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A época de Bobby Fischer

O novo e brilhante filme de Hollywood “O Sacrifício do Peão” ("Sacrifice Pawn", no original) retrata a vida do atormentado génio do xadrez Robert James "Bobby" Fischer desde os seus primeiros dias como jovem prodígio até à histórica partida, em 1972, contra o campeão mundial russo, Boris Spassky.

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O actor Toby Maguire dá vida a Fischer com uma notável autenticidade - na verdade, um desempenho perfeito para quem conheceu Fischer nos seus tempos de glória.

 

O filme retrata uma partida que se tornou um marco na Guerra Fria entre a Rússia e os Estados Unidos. Também nos faz questionar se um génio criativo como Fischer - profundamente perturbado, mas extremamente hábil no tabuleiro de xadrez - poderia existir no implacável mundo digital dos nossos dias.

 

Fischer recebeu atenção naquela época, mas a informação foi filtrada de uma forma muito diferente do que acontece actualmente. Os jornalistas tomavam a iniciativa, em vez de seguir servilmente o fluxo superficial do tráfego da Internet. A história de um garoto errático de Brooklyn que desfia o império soviético no seu desporto nacional era um bom tema para os jornalistas, que compreenderam a importância do evento. O jogo teve direito a manchetes de primeira página nos principais jornais de todo o mundo diariamente, durante dois meses, com comentadores a realizarem análises ao vivo, jogada-a-jogada, até cinco horas por dia.

 

Naquela época, havia poucos canais de televisão. Não havia leitores de DVD ou serviços de televisão por subscrição. Ainda assim, essa não foi a única razão para as pessoas terem permanecido coladas aos seus televisores para assistirem ao jogo. O ambiente surreal, as incríveis reviravoltas do xadrez e o cenário da Guerra Fria fizeram de Fischer uma das pessoas mais famosas do mundo naquele verão. Não vou dizer que foi a análise do xadrez que atraiu a atenção, embora eu tenha sido comentador, na televisão pública, da crucial 13ª jogada da partida.

 

Para o campeão norte-americano, o jogo foi a consumação de duas décadas em busca do título, desde os seus dias de criança-prodígio. Depois de uma vida de pobreza relativa para uma estrela mundial (embora aparecesse com frequência na capa de revistas importantes), Fischer jogava, finalmente uma partida com um prémio de 250 mil dólares. Naturalmente, era uma ninharia em comparação com os 2,5 milhões de dólares garantidos a cada um dos lutadores no combate de 1971 entre Ali e Frazier. Mas Fischer sabia que que a cultura norte-americana marginalizava qualquer actividade que não produzisse muito dinheiro e, por isso, encarou o prémio de seis dígitos como o símbolo máximo do progresso no seu desporto.

 

Para a Rússia, o jogo não tinha a ver com dinheiro, mas sim com orgulho nacional. O mundo do xadrez era, há muito tempo, o campo de batalha perfeito para demonstrar a superioridade do sistema comunista. Embora a maioria dos ocidentais, hoje em dia, finja que sempre soubemos que o comunismo de estilo russo seria um fracasso, isso não era assim tão óbvio naquela época. O principal texto introdutório sobre economia daquela altura, escrito pelo Nobel Paul Samuelson, previa que a Rússia poderia chegar a superar os EUA como a maior economia do mundo. Os russos valorizavam muito o xadrez, ainda que não oferecesse muitos retornos. Em vários sentidos, o xadrez era o desporto nacional da Rússia. Não é de admirar, portanto, que a luta quixotesca de Fischer pelo campeonato tenha levado o estratega político americano Henry Kissinger a chamar Fischer e a pedir-lhe que não voltasse atrás, como havia ameaçado fazer.

 

Fosse qual fosse o seu estatuto nos EUA, Fischer foi certamente o americano mais amado na Rússia. A imponência das suas jogadas transcendia a propaganda num país onde as pessoas comuns conseguiam apreciar e compreender a beleza natural do jogo. Nas eliminatórias para o campeonato, Fischer derrotou dois adversários muito bons com uma pontuação inédita de 6-0, um resultado surpreendente quando tantas partidas entre grandes jogadores terminavam em empates. Os fãs russos estavam tão animados com a conquista sem precedentes de Fischer que, segundo dizem, congestionaram as centrais telefónicas de Moscovo para obter informações. Em pouco tempo, os operadores passaram a atender o telefone, a dizer simplesmente "6-0" e a desligar. No final, até Spassky homenageou o génio de Fischer, batendo palmas juntamente com a plateia, após a brilhante vitória de Fischer, como é retratado no filme. O norte-americano pode ter sido o génio máximo do xadrez, mas o russo destacou-se pela sua demonstração de classe.

 

O realizador Edward Zwick não se inibe em mostrar os demónios que atormentavam Fischer. Preocupava-lhe que os russos fizessem tudo o que fosse possível para evitar que ele fosse campeão. Mas as inquietações razoáveis acabaram por converter-se em paranóia, e Fischer começou a voltar as costas aos seus amigos e confidentes. Tornou-se anti-semita, quando ele próprio era judeu.

 

Podemos suspeitar que no mundo digital de hoje, as paranóias e as falhas pessoais de Fischer o teriam derrubado antes de se tornar campeão. Depois de Fischer se tornar campeão e simplesmente deixar de jogar xadrez ao nível de competição, a sua doença mental agravou-se. Embora ninguém possa desculpar os ataques violentos e os pensamentos obscuros nos seus últimos anos (morreu em 2008), é triste perceber que alguém com tanta criatividade e genialidade, e que inspirou tantas pessoas através do seu xadrez, poderia ter terminado a sua carreira muito mais cedo nos dias de hoje. Vivemos num mundo diferente. "O Sacíficio do Peão" recorda o mundo em que os feitos de Fischer eram possíveis.

 

Kenneth Rogoff, antigo economista-chefe do FMI, é professor de Políticas Económicas e Públicas na Universidade de Harvard.

 

Copyright: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

 

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