logo à partida sofreu uma redução de emissões de CO2, utilizando matérias-primas que promovem a economia circular, através da incorporação de 24% de resíduos reciclados, pressupondo uma menor utilização de recursos naturais. A segunda ao nível da certificação de produto neutro em carbono. Esta é alcançada compensando as emissões remanescentes através de projetos de redução de emissões externas e garantindo que, por cada tonelada de CO2 emitida pelo Betão Verdi Zero, exista uma tonelada a menos na atmosfera.

Sem esquecer a modernização da fábrica do Outão - um investimento de 86 milhões de euros no projeto designado CCL (Clean Cement Line) que irá torná-la na unidade cimenteira mais sustentável da Europa. "Esta fábrica vai emitir menos CO2, usar apenas combustíveis não fósseis e ter muito melhor eficiência energética, com elevada autoprodução de energia elétrica", afirma a Secil.

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