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Daniel Gros - Director do CEPS 23 de Janeiro de 2018 às 13:11

A inversão do ciclo vicioso na Europa

Nenhum ciclo financeiro dura para sempre. Mas o ciclo que está a conduzir a recuperação actual na Zona Euro, incluindo nos países periféricos que foram atingidos mais fortemente pela crise, poderá persistir ainda durante algum tempo.

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Durante a crise do euro, em 2011-2012, a área da moeda única ficou mergulhada num "ciclo vicioso" no qual os bancos frágeis dos países em dificuldades financeiras racionaram o crédito, o que provocou uma recessão, e intensificou a pressão sobre as finanças governamentais que estavam já sobrecarregadas com a necessidade cobrir as perdas dos bancos. Mas estas espirais, que acabam por reforçar-se a si mesmas, podem também operar na direcção oposta. Entender estas dinâmicas pode ser a chave para perceber a robustez relativa de hoje da Zona Euro.

 

Num círculo vicioso, as expectativas de que um país entre em incumprimento levam à subida do prémio de risco até que a economia se aproxime do colapso, mesmo que os problemas subjacentes possam ser geridos com o tempo. A certa altura, quando o fosso entre o pessimismo dos mercados financeiros e a realidade económica se torna muito grande, o mercado está pronto para uma inversão.

 

Isto foi o que aconteceu na Zona Euro durante o verão de 2012. O presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, comprometeu-se a fazer "o que fosse necessário" para evitar que o euro se desintegrasse, o que tranquilizou os mercados porque os receios dos investidores assentavam sobretudo, para parafrasear o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, no "próprio medo".

 

A intervenção de Mario Draghi marcou o início de um novo ciclo: o ciclo vicioso inverteu-se e começou um ciclo de crédito benigno em que o prémio de risco baixo permitiu que, tanto os bancos como os governos, se refinanciassem com baixas taxas de juro, o que fez com que houvesse mais crédito disponível na economia o que, por conseguinte, impulsionou a recuperação e fez aumentar as receitas dos governos. Os Executivos da maioria dos países da Zona Euro, que anteriormente tinham enfrentado um ciclo vicioso, foram capazes de estabilizar as finanças públicas sem ter de realizar mais cortes na despesa.

 

Mas este ciclo positivo de crédito é menos visível do que o ciclo vicioso; é que, em termos comparativos, é preciso muito menos tempo para diminuir o número de mutuários - e levar a economia para a recessão - do que para promover a recuperação económica quando o crédito fica disponível novamente. Mesmo que os mutuários que estão sobrecarregados possam gastar e investir, muito provavelmente não o farão de imediato. Mas, a certa altura, as condições de crédito mais fáceis raramente falham em gerar uma recuperação.

 

O vasto programa de flexibilização quantitativa (QE na sigla em inglês) do BCE, iniciado em Março de 2015, reforçou o ciclo virtuoso. Mas a verdade é que o ciclo vicioso já tinha sido invertido muito antes de o QE começar. Em qualquer caso, a definição comum desse programa – a compra em larga escala de obrigações governamentais por parte do BCE – é imprecisa. O Conselho Geral do BCE toma as principais decisões mas as suas políticas são executadas sobretudo pelos bancos centrais nacionais (BCN).

 

Normalmente, todos os bancos centrais nacionais no eurosistema realizam as mesmas operações e os resultados são agrupados. Mas, no que diz respeito ao QE, cada banco central nacional apenas compra obrigações do seu próprio governo, por conta própria. O Banco de Itália apenas comprou obrigações soberanas de Itália e o banco central da Alemanha apenas comprou obrigações soberanas germânicas.

 

Os bancos centrais nacionais são parte do grande sector público dos seus respectivos países e transferem todos os seus lucros e perdas com essas transacções para os seus próprios governos. Por isso, quando compram obrigações soberanas de longo prazo, os bancos centrais estão a actuar como se estivessem a subsidiar uma grande empresa ao comprar dívida da sua empresa-mãe (emitindo também responsabilidades de curto prazo).

 

Em suma, o programa QE da Zona Euro representa essencialmente um exercício de gestão de activos e passivos, no qual a dívida pública (nacional) é reordenada de uma parte do sector público (governos) para outra parte (o banco central nacional). Apesar das somas envolvidas serem muito grandes - um total de cerca de dois biliões de euros até agora – o impacto real é pequeno.

 

Claro que o BCE alega que o programa QE contribuiu decisivamente para a recuperação. Mas o facto é que tem havido poucas alterações nas taxas de juro ou nos spreads de risco desde que a compra de obrigações começou. Isto indica que o fim do programa de flexibilização quantitativa – que deverá acontecer no final deste ano – não vai significar o fim da recuperação. E, dado que os mercados financeiros sabem que o QE vai terminar, eles já incorporaram essas expectativas.

 

Mas pode o ciclo benigno de crédito de hoje durar muito mais tempo? Pode haver alguns motivos para receios; afinal, a Zona Euro viveu um ciclo de crédito fácil, de crescimento e de pouca pressão sobre as finanças governamentais antes da crise financeira mundial de 2007-2008. Mas parece pouco provável que o ciclo actual vá levar a excessos semelhantes e terminar numa queda igual uma vez que o padrão de crescimento nos países periféricos da Zona Euro mudou consideravelmente.

 

Durante o boom que antecedeu a crise de crédito, o crescimento em países como Espanha e Portugal estava assente sobretudo na procura doméstica, financiada por fluxos de capital. Em Itália, a procura interna era menos exuberante, mas os capitais externos eram ainda necessários para financiar a elevada dívida pública. Por isso, quando subitamente os fluxos de capital pararam, estas economias entraram em crise.

 

Contudo, hoje, o crescimento nesses países está assente sobretudo nas exportações enquanto a procura interna continua moderada. Além disso, estes países têm excedentes da conta corrente enquanto as suas taxas de crescimento sobem; por outras palavras, longe de confiarem em fluxos de capital inconstantes, estes países estão a reembolsar a sua dívida externa. Este modelo de crescimento, novo e mais robusto, pode ser sustentado até que o desemprego que ainda existe possa ser absorvido.

 

Nenhum ciclo financeiro dura para sempre. Mas o ciclo que está a conduzir a recuperação actual na Zona Euro, incluindo nos países periféricos que foram atingidos mais fortemente pela crise, poderá persistir ainda durante algum tempo.

 

Daniel Gros é director do Centro Europeu de Estudos Políticos.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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