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Quando a história económica melhora com o decorrer do tempo

Raras vezes um relatório denso preparado por um organismo estatístico deixa alguém sem alento, mas a mais recente publicação sobre as contas nacionais dos Estados Unidos, do Gabinete de Análise Económica (BEA) é a excepção que confirma a regra.

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Raras vezes um relatório denso preparado por um organismo estatístico deixa alguém sem alento, mas a mais recente publicação sobre as contas nacionais dos Estados Unidos, do Gabinete de Análise Económica (BEA, na sigla original) é a excepção que confirma a regra. A publicação da BEA é, afinal de contas, a reavaliação quinquenal integral e ascendente das receitas, da produção e dos preços que remonta à época do Modelo-T da actividade económica.

 

Ao mergulharmos nos detalhes desta avaliação, encontramos perspectivas ligeiramente melhoradas sobre o crescimento a médio prazo. Além disso, os dados sobre a poupança pessoal sugerem vulnerabilidades ligeiramente menores e uma melhor resiliência por parte dos agregados familiares. Por outro lado, a avaliação nada muda em relação a dois buracos profundos – os défices orçamental e externo – nas contas nacionais.

 

O relatório requer que os economistas revejam a nossa visão da economia norte-americana. Em primeiro lugar, duas boas notícias. Além de reportar que o PIB real cresceu a uma taxa anual de 4,1% no segundo trimestre deste ano, a produção no primeiro trimestre foi ligeiramente revista em alta e foi precedida por um crescimento consideravelmente maior dos rendimentos. O efeito líquido não altera o panorama geral – os Estados Unidos precisaram de seis anos para saírem da Grande Recessão –, mas a tendência do crescimento (a média da produção e dos rendimentos, que é um indicador de actividade mais fiável do que qualquer uma destas componentes analisada isoladamente) foi mais rápida do que o anteriormente previsto. E isto é relevante porque, graças à taxa composta, os pequenos aumentos numa taxa de crescimento produzem grandes benefícios no futuro.

 

Mais importante ainda, o rendimento suplementar não teve equiparação com os novos gastos das famílias. Em termos nominais, o nível de poupança pessoal é praticamente o dobro do que foi reportado nos quatro trimestres anteriores. Relativamente ao rendimento disponível, a taxa de poupança pessoal está agora estimada em 6,8% e não 3,2% conforme reportado em Maio. Além do mais, a taxa de poupança tem vindo a flutuar lateralmente, acima dos 6%, nos últimos cinco anos, em vez de cair precipitadamente como se pensava anteriormente. As revisões em alta vão inclusivamente mais longe, chegando as diferenças percentuais entre os dados actualizados e os dadoa anteriores, no que diz respeito à poupança pessoal nominal, a atingir os dois dígitos desde meados da década de 1990.

 

As contas nacionais, ao que parece, recuperaram a realidade do balanço. Desde a crise financeira, as famílias norte-americanas desendividaram-se e acumularam riqueza. De acordo com a Reserva Federal, as famílias agregaram o correspondente a cerca de 1,75 anos de rendimento disponível ao seu património líquido entre 2008 e 2017. Com base na revisão destes dados, uma proporção expressiva desta acumulação de riqueza foi conseguida à moda antiga, ou seja, consumindo menos rendimentos.

 

A revisão dos dados sobre os padrões de gasto das famílias sustenta as perspectivas económicas. Se as famílias norte-americanas não estão actualmente a esticar demasiado os seus cheques salariais, elas possuem recursos para continuarem a aumentar os seus gastos. Embora não se vislumbrem no futuro imediato taxas de crescimento real de 4% ou mais, a economia dos EUA irá povavelmente crescer 3% este ano, um ritmo que não conseguiu numa dezena de anos.

 

O crescimento económico, a esse ritmo, supera a expansão da oferta agregada, o que condiciona a utilização dos recursos e incentiva a Reserva Federal a prosseguir o seu longo caminho da nova normalização gradual das taxas de juro. Mas o abrandamento desse ritmo parece menos convincente à luz dos novos dados, que mostram que os riscos de estabilidade financeira devem ser relegados para lugares menos prioritários na lista de preocupações da Fed. Afinal de contas, será de esperar que os agregados familiares que estão a poupar duas vezes mais do que se previa possuam mais resiliência quando confrontados com o aumento das taxas de juro.

 

Contudo, essa resiliência será posta à prova no longo prazo devido aos desequilíbrios orçamentais e externos, que ficaram inalterados aquando da revisão dos dados. Parte da atractividade analítica das contas nacionais está no facto de serem coerentes. Se um país poupa mais mas o investimento permanece no mesmo nível, então pede menos emprestado (ou empresta mais) ao resto do mundo. A sua posição de exportação líquida e as contas correntes melhoram.

Mas, neste caso, não foi isso que sucedeu. O grande aumento da poupança viu-se compensado por menores incrementos no investimento, pela acumulação de inventário e pela discrepância estatística. Nada altera a sombria realidade de que o défice das contas correntes nos EUA se dirige para mais de 3% do PIB nominal, o que implica uma maior dependência face aos investidores estrangeiros. Os Estados Unidos estão a fabricar os dólares pelos quais os estrangeiros anseiam, mas é só isso que se passa neste momento.

 

Além disso, não existe nenhuma varinha que os mágicos do BEA possam agitar para alterar a característica dominante do panorama económico: os gastos do governo federal superam as suas receitas por uma larga margem antes e depois da revisão dos dados. O défice orçamental irá superar 1 bilião de dólares este ano e, com o crescimento já acima da sua taxa potencial e o desempenho bastante abaixo da sua taxa natural, o argumento cíclico para a atribuição de estímulos é fraco. A acumulação concomitante de dívida pesará na actividade económica futura e irá exacerbar as vulnerabilidades financeiras.

 

Mas não por agora. Ficámos a saber que a economia está a expandir-se de forma ligeiramente mais rápida e que as famílias estão mais poupadas do que se pensava. Consideremos isto, então, como mais um exemplo em que a leitura da história é melhor do que a história que foi vivida.

 

Carmen Reinhart é professora de Sistema Financeiro Internacional na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard. Vincent Reinhart é economista-chefe e estratega de investimento na BNY Mellon Asset Management North America.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
A acompanhar este texto há dois gráficos que podem ser
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Tradução: Carla Pedro

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