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Carmen Reinhart 05 de Julho de 2016 às 20:00

O golpe do Brexit para a globalização

A crise financeira global foi um golpe significativo para a globalização, especialmente em termos de comércio e finanças. Agora o Brexit desferiu outro golpe, acrescentando a mobilidade dos trabalhadores à lista.

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O referendo sobre o Brexit abalou os mercados financeiros em todo o mundo. Como em episódios anteriores de turbulência financeira contagiosa, a vitória do "Leave" conduziu os investidores globais nervosos em direcção aos portos seguros habituais. Os títulos do Tesouro dos EUA subiram, e o dólar, franco suíço e iene apreciaram, mais acentuadamente face à libra.

Quando ficou claro que o "Remain" tinha perdido, a moeda britânica parecia encaminhada para igualar a queda histórica de 14% registada na crise da libra de 1967. Mas a montanha-russa que estamos a ver agora nos mercados de capitais globais não é exclusiva do episódio Brexit.

O que é único, e particularmente de longo alcance, é o precedente que o Brexit estabelece para outros países (ou regiões) para a "saída" dos seus respectivos arranjos políticos e económicos - seja a Escócia e a Irlanda do Norte, no Reino Unido, ou a Catalunha, em Espanha. As fronteiras dos Estados-nação existentes poderiam ser redesenhadas, ou cercadas por completo, se os Estados-membros descontentes cedessem a impulsos nacionalistas internos e desistissem da experiência de várias décadas na unificação europeia. (E, como a campanha presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos demonstra, esse impulso estende-se para além da Europa).

Com os seus efeitos sistémicos negativos sobre as finanças, comércio e mobilidade laboral, o Brexit marca um grande revés para a globalização. A turbulência provocada pelo Brexit não se deverá espalhar tão rapidamente como aconteceu em crises financeiras como a de 2008 ou os episódios asiáticos de 1997 e 1998. Mas os efeitos colaterais também não vão desaparecer tão cedo.

Os acordos de comércio, finanças e imigração do Reino Unido são demasiado complexos e entrincheirados para serem renegociados rapidamente. Entretanto, muitas transacções transfronteiriças de bens, serviços e activos financeiros deverão ser colocadas em espera. Mesmo que não haja outros episódios de "saída" no resto da Europa, podemos esperar um período prolongado de incerteza nos mercados de capitais globais.

Vale a pena recordar que a globalização não começou com a geração actual. A última parte do século XIX, apesar das suas limitações tecnológicas, foi uma era de crescimento do comércio global. Grandes ondas de imigração diversificaram radicalmente a composição demográfica dos EUA e outras partes da Américo do Norte e do Sul. Londres foi a anfitriã de uma indústria financeira global de rápido crescimento, como havia sido desde que a Grã-Bretanha saiu vitoriosa das guerras napoleónicas.

A Primeira Guerra Mundial pôs fim a esta onda inicial da globalização; e, mesmo com o retorno à paz, o mundo nunca recuperou. A depressão económica da década de 1920, no Reino Unido, e da década de 1930, no resto do mundo, deu início a uma onda global de políticas protecionistas e viradas para dentro e desvalorizações competitivas "para empobrecer o vizinho". O último prego tinha sido martelado no caixão da globalização mesmo antes do início da Segunda Guerra Mundial.
Embora não seja a causa original ou singular da recessão mundial, há um consenso generalizado entre os economistas e historiadores de que os responsáveis ??políticos da época tornaram uma situação má significativamente pior.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a integração global começou novamente, primeiro no comércio e, em seguida, desde os anos 1980, nas finanças. Durante este tempo, o centro financeiro de Londres despertou do seu longo sono e ajudou o Reino Unido a tornar-se um dos pilares de uma nova economia política internacional, profundamente integrada. Antes da crise financeira global de 2008-2009, a maioria dos indicadores de comércio e finanças globais havia atingido novos picos, e a unificação europeia contribuiu significativamente para isso. Mas, com o início da crise, as actividades financeiras transfronteiriças na Europa encolheram, com as economias da Zona Euro altamente alavancadas a começarem a perder o acesso aos mercados de capitais internacionais, e os receios em torno das insolvências de Estados e privados a tornarem-se o centro das atenções.

A crise financeira resultou na maior queda sincronizada do comércio mundial desde a Grande Depressão dos anos 1930. E o comércio global ainda não recuperou a sua trajectória anterior: desde 2008, os volumes de exportação cresceram a um ritmo que representa apenas metade da taxa média anual do período pré-crise. A Europa sofreu uma desaceleração ainda mais acentuada.

A crise financeira global foi um golpe significativo para a globalização, especialmente em termos de comércio e finanças. Agora o Brexit desferiu outro golpe, acrescentando a mobilidade dos trabalhadores à lista.

Os mercados financeiros não lidam bem com a incerteza. Com o mundo a enfrentar já um crescimento anémico e baixos níveis de investimento, qualquer plano de controlo de danos adequado deve incluir a resolução imediata das novas regras da relação entre o Reino Unido e a União Europeia. Qualquer atraso vai causar ainda mais frustração e aumentar as chances de haver políticas de retaliação por parte de membros da UE. A última coisa que alguém precisa é de um processo de divórcio político de "olho por olho, dente por dente" que só serve para aprofundar ainda mais as já amplas falhas da economia global.

 

Carmen Reinhart é professora de Sistemas Financeiros Internacionais na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria
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