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03 de Abril de 2018 às 14:00

O mal menor para a Zona Euro

Embora o euro tenha sobrevivido à ruptura financeira de 2010-2012, vê-se agora confrontado com uma disrupção política potencialmente mais desafiadora. Essa ameaça deve ser encarada.

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Não era suposto ser assim. A formação de um novo governo na Alemanha levou tanto tempo que só depois de as eleições italianas de 4 de Março terem resultado num terremoto político é que França e Alemanha começaram a trabalhar na reforma da Zona Euro. A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, resolveram superar as suas divergências e apresentar um roteiro conjunto de reformas até Julho. Mas eles não podem ignorar as mudanças trazidas pela vitória esmagadora dos partidos anti-sistema em Itália. Até então, o populismo parecia contido. Agora tornou-se na principal corrente.

 

Para aqueles que terão de desenhar o modelo franco-alemão, a mensagem de Itália é que a estrutura política que tem dominado a Europa desde meados da década de 1980 não tem mais um amplo apoio. Durante três décadas, o consenso sobre a necessidade de reformas de mercado e finanças públicas sólidas foi forte o suficiente para superar a oposição em países pequenos (Grécia) e sobreviver à procrastinação em países grandes (França). Nos próximos anos, contudo, o campo de jogo da Zona Euro pode tornar-se num campo de batalha.

 

A primeira baixa deverá ser o Pacto Europeu de Estabilidade e Crescimento, com a sua infinidade de regras orçamentais, procedimentos de monitorização e sanções por défices excessivos. O Vade Mecum de 224 páginas sobre a implementação da disciplina orçamental na UE é tão complexo que nenhum ministro das Finanças, e muito menos os membros do parlamento, entendem exactamente o que seu país deve respeitar.

 

Para os populistas, contudo, regras indecifráveis ??feitas em Bruxelas são um alvo político simples e directo. No "Baron Noir" (Barão Negro), uma popular série de TV francesa, um presidente envolvido num escândalo financeiro quase escapa à humilhação pública montando uma coligação contra as sanções da UE relacionadas com o défice. Com o populismo a crescer em quase toda a Europa, a realidade pode em breve superar a ficção. Para os grandes países, a ameaça de sanções sempre foi um tigre de papel. A diferença agora é que o bluff da UE pode ser exposto.

 

Sem sanções, o que é que garantirá que os participantes da Zona Euro se comportam como devem? É com isso que a Alemanha está compreensivelmente preocupada. Quaisquer que sejam as reservas que se possam ter sobre a obsessão orçamental da Alemanha, as regras do jogo são necessárias para lidar com a acumulação insustentável de dívida pública numa união monetária. Não pode haver ambiguidade em matéria de políticas num sistema privado de um forte centro de poder. Se ninguém souber o que acontecerá se um país não se comportar, a expectativa pode ser que as dívidas sejam monetizadas - com um elevado custo inflacionista.

 

Numa conferência recente em Berlim, economistas debateram o que fazer se o euro se mostrar insustentável. Estudiosos alemães proeminentes expressaram a opinião de que, sem a existência de sanções dignas de crédito, apenas a ameaça de saída forçada poderia disciplinar os membros da Zona Euro. Por outras palavras, os governos devem ser colocados perante uma escolha clara: ou se comportam ou saem.

 

Tecnicamente, isso não seria difícil de implementar. Para forçar a saída de um país, o BCE poderia simplesmente desconectar o seu sistema bancário da liquidez do euro. Isso quase aconteceu em 2015, quando a Grécia estava à beira da saída, e Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha na altura, considerou expulsar a Grécia. Foi preciso uma noite longa e dramática de conversas para os líderes da Zona Euro concordarem em não o fazer.

 

Expulsar um país, porém, teria consequências terríveis. A irreversibilidade do euro pode ser um mito - nada é irreversível - mas é um mito útil. Se empresas e aforradores começassem a especular sobre a próxima saída, a confiança na moeda comum desapareceria imediatamente. As pessoas transfeririam as suas poupanças para protegê-las do risco de redenominação. Um euro alemão valeria mais do que um euro francês, que, por sua vez, valeria mais do que um euro italiano. É por isso que Mario Draghi, presidente do BCE, disse em 2012 que faria o que fosse necessário para preservar a integridade do euro.

 

Então, e se as sanções não funcionarem e a ameaça de saída for uma bomba de fragmentação que prejudicaria todos? Num artigo recente com colegas franceses e alemães, defendemos que a reestruturação da dívida dentro da Zona Euro seja uma possibilidade credível. Não consideramos que a reestruturação da dívida seja benigna, muito menos desejável, e não defendemos que seja automática ou conduzida por accionadores numéricos.

 

Mas, num sistema sem sanções, a responsabilidade orçamental só pode ser aplicada se forem cumpridas duas condições. Primeiro, os governos e aqueles que os financiam devem enfrentar as consequências da irresponsabilidade - isto é, em última análise, a reestruturação da dívida. Em segundo lugar, a consequente ruptura financeira deve ser limitada, para que os responsáveis pelas políticas não queiram evitar a reestruturação a todo custo. Isso, por sua vez, requer uma série de reformas que explicamos no nosso artigo.

 

Essa ideia gera fortes reservas, não apenas em Itália, onde o establishment político está obcecado pelo endividamento recorde do país, mas também em França, onde o pagamento da dívida é considerado a linha divisória entre países avançados e em desenvolvimento. As memórias da cimeira de Deauville - um regime mal concebido para enfrentar a dívida pública excessiva discutido por Merkel e pelo então presidente francês Nicolas Sarkozy - ainda estão muito vivas. A visão francesa é que a reestruturação da dívida não deve ser contemplada, mesmo como um resultado possível.

 

Mas os franceses têm de enfrentar a nova realidade. Embora o euro tenha sobrevivido à ruptura financeira de 2010-2012, vê-se agora confrontado com uma disrupção política potencialmente mais desafiadora. Essa ameaça deve ser encarada.

 

Sem um consenso partilhado sobre a santidade das regras, não há muitas possibilidades. Uma é um euro sem âncora, algo de que a Europa do Norte não gostaria de fazer parte por muito tempo. Outra é um euro com uma porta de saída bem aberta, algo que levaria rapidamente a outra crise financeira. E ainda outra é um euro com mecanismos internos definidos e previsíveis de resolução de dívidas. A última opção não está livre de riscos, mas é certamente mais segura que a ameaça de saída. França e a Europa deveriam escolher o mal menor.

 

Jean Pisani-Ferry, professor na Hertie School of Governance em Berlim e na Sciences Po em Paris, é membro do think tank Bruegel.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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