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Anatole Kaletsky 31 de Julho de 2018 às 14:00

Do Brexit ao “Breferendo”

A realização de um novo referendo está a chegar ao topo da agenda política do Reino Unido por causa do comportamento autodestrutivo dos defensores mais radicais do Brexit do Partido Conservador.

Se uma coisa é impossível, não acontece. Se um país votar para tornar dois mais dois igual a cinco, esta "decisão democrática" acabará por ser anulada pelas regras da aritmética, independentemente de quão grande seja a maioria ou de quão alto o povo tenha falado. Esta é a história que se está a desenrolar no Reino Unido, numa altura em que o governo de Theresa May se depara com o acto final da tragicomédia do Brexit.

 

Em 2016, os britânicos escolheram sair da União Europeia, mantendo "os mesmos benefícios" que desfrutavam como membros da UE. David Davis, antigo ministro de May responsável por negociar o Brexit com a UE, usou essa frase repetidamente no Parlamento, e foi "aplaudido" de forma entusiástica pela própria May. As promessas do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Boris Johnson, o principal defensor do Brexit, foram ainda mais exageradas: os britânicos teriam total liberdade de viver, trabalhar e estudar em toda a Europa; acesso irrestrito ao mercado único da UE; e participação total em qualquer instituição política da UE que um governo pós-Brexit achasse conveniente. Em suma, o referendo de 2016 foi um voto para dois mais dois é igual a cinco.

 

As consequências desta auto-ilusão estão a tornar-se óbvias, com o governo do Reino Unido a ver-se incapaz de obter uma maioria parlamentar para qualquer plano realista para o Brexit. Se esta situação persistir, o Reino Unido terá apenas uma alternativa: outro referendo para reconsiderar o resultado impossível do voto de 2016.

 

O The Times estima agora que há uma probabilidade de 50% de se realizar um referendo desse tipo. Quando Justine Greening se tornou a primeira conservadora sénior a propor essa opção, as objecções levantadas já não eram sobre o referendo em si, mas sobre a dificuldade de decidir a questão e o método correctos.

 

A realização de um novo referendo está a chegar ao topo da agenda política do Reino Unido por causa do comportamento autodestrutivo dos defensores mais radicais do Brexit do Partido Conservador. A demissão de Davis e Johnson do governo de May deu origem a rebeliões parlamentares caóticas - tanto das facções eurocépticas como das pró-europeias do partido. Como resultado, o principal partido da oposição, o Partido Trabalhista, vê agora uma oportunidade realista de derrubar o governo de May e desencadear novas eleições unindo-se tanto aos defensores mais radicais do Brexit como aos conservadores rebeldes pró-europeus para matar qualquer plano do Brexit que possa ser apresentado ao Parlamento. A oposição trabalhista faz com que todas as opções para o Brexit sejam quase certamente bloqueadas.

 

Comecemos com a ameaça de uma ruptura "sem acordo", em que o Reino Unido sairia da UE sem qualquer acordo sobre um novo relacionamento. Isso agora é totalmente implausível, porque todos os partidos da oposição, além da clara maioria dos parlamentares conservadores cuja lealdade primária é aos interesses económicos, a bloqueariam.

 

Quase tão improvável é um "Brexit duro", no qual o Reino Unido e a Europa concordariam com uma separação ordenada, mas sem acordos preferenciais para o comércio futuro. Isso também seria rejeitado por todos os partidos da oposição, juntamente com dezenas de conservadores centristas. Alguns dos radicais do Brexit também se oporiam a uma separação assim, porque forçaria o Reino Unido a pagar uma grande taxa de saída da UE e a seguir as regras europeias para uma fronteira aberta com a Irlanda, sem qualquer privilégio comercial em troca.

 

O mais recente plano de May para um "Brexit suave" mais cooperativo também enfrenta agora a oposição insuperável de Johnson e Davis, e várias dezenas de seguidores. Esses radicais denunciaram o novo plano de May como "Brexit só de nome" e uma conspiração para transformar o Reino Unido num "estado vassalo" da União Europeia. Os trabalhistas estão agora dispostos a entrar numa aliança profana com eles na esperança de precipitar um colapso do governo.

 

Isso deixa uma última opção: uma rebelião parlamentar para impedir o Brexit. "Exit Brexit" é a política oficial dos Liberais, dos Verdes e do Partido Nacional Escocês. Mas todos os defensores sérios do Brexit, juntamente com a grande maioria dos deputados conservadores e da liderança trabalhista, que se sentem obrigados a seguir as "instruções" do referendo de 2016, obviamente não apoiarão essa opção.

 

Se May se vir incapaz de obter uma maioria parlamentar para qualquer versão do Brexit, a demissão e a convocação de eleições não serão o seu único recurso. Há um objectivo que une todas as facções conservadoras, independentemente dos seus pontos de vista sobre a Europa: evitar eleições e o risco do Partido Trabalhista chegar ao poder. Isto significa que May poderia anexar uma proposta de referendo à sua versão preferida do Brexit, alegando justificadamente que a resposta do Parlamento ao referendo de 2016 deveria ser ratificada ou rejeitada por outra consulta popular. As investigações criminais lançadas recentemente sobre os gastos ilegais da campanha oficial de Johnson, e as alegações sobre o financiamento russo à campanha paralela do ex-líder do Partido da Independência do Reino Unido, Nigel Farage, justificam ainda mais um referendo final.

 

A liderança trabalhista deverá opor-se a um novo referendo, porque isso atrapalharia os seus esforços para forçar novas eleições. Mas os liberais e os nacionalistas escoceses apoiariam entusiasticamente um referendo, desde que este oferecesse aos eleitores a opção de manter o Reino Unido na UE. Como resultado, May não teria problemas em reunir uma maioria parlamentar para um pacote legislativo que incluísse o seu plano para o Brexit e um referendo para decidir entre a saída e o status quo alternativo de permanecer na UE.

 

A lógica sugere que esse referendo reverteria a decisão de 2016 de deixar a UE, porque qualquer proposta específica do Brexit apresentada pelo governo seria muito menos atractiva do que os delírios utópicos que só conseguiram assegurar uma estreita maioria há dois anos. Mas, no próximo ano, o povo britânico pode ficar tão zangado com a Europa que votará novamente na saída. Se assim for, o Brexit poderia seguir em frente com qualquer acordo que May negociasse, e ninguém poderia reclamar das consequências ou custos.

 

Qualquer que fosse o resultado, os eleitores teriam feito uma escolha honesta entre opções genuínas e adequadamente articuladas. Isso seria a verdadeira democracia, em vez da demagogia de dois mais dois é igual a cinco.

Anatole Kaletsky é economista-chefe e co-chairman da Gavekal Dragonomics e o autor de Capitalism 4.0, The Birth of a New Economy.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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