Opinião
Terceirização do nosso futuro por uma IA com fins lucrativos
Aparentemente, deveríamos colocar o nosso futuro nas mãos de empresas privadas cujo único objetivo é maximizar o valor para os acionistas. O que poderia correr mal?
No espaço de um mês, o Governador da Califórnia, Gavin Newsom, vetou uma lei sobre a segurança da inteligência artificial (IA) e a Real Academia Sueca das Ciências atribuiu o Prémio Nobel da Química a David Baker, professor da Universidade de Washington, e a Demis Hassabis e John M. Jumper, funcionários da DeepMind, subsidiária da Google, e do seu "spin-off" Isomorphic Labs. Estes dois acontecimentos podem parecer ter pouco em comum, mas, considerados em conjunto, sugerem que a terceirização do futuro da humanidade para as empresas privadas que maximizam os lucros é algo a celebrar.
Embora o projeto de lei da Califórnia não fosse perfeito, representou o primeiro esforço substancial para responsabilizar os criadores pelos potenciais danos que os seus modelos de IA poderiam causar. Além disso, concentrou-se não apenas em qualquer risco, mas em "danos críticos", como o desenvolvimento de armas de destruição maciça ou a causa de danos no valor de, pelo menos, 500 milhões de dólares.
A indústria tecnológica, incluindo a Google, fez um lóbi feroz contra o projeto de lei, apresentando um argumento muito antigo. Como afirmou o conselho editorial do Financial Times, as novas regulamentações poderão "travar (…) o surgimento de uma inovação que poderá ajudar a diagnosticar doenças, acelerar a investigação científica e aumentar a produtividade". Mais uma vez, estes custos de oportunidade são considerados mais prejudiciais do que qualquer dano que a IA possa causar à capacidade das pessoas de controlarem os seus próprios destinos, ou mesmo de viverem pacificamente nas suas sociedades.
O Nobel de 2024 marca a primeira vez em que o prémio das ciências naturais é atribuído a funcionários de uma empresa multinacional. Todos os premiados anteriores eram ou foram professores universitários ou investigadores em institutos de investigação financiados pelo Estado, todos os quais publicaram os seus resultados em revistas especializadas e disponibilizaram as suas descobertas ao mundo. Quer a Academia Sueca o tenha pretendido ou não, a sua decisão de incluir os investigadores da Google ajuda a legitimar a privatização da ciência, que já não faz parte dos bens comuns da humanidade. Como tantos recursos anteriores, a ciência da IA ??está encerrada num jardim muralhado acessível apenas àqueles que podem pagar o bilhete de entrada.
É verdade que o modelo de IA AlphaFold2, que valeu o prémio a Hassabis e Jumper, juntamente com o seu código-fonte, foi disponibilizado publicamente. De acordo com o AlphaFold.com, "a Google DeepMind e o Instituto Europeu de Bioinformática da EMBL (EMBL-EBI) estabeleceram uma parceria para criar o AlphaFold DB para disponibilizar estas previsões gratuitamente à comunidade científica". Por outro lado, a DeepMind detém múltiplas patentes para a AlphaFold. De acordo com a lógica dos direitos de propriedade, a empresa, e não o público, terá sempre a palavra final sobre a utilização da tecnologia. O site da AlphaFold é um ".com", denotando algo fundamentalmente diferente de, digamos, o Projeto Genome Humano, com o seu URL ".gov".
No mundo da informática, "gratuito" nunca é gratuito. Os pagamentos são feitos em dados, não em dólares. Os dados que permitem ao AlphaFold prever a estrutura tridimensional de uma proteína são provenientes do domínio público. O parceiro da DeepMind no desenvolvimento do AlphaFold é uma organização de investigação intergovernamental financiada por mais de 20 estados membros da União Europeia. Segundo a Jumper, "os dados públicos foram essenciais para o desenvolvimento do AlphaFold". Sem dados compilados e organizados por cientistas que receberam dinheiro dos contribuintes para isso, não haveria AlphaFold.
Não obstante a presciência dos funcionários públicos na criação desta enorme base de dados, os governos são regularmente menosprezados por não possuírem conhecimentos, competências, recursos e visão para promover inovações e promover o progresso científico e económico. Dizem-nos constantemente que só o setor privado, com os seus convincentes incentivos monetários, pode fazer o que for necessário para impulsionar o mundo para a frente.
Na realidade, o setor privado beneficia regularmente do trabalho produzido por cientistas que foram apoiados por dinheiros públicos ou empregados por institutos de investigação públicos. O primeiro satélite foi lançado pelo governo dos EUA, e não por Elon Musk; os militares dos EUA desenvolveram a Internet antes de esta ser comercializada; e as empresas farmacêuticas raramente investem em investigação básica. Porquê preocupar-se quando se pode simplesmente esperar que os cientistas financiados pelos institutos nacionais de saúde dos EUA ou agências similares avancem num campo até ao ponto em que possam ser feitos investimentos lucrativos?
Esta é a lógica das corporações que procuram o lucro. O seu objetivo é o retorno financeiro e não o progresso humano. Uma vez em jogo, procuram monopolizar o conhecimento científico, garantindo patentes ou escondendo as suas descobertas atrás das barreiras previstas na lei de sigilo comercial. Sem a ajuda do Estado, não teriam nem ciência básica nem as proteções legais para os monopólios que lhes proporcionam grandes retornos – que apresentam depois como prova da sua superioridade em relação ao governo.
Não é difícil compreender porque é que as empresas privadas gostam deste jogo. O mistério é a razão pela qual os governos entram voluntariamente no jogo da indústria, entregando anos de investigação financiada publicamente sem garantir que o público tem uma palavra a dizer na determinação da forma como esta é utilizada. A legislação da Califórnia teria exigido que os modelos de IA incluíssem uma capacidade de encerramento total caso algo corresse mal, mas esta disposição foi eliminada com o resto do projeto de lei.
Não há nada de novo no argumento de que, se não sabemos o suficiente sobre os danos futuros, devemos abster-nos de interferir nos mercados "privados", que têm sempre um desempenho melhor sem a "ingerência" governamental. As empresas de petróleo e gás confiaram nisso para negar o risco das alterações climáticas e a sua contribuição para este, mesmo que a sua própria investigação lhes dissesse o contrário. No entanto, aqui estamos nós novamente. Aparentemente, deveríamos colocar o nosso futuro nas mãos de empresas privadas cujo único objetivo é maximizar o valor para os acionistas. O que poderia correr mal?
Katharina Pistor, professora de Direito Comparado na Columbia Law School, é autora de The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality (Princeton University Press, 2019).
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Tradução: Leonor Mateus Ferreira