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21 de Janeiro de 2015 às 16:57

Ajudar o BCE a atravessar o Rubicão

Espera-se que as autoridades monetárias da Zona Euro façam história na próxima reunião do Banco Central Europeu (BCE) a 22 de Janeiro. Os observadores antecipam que o presidente do BCE, Mario Draghi, e os seus colegas vão finalmente atravessar o Rubicão e anunciar o lançamento de um programa de flexibilização quantitativa (QE) de grande escala - por outras palavras, a compra de um grande volume de títulos de dívida soberana. Embora o BCE tenha resistido ao QE por mais de cinco anos, mesmo com outros bancos centrais a adoptarem-no, Benoît Coeuré, membro do Conselho Executivo, já lhe chamou "opção de base".

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O BCE tem muitas razões para lançar o QE. Durante dois anos, a inflação tem falhado constantemente a meta de 2%. Em Novembro, o crescimento anual dos preços foi de apenas 0,3%, e a recente queda dos preços do petróleo vai pressionar ainda mais a inflação nos próximos meses. Mais importante ainda, as expectativas de inflação começaram a desancorar: analistas e investidores esperam que o incumprimento da meta persista no médio prazo.

 

A baixa inflação é já um sério obstáculo à recuperação económica e ao reequilíbrio dentro da Zona Euro. A deflação seria uma ameaça ainda mais perigosa.

 

Além disso, os mercados financeiros consideram o QE tão provável que grande parte das suas consequências ao nível dos juros das obrigações e das taxas de câmbio já foram descontadas. Se o BCE decepcionar as expectativas, os mercados de obrigações e os mercados cambiais enfrentarão um ajustamento abrupto: as taxas de juro de longo prazo sobem, os mercados bolsistas afundam, e a taxa de câmbio aprecia. Não é o que a Europa precisa, numa altura em que se esforça para conseguir num ano o crescimento que os Estados Unidos registaram já num único trimestre.

 

No entanto, as hesitações são palpáveis. Jens Weidmann, presidente do Bundesbank alemão, continua céptico. Embora Weidmann não negue o risco de deflação, argumenta que as consequências dos recentes dados sobre a evolução dos preços podem ser menos graves do que se acreditava, enquanto as consequências do QE poderão ser mais graves do que se supõe. Muitos dos seus colegas partilham as suas reservas.

 

É importante entender porque é que ainda não há acordo em Frankfurt sobre a melhor estratégia a seguir. Numa altura em que os dados dos Estados Unidos parecem validar a estratégia da Reserva Federal, porque é que o BCE continua a hesitar?

 

Ao contrário da crença generalizada, a questão não se prende com a mera doutrina. Sim, o Bundesbank opôs-se ferozmente ao apoio condicional de membros endividados da Zona Euro, por parte do BCE, e levantou desafios legais à inovação de Draghi: o programa de Transacções Monetárias Definitivas do BCE (OMT na sigla inglesa). Mas as autoridades alemãs não contestam a legitimidade das compras de títulos em grande escala para fins de política monetária, nem que possam existir circunstâncias que exijam um QE.

 

A ortodoxia exclui a possibilidade de o BCE apoiar um país particular, porque isso violaria a separação entre a política monetária e fiscal: a autoridade de comprometer recursos públicos em benefício de um país em particular pertence exclusivamente aos parlamentos, e não ao banco central. Mas a compra de títulos do governo não levanta preocupações semelhantes.

 

Ao contrário do que acontecia em 2012, quando o OMT foi anunciado, o objetivo do QE não é ajudar os governos a manter o acesso aos mercados. Por princípio, o QE não tem nada a ver com a solvência soberana. É um instrumento de política monetária que o banco central pode utilizar quando a taxa de juro já atingiu o limite inferior não podendo, portanto, baixar mais. O nível de endividamento do governo é irrelevante para a decisão de recorrer ao QE.

 

Mas, baixando as taxas de juro de longo prazo, a compra de dívida pública por parte do banco central, pode ajudar a conter o serviço da dívida do governo. Desta forma, o QE pode ajudar a manter solvente um governo que, de outra forma, não seria – um pesadelo para um banco central.

 

O Japão é um bom exemplo. O Banco do Japão já detém títulos de dívida pública num valor equivalente a 40% do PIB, e está comprometido com compras anuais no valor de 16% do PIB, no âmbito da agenda de revitalização económica do primeiro-ministro Shinzo Abe. O tamanho gigantesco do programa do Banco do Japão implica que tenha tomado o controlo total sobre o mercado de dívida do governo. Com compras anuais que ascendem ao dobro do valor do défice, tornou-se difícil falar de um "mercado" de dívida pública. Na verdade, é o Banco do Japão que define o preço.

 

Uma situação destas pode fazer com que o banco central se torne refém do comportamento do governo. A acção do Banco Central do Japão baseia-se no compromisso de Abe de restaurar a sustentabilidade das finanças públicas, quando a deflação for derrotada e a economia volte a crescer. Se Abe não cumprir a sua promessa, o Banco do Japão ficará "preso". Se deixar de comprar dívida pública, poderá desencadear uma crise soberana e reduzir o valor da sua própria carteira (especialmente se começar a vender os títulos que estão no seu balanço). No entanto, se continuar com as suas compras, reforçará o controlo do governo.

 

Assim, a confiança no governo é vital para qualquer banco central que embarque no QE. Essa confiança não existe na Europa. Apesar da acumulação de textos e procedimentos legais, o quadro orçamental da UE carece de credibilidade e não dá confiança ao BCE de que os governos vão continuar a defender a sustentabilidade, depois de a compra de títulos de dívida os deixar ainda mais protegidos da pressão dos mercados.

 

Além disso, ao contrário dos seus homólogos, o BCE não enfrenta um interlocutor singular, e nenhum dos governos se sente, ou é, responsável pela Zona Euro como um todo. Esta é uma situação muito desfavorável, o que explica por que é que o BCE, outrora obcecado com o risco de os governos se unirem para atacar a sua independência, se transformou no mais acérrimo defensor da coordenação da política fiscal.

 

A preocupação é, por isso, compreensível. Mas isso não diminui a necessidade de medidas não convencionais corajosas contra a deflação, e não deve impedir o BCE de lançar o QE. O paralelismo com o Japão destaca a necessidade de os governos se comportarem de forma responsável, individual e colectivamente. Os líderes nacionais eleitos da Europa têm um papel importante a desempenhar, e não devem abster-se das suas funções. Quanto mais confiança demonstrarem ao BCE, mais eficaz será o QE.

 

Jean Pisani-Ferry é professor na Hertie School of Governance em Berlim e desempenha actualmente a função de Comissário-Geral para o Planeamento de Políticas no governo francês.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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