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04 de Maio de 2016 às 20:30

A crise de identidade económica da China

"Na China, onde os debates internos seguem cuidadosos guiões, nada acontece por acidente".

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Ao contrário do Ocidente, onde o antigo presidente dos Estados Unidos George H.W. Bush uma vez ironizou com a ausência de uma estratégia generalizada, a China leva muito a sério a sua estratégia económica. Tal ficou claro no recente Fórum de Desenvolvimento da China em Pequim, um importante encontro anual que se regista desde 2000, imediatamente após a conclusão do também anual Congresso Nacional do Povo.

 

Concebido pelo antigo primeiro-ministro Zhu Rongji – um dos modernos reformistas da China mais virados para a estratégia –, o Fórum de Desenvolvimento da China tornou-se, rapidamente, numa plataforma de alto nível para conectar altos decisores políticos chineses a um conjunto de académicos, políticos e empresários internacionais. Na prática, é um teste de stress intelectual – obriga os líderes chineses a defenderem as suas novas estratégias e políticas perante uma difícil e experiente audiência de especialistas externos.  

 

Não é fácil chegar a uma conclusão única sobre um evento como este, especialmente o Fórum de Desenvolvimento da China, que começou como um pequeno encontro íntimo e se transformou numa extravagância ao género de Davos, com 50 sessões ao longo de três dias. Mas, tendo assistido a 16 dos 17 encontros (falhei o primeiro), a minha sensação é a de que o Fórum de 2016 foi especialmente rico nas implicações estratégicas para os enormes desafios económicos. E, como constatei, o elefante na sala foi a identidade central do modelo económico da China – será um modelo conduzido pela produção ou um outro liderado pelo consumo.

 

O milagre do desenvolvimento chinês em 30 anos – o crescimento anual do produto interno bruto real entre 1980 e 2010 foi de 10% – teve tudo que ver com as proezas do país enquanto produtor final. Conduzida pela manufactura e pela construção, a China desfrutou de um ímpeto poderoso único. Em 1980, as exportações e o investimento representavam, juntos, 41% do PIB chinês. Em 2010, a quota combinada era de 75%. A parcela das exportações foi a que mais subiu – em torno de seis vezes, ao passar de 6%, em 1980, para o pico pré-crise de 35%, em 2007 –, já que as novas capacidades e novas infra-estruturas, o baixo custo laboral e o acesso à Organização Mundial do Comércio tornaram a China no principal beneficiário da aceleração da globalização e dos maiores fluxos comerciais.  

 

Mas o modelo de produção não é a fórmula definitiva para cumprir as aspirações da China de se tornar numa sociedade moderadamente próspera em 2020. Esta constatação tinha sido já antecipada na crítica do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao, que em 2007 considerou que este modelo era "desequilibrado, instável, descoordenado e insustentável".

 

Claro que estes eram enigmas para descrever excesso de poupança, demasiado investimento, procura ilimitada por recursos, degradação ambiental e ainda crescentes desigualdades de rendimento. Por esse motivo, era necessário um novo modelo, não apenas para contornar tais ratoeiras mas também para evitar a temida "armadilha do rendimento médio", que afecta as economias em desenvolvimento que registam um rápido crescimento quando estas alcançam os limiares de rendimento de que a China estava, de forma acelerada, a aproximar-se.
 

As críticas de Wen desencadearam um intenso debate interno que levou à decisão central estratégica de reequilibrar a economia chinesa ao mudá-la para um modelo com base no consumo, como previsto no 12º Plano Quinquenal de 2011-2015. Esta nova abordagem incluía três grandes componentes: o salto para os serviços, de modo a impulsionar a criação de emprego; a urbanização acelerada para levar a uma subida real dos salários; e uma rede de segurança social mais robusta para que as famílias pudessem dispor da segurança necessária para canalizar os novos rendimentos para o consumo discricionário em vez de uma poupança preventiva ditada pelo medo.

 

Os resultados do agora concluído 12º Plano Quinquenal foram impressionantes – especialmente à luz do formidável desafio que uma mudança estrutural implica para qualquer economia. Mas é aqui que o foco estratégico da China é mais eficaz – fornecer uma estrutura geral para orientar a economia do ponto A para o ponto B.

 

No entanto, o caminho está longe de estar percorrido. Enquanto as metas para a terceirização e urbanização da economia foram superadas, os resultados ficaram aquém do esperado em muitos dos aspectos necessários para construir uma rede de segurança social mais robusta (isto é, completamente financiada). Em resultado disso, o consumo privado avançou lentamente de 35% do PIB para apenas cerca de 37% em 2015. 

 

Não obstante o reequilíbrio com base no consumo estar ainda por acabar, a China parece estar agora a abraçar outra mudança na sua estratégia económica central – conduzida por um conjunto de "iniciativas do lado da oferta", que vão desde a redução da capacidade e desalavancagem com direcção à inovação e à produtividade. Esta ênfase foi formalizada pelo recente "Work Report", do primeiro-ministro Li Keqiang, que define a nova estratégia para o agora promulgado 13º Plano Quinquenal (que cobre o período entre 2016 e 2020).

 

Ao identificar as oito maiores tarefas para 2016, Li colocou as reformas do lado da oferta em segundo lugar – apenas atrás do foco do governo na estabilidade económica para contrabalançar o abrandamento do crescimento da China. Pelo contrário, a ênfase no aumento da procura interna – de longe, o centro da estratégia de reequilíbrio através do consumo – foi relegada para terceiro lugar na referida agenda do trabalho.

 

Na China, onde os debates internos seguem cuidadosos guiões, nada acontece por acidente. No importante discurso do Fórum deste ano, Zhang Gaoli vice-primeiro-ministro e membro do órgão de topo do Partido Comunista Chinês, frisou este aspecto ao enfatizar a necessidade de dirigir as iniciativas do lado da oferta contra o "principal perigo" da China. Pelo contrário, apenas foram feitas menções de passagem ao reequilíbrio liderado pelo consumo.

 

Talvez esteja a discutir aspectos inconsequentes. No final de contas, todas as economias precisam, na sua equação de crescimento, de se centrar tanto no lado da oferta como da procura. Mas esta mudança na ênfase – no 13º Plano Quinquenal e no debate e nas conclusões do Fórum do Desenvolvimento da China – parece ser um importante sinal. A minha preocupação é a de que tal pode indicar uma transferência prematura do modelo conduzido pelo consumo em direcção à zona de conforto do modelo de produção, que sempre foi mais favorável à engenharia industrial da planificação central.

 

A estratégia é a maior força da China, o que confere credibilidade ao seu compromisso para com a transformação estrutural. Mas falta muito para trazer os consumidores chineses para a vida. Sim, é um desafio difícil. Mas retirar força ao compromisso estratégico poderá colocar em causa a mudança essencial que agora é exigida à identidade económica da China. 

Stephen S. Roach, docente da Universidade de Yale e antigo presidente do Morgan Stanley Asia, é autor de Unbalanced: The Codependency of America and China.
 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Diogo Cavaleiro

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