Opinião
Repensar a Próxima China
Esta nova estratégia levanta talvez a maior questão de todas - se a China vai preencher o vazio hegemónico criado pela abordagem isolacionista "América primeiro" do presidente dos EUA, Donald Trump.
Durante os últimos sete anos, leccionei uma disciplina popular em Yale chamada "A Próxima China". Desde o início, o foco tem sido os imperativos de transição da economia chinesa moderna - ou seja, a mudança de um modelo de produção, muito bem sucedido, para outro conduzido cada vez mais pelo consumo das famílias. É dedicada uma atenção considerável aos riscos e oportunidades deste reequilíbrio - e às consequências para o desenvolvimento sustentável da China e para a economia global mais ampla.
Ainda que muitos dos principais elementos constitutivos do quadro de transição da China já estejam concretizados - especialmente o rápido crescimento dos serviços e a urbanização acelerada - não se pode ignorar uma mudança importante: a China parece ter passado de uma postura de adaptação à globalização a uma postura de liderança. Com efeito, a próxima China está a aumentar a sua conexão a um mundo cada vez mais integrado – e a criar um novo conjunto de riscos e oportunidades.
Os sinais têm estado à vista há muitos anos. Esta mudança estratégica é muito um reflexo da liderança do presidente Xi Jinping - em particular, o seu foco no "sonho chinês". Inicialmente, o sonho era uma espécie de mantra nacionalista, enquadrado como um rejuvenescimento pelo qual a China iria recapturar a sua antiga posição de proeminência global, proporcional ao seu estatuto de segunda maior economia do mundo.
Mas agora o sonho chinês está a ganhar forma como um plano de acção concreto, centrado no plano Um Cinto, Uma Rota. Esta ambiciosa iniciativa de infra-estruturas pan-regional combina a assistência económica com a projecção de poder geoestratégico, apoiada por um novo conjunto de instituições financeiras centradas na China - o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas, o Novo Banco de Desenvolvimento e o Fundo da Rota da Seda.
Para aqueles que estudam a transformação económica da China, este não é um desenvolvimento trivial. Embora a mudança continue a ser um trabalho em curso, gostaria de salientar três implicações.
Em primeiro lugar, a China não deu uma reviravolta completa. Como economista, estou inclinado a colocar demasiada ênfase nos modelos e na presunção de que os formuladores de políticas podem inverter a mudança de um modelo para outro. Contudo, as coisas não são assim tão lineares – para a China ou para qualquer outro país.
Para todos os efeitos práticos, os líderes chineses já reconheceram que uma estratégia de crescimento liderada pelos consumidores é mais difícil do que se pensava originalmente. A proporção do consumo no PIB aumentou apenas 2,5 pontos percentuais desde 2010 - muito aquém do aumento dos rendimentos pessoais que se poderia esperar da subida de 7,5 pontos percentuais na proporção dos serviços e de um aumento de 7,3 pontos na percentagem de população urbana bem remunerada que se registou no mesmo período.
Essa desconexão reflecte, em grande parte, um sistema de segurança social poroso que continua a promover altos níveis de poupança preventiva impulsionada pelo medo, o que está a inibir o crescimento do consumo discricionário. Embora ainda esteja comprometida com a urbanização e o desenvolvimento dos serviços, a China optou por recorrer a uma nova fonte externa de crescimento para compensar a falta de procura interna.
Em segundo lugar, este impulso global tem muitas das características do antigo modelo de produtor. Permite que uma sobrecarga cada vez mais preocupante do excesso de capacidade interna seja direccionada aos requisitos de infra-estruturas da iniciativa "Um Cinto, uma Rota". E conta com as empresas estatais para impulsionar esse investimento, prevenindo as reformas necessárias neste segmento gigantesco da indústria chinesa.
A outra face desta nova forma de apoiar o modelo de produtor tem sido uma diminuição da prioridade atribuída ao crescimento liderado pelo consumo. No relatório de trabalho anual do primeiro-ministro Li Keqiang – o documento oficial da política económica - a ênfase na transformação estrutural conduzida pelo consumidor caiu em cada um dos últimos dois anos (ficou em terceiro lugar em 2016 e 2017, ultrapassada pelas chamadas iniciativas do lado da oferta).
Em terceiro lugar, a nova abordagem global da China reflecte uma reformulação da governança. A consolidação do poder interno de Xi é apenas parte da história. A mudança na tomada de decisões económicas da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma do Conselho de Estado para pequenos grupos do partido é especialmente importante, assim como a campanha anti-corrupção, o aumento da censura na internet e os novos regulamentos para organizações não-governamentais.
A ironia desta centralização do poder é inequívoca. Afinal, Xi assumiu a liderança com promessas de eliminar grupos de poder profundamente enraizados, e as reformas do Terceiro Plenário de Novembro de 2013 enfatizaram a promoção de um papel mais decisivo para os mercados.
Mas há uma ironia ainda mais profunda no novo impulso global da China: corre em contramão face à reacção populista anti-globalização que se está a formar em muitos países desenvolvidos. Como economia focada no produtor, a China tem sido o maior beneficiário da globalização - tanto em termos de crescimento impulsionado pelas exportações como de redução da pobreza decorrente da absorção do excedente de mão-de-obra. Essa abordagem tem sido frustrada pelos crescentes desequilíbrios internos da China, pela desaceleração pós-crise do comércio global e pelo aumento do proteccionismo focado na China. Como resultado, as novas tentativas da China de tirar vantagens da globalização constituem sérios desafios.
Uma China mais global também tem ramificações importantes para a política externa chinesa. Aqui, destacam-se as disputas territoriais no Mar do Sul da China, mas a presença chinesa em África e na América Latina também está sob crescente escrutínio. Esta nova estratégia levanta talvez a maior questão de todas - se a China vai preencher o vazio hegemónico criado pela abordagem isolacionista "América primeiro" do presidente dos EUA, Donald Trump.
Em suma, a Próxima China está a preparar-se para ser mais focada no exterior, mais assertiva e mais centrada no poder do que eu imaginava quando comecei a leccionar esta disciplina em 2010. Ao mesmo tempo, parece haver um menor compromisso com uma agenda de reformas pró-mercado, focadas no consumo privado e na reestruturação das empresas públicas. Resta saber se isso muda o destino final do reequilíbrio chinês. Espero que não. Mas isso é o que torna mais interessante ensinar uma disciplina aplicada, onde o foco é sempre um alvo em movimento.
Stephen S. Roach, membro do corpo docente da Universidade de Yale e ex-presidente do Morgan Stanley na Ásia, é o autor de "Unbalanced: The Codependency of America and China".
Copyright: Project Syndicate, 2017.
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Tradução: Rita Faria