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18 de Setembro de 2017 às 14:00

Bárbaros às portas do sistema monetário

As criptomoedas não são meras espécies novas, que devem ser olhadas com interesse; os bancos centrais têm de actuar agora para colocar rédeas nas ameaças reais que representam.

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Os mercados financeiros estão hoje a prosperar. O Dow Jones industrial average, o S&P500 e o Nasdaq composite atingiram máximos recentemente, com os mercados financeiros das economias emergentes a terem também desempenhos fortes, isto numa altura em que os investidores procuram estabilidade no meio de uma incerteza generalizada. Mas, dado que este desempenho não tem por base os fundamentais do mercado, é insustentável – e muito arriscado.

 

De acordo com Mohamed El-Erian, a lição perdida da crise financeira de 2007 é que os actuais modelos de crescimento económico estão "excessivamente dependentes da liquidez e da alavancagem – de instituições financeiras privadas e depois dos bancos centrais". E, de facto, um dos motores principais do desempenho actual dos mercados financeiros é a expectativa de que se mantenha a liquidez dos bancos centrais.

 

Depois da Reserva Federal dos Estados Unidos ter revelado, em Julho, a sua decisão de manter inalteradas as taxas de juro, o Dow Jones industrial average registou recordes intradiários e de fecho; o Nasdaq também alcançou máximos históricos. 

 

Mas há outro factor que pode destabilizar mais um sistema assente em liquidez e alavancagem: as moedas digitais. E, nesta frente, os políticos e reguladores têm bem menos controlo.

 

O conceito de criptomoedas privadas nasceu da desconfiança no dinheiro oficial. Em 2008, Satoshi Nakamoto – o misterioso criador da bitcoin, a primeira moeda digital descentralizada – descreveu-as "puramente como uma versão peer-to-peer de dinheiro electrónico" que "permite que pagamentos online sejam enviados directamente de uma parte para outra sem passar por uma instituição financeira". 

 

Um documento de trabalho, de 2016, do Fundo Monetário Internacional distinguia uma moeda digital (moeda corrente que pode ser digitalizada) de uma moeda virtual (moeda não-corrente). A Bitcoin é uma criptomoeda, ou uma espécie de moeda virtual que usa criptografia e ledgers distributivos (o blockchain) para manter as transacções tanto públicas como totalmente anónimas.

 

Independentemente da forma como se olhe para a questão, o facto é que, nove anos depois de Nakamoto ter apresentado a bitcoin, o conceito de dinheiro privado electrónico está prestes a transformar a paisagem dos mercados financeiros. Em Agosto, o valor da bitcoin alcançou os 4.483 dólares, com uma capitalização bolsista de 74,5 mil milhões de dólares, mais de cinco vez superior ao que tinha no início de 2017. Se isto é uma bolha, destinada ao colapso, ou um sinal de uma mudança mais radical no conceito de dinheiro, as implicações para os bancos centrais e para a estabilidade financeira vão ser profundas.

 

Ao início, os bancos centrais e os reguladores apoiavam bastante a inovação que a bitcoin representava e que o blockchain sustenta. É difícil argumentar que as pessoas não deviam poder usar activos criados de forma privada para liquidar transacções sem o envolvimento do Estado.

 

Mas as autoridades nacionais desconfiavam do uso potencialmente ilegal de tais activos, que podem ser encontrados na bitcoin, no mercado da dark-web chamado de Silk Road, um local para a venda de drogas ilícitas, entre outras coisas. A Silk Road foi encerrada em 2013, mas este tipo de mercados têm surgido. Quando a casa de câmbio de bitcoin Mt. Gox fracassou em 2014, alguns bancos centrais, como o Banco Popular da China, começaram a desencorajar o uso de bitcoin. Em Novembro de 2015, o Comité de Pagamentos e de Infra-estruturas de Mercado do Banco de Pagamentos Internacionais, composto por dez dos principais bancos centrais, lançou uma análise profunda das moedas digitais.

 

Mas o perigo das criptomoedas vai para além da facilitação de actividades ilegais. Tal como as moedas convencionais, as criptomoedas não têm valor intrínseco. Mas, ao contrário do dinheiro oficial, não têm uma responsabilidade correspondente, o que significa que não há nenhuma instituição, como um banco central, com um interesse declarado em manter o seu valor.

 

Em vez disso, a função das criptomoedas tem por base a vontade das pessoas de se envolverem em transacções e tratá-las como valiosas. O valor da proporção depende da atracção de mais ou menos utilizadores. As criptomoedas assumem as características de um esquema Ponzi.

 

À medida que a escala de utilização das criptomoedas cresce, também aumentam as consequências potenciais do colapso. Actualmente, a capitalização bolsista das criptomoedas representa quase um décimo do valor do stock físico oficial do ouro, que tem capacidade para lidar com operações de pagamentos significativamente maiores, devido aos baixos custos das transacções. Isso significa que as criptomoedas são já sistémicas em termos de escala.

 

Não há forma de dizer qual vai ser a tendência. Tecnicamente, a oferta de criptomoedas é infinita: a bitcoin está limitada a 21 milhões de unidades, mas este limite pode ser aumentado se a maioria dos "mineiros" (que acrescentam registos de transacções aos ledger públicos) concordar. A procura está relacionada com as suspeitas em torno das reservas de valor convencionais. Se as pessoas recearem que os seus activos estão em risco devido a impostos, regulação excessiva, ou instabilidade financeira ou social, vão cada vez mais voltar-se para as criptomoedas.

 

O relatório do FMI, do ano passado, indicava que as criptomoedas já são usadas para contornar câmbios ou controlos de capital na China, Chipre, Grécia e Venezuela. Para países sujeitos a incerteza política ou agitação social, as criptomoedas oferecem um mecanismo atractivo para a fuga de capitais, o que vai exacerbar as dificuldades de manter a estabilidade financeira doméstica.

 

Além disso, apesar de o Estado não ter nenhum papel na gestão das criptomoedas, vai ser responsável por limpar a confusão que vai existir quando a bolha rebentar. E, dependendo de quando e onde a bolha rebente, a confusão pode ser grande. Nas economias avançadas, com moedas de reserva, os bancos centrais podem ser capazes de mitigar os danos. O mesmo pode não ser verdadeiro para as economias emergentes.

 

Uma nova espécie invasiva não representa uma ameaça imediata para as grandes árvores na floresta. Mas não demora muito para os que os sistemas menos desenvolvidos – rebentos na floresta – sintam os efeitos. As criptomoedas não são meras espécies novas, que devem ser olhadas com interesse; os bancos centrais têm de actuar agora para colocar rédeas nas ameaças reais que representam.

Andrew Sheng é membro do Asia Global Institute da Universidade de Hong Kong e do Conselho Consultivo de Finanças Sustentáveis da UNEP. Xiao Geng, presidente do Hong Kong Institution for International Finance, é professor na Universidade de Hong Kong.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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